Machado visita Almino em romance de gênio
Homem de papel traz o último protagonista do maior romancista brasileiro, com sua sutileza explícita, a fúria de Barreto e um toque de Rabelais, para coroar grande feito de nossa ficção
Uma obra-prima da literatura é uma peça muito rara, muito especial, de altíssima qualidade. Ser posta no alto de todos os pedestais e altares da crítica impõe um imenso respeito e também uma enorme solidão. Mas nem sempre esse píncaro significa esterilidade. Ao contrário: estar nesse pico pode gerar outro texto a merecer elogios dos críticos especializados. E também a satisfação de um grupo seleto, mas numeroso, de leitores. O efeito gerador da genialidade consta de dois dos mais lidos e celebrados romances do mestre dos mestres, Joaquim Maria Machado de Assis: Esaú e Jacó e Memorial de Aires, o canto de cisne do “bruxo” do Cosme Velho. Eles escalaram o Olimpo da ficção nacional e para lá deram passagem para Homem de Papel, de João Almino, editado este ano pela Record.
Tal livro entrega a um aficionado do mulato genial tudo o que, desde o título, seu texto promete. O protagonista e/ou narrador é um tipo centenário, no qual o maior romancista brasileiro empenhou sua genialidade e sua experiência: o conselheiro Aires. E aqui a palavra tipo pode ser empregada em todos os seus valores semânticos. Antes como personagem de uma peça de ficção, corpo dos logaritmos do passado, os chamados tipos móveis, de que se compunham as frases dos impressos em geral e dos romances em particular no começo do século passado. A narrativa foi transposta de um material original, do qual emergiu o texto do contexto da personagem e de seu tempo. Ao leitor pouco importa que tenham mudado as formas originais dos tipos, que saíram dos prelos oriundos da mecânica de Gutenberg. E saltitam nas máquinas compositoras eletrônicas atuais, no gênero da cibernética, descrita por Norbert Wiener, autor de uma manual profético de relevância técnica e científica reconhecida.
O Machado ressuscitado na composição eletrônica usada pelo diplomata (como a personagem) ressuscita em plena forma na figura recriada de um antigo conselheiro do Império para se tornar palpiteiro amador, ou melhor, não profissional, da “verdadeira” protagonista do livro, a colega Flor, na atual republiqueta. Isso se reproduz na atemporalidade das cenas vividas pelo Aires duplamente romanesco, quando algumas vezes ele se perde e se reencontra na confusão estabelecida entre a memória remota de uma crise desafiadora dos oitocentos e ressurge na lembrança próxima dos conflitos do atualíssimo segundo milênio. Trata-se evidentemente de uma tarefa espinhosa, um desafio e tanto, de vez que o autor contemporâneo empenha seu talento de escriba na recriação do tipo machadiano por se obrigar à verossimilhança. E este é o mais exigido dos atributos de um criador literário de qualquer época. Almino é potiguar de Mossoró e elegeu Brasília como lócus primordial de seus oito títulos de ficção. Machado, um urbanoide carioca de outra distante e praieira capital federal em plena deterioração da sétima, e talvez mais desastrada, reencarnação, do golpe da república privatizada, que o Aires original conheceu E assim teria convívio de menor familiaridade com um século inteiro de golpes e contragolpes armados até os dentes, contrariamente ao que ocorria no Segundo Império, cenário no qual viveu e trabalhou.
Almino, sertanejo no cerrado do Planalto Central, saiu-se desse qüiproquó com aquela característica reconhecida em seus ancestrais por Euclydes da Cunha, militar, gênio literário e vítima fatal da imperícia no manejo de armas: a têmpera, que não se traduzia no sinônimo mais comum, sempre a lembrar a força física. Reconstruir o mundo do amado de Carolina não é nem nunca foi uma tarefa de Hércules, e o fez com a finura afiada de uma adaga árabe ou de uma peixeira nordestina. Adestrado e bem-sucedido na saga homérica de voltar a Ítaca no romance anterior, o também magnífico (desde o título fidelíssimo) Entre Facas, Algodão, sobre o tema ancestral da volta ao pago sagrado, mostra no mais recente, sua intimidade absurda com a ironia refinada do criador de Aires. Ao qual acrescentou a crítica amarga e arrebatada de Lima Barreto, inspirador secreto de seu primor machadiano. Policarpo Quaresma passeia pelas páginas de Homem de Papel em cenas antológicas, caso do almoço entre os trigêmeos centrais da trama – um esquerdista de boteco, um oportunista de direita e uma “isentona” de almanaque -, talvez a que melhor resume as intenções do autor. Como no Brasil, onde um compadre do imperador o derrubou para criar uma república de opereta. Nela um camelô de feira reuniu embaixadores do resto do mundo para denunciar como fraudulenta a eleição da qual ascendeu ao poder discricionário, que exerce sem empatia nem civismo, sem sabedoria nem bom senso.
O protagonista que sai, literalmente, das páginas, para intervir na “falsa”, mas muito verossímil, farsa da permanência do desgoverno interminável dos medíocres (atenção, a palavra reproduz um eufemismo!), mantém a fúria de Barreto e a delicadeza de Machado quando abandona a sutileza de Sterne, herdada do vovô guanabarino. Fá-lo ao adotar no episódio final da anta a entronização da estupidez com a verve de Rabelais. Não é preciso recorrer à escatologia da descarga intestinal do tapir candidato para atingir esse paroxismo, talvez intencional do autor, porque, ao longo da descrição, o leitor deleita-se com a cultura enciclopédica do escritor, com a entrada da alimária-símbolo do integralismo de Plínio Salgado, intelectual de direita que o golpista da hora imita sem saber. Mas o faz de forma tão imprudente que acaba por mostrar que ignora até a anta de tênis, adotada como símbolo das poucas luzes da ditadura no Pasquim.
Saiba o leitor, que navega entre monstros e sereias, como o herói helênico depois da invasão de Troia por um cavalo de pau, que estes comentários irreverentes aqui expostos decorrem apenas de uma das muitas leituras da obra comentada. Essa parte da intromissão de um homem de papel na ficção brasileira com verve e delicadeza, dão-lhe todos os méritos para subir ao altar elevado do ciclo que a inspirou, como mais um produto do engenho do qual herdou o que de melhor nele há.
*Jornalista, poeta e escritor
Seu Tonho Torres entre memória e delírio
Após 12 anos escrevendo-o, o romancista baiano lançou em 2021 mais um texto seminal na ficção brasileira narrando trajetórias interna e externa no êxodo de um menino sertanejo da roça à praça
Quebrando um silêncio de 15 anos desde a edição de Pelo Buraco da Agulha, em 2006, o escritor Antônio Torres, nascido em Sátiro Dias, que já foi Junco no sertão da Bahia, repórter em Salvador e publicitário de sucesso em São Paulo, lançou de Itaipava, na Serra Fluminense mais um romance. E este o põe num lugar na estante das maiores obras de ficção do Brasil, Seu 18º livro é também a 12ª obra de um nívelcomparável com das grandes narrativas que retratam a fuga de roceiros pobres para grandes cidades onde tentam sobreviver e empurrar de barriga cheia a chegada da Indesejada das Gentes.
No universo onde brilham o engenho e a arte Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Ariano Suassuna, Ismail Kadaré, Gracilliano Ramos, Jorge Amado, que saudou sua estreia com júbilo e entusiasmo, e José Américo, que fez questão de registrar por escrito sua supina admiração, Torres inovar em texto e contexto em sua mais recente aparição no universo das letras. Em Querida Cidade, ele recorreu aos truques do cinematógrafo dos irmãos Lumière, apoiando o esqueleto de sua estória em fusão em vez de cortes e planos. E deixando a cronologia por conta de citações de filmes, peças de teatro, livros de poesia de bancada e, sobretudo, grandes sucessos do cancioneiro popular, em que se destacam os sambas-canções que fizeram enorme sucesso à época em que ocorreram os fatos narrados e os delírios consumados. A cultura do narrador atinge a posição de enciclopédia, exigindo a presença de um memorialista de escol, mesmo quando não esteja citando literalmente a lembrança do personagem. Isso, é claro, exige uma cultura proverbial e um conhecimento detalhado das obras de uma época em que o Brasil viveu o apanágio do cancioneiro popular, particularmente os favoritos dos notívagos do samba-canção e a turma do sol e do barquinho no mar da bossa nova.
Seu Tonho, como o chamo desde que nos conhecemos, quando eu estreava no jornalismo e ele se destacava na publicidade. E, já ficava famoso, então, como ficcionista de primeira linha à época dos festivais de Música Popular na Record e dos filmes de Godard da geração Paissandu, pois já estava de mudança para o Rio, antes de morar na Serra Fluminense, onde vive hoje. E agora desloca-se para o Rio nas noturnas sessões semanais da Academia Brasileira, de que é membro. Ou para o exterior, para onde é sempre convidado para atuar em encontros com os papas da literatura mundial. E foi perto de Petrópolis e Teresópolis que ele afiou seu estro para merecer a definição magistral da também romancista e também acadêmica Nélida Piñon, que flagrou seu grande feito como escritor. Pungente ao narrar as dores de seus protagonistas carregados de medo, saudade e desilusão, dores atenuadas com “subterfúgios que a história quer silenciar”. A autora do genial Um Dia Chegarei a Sagres, publicado à mesma época do último romance de Torres, mexeu nessa definição – como sabe fazer com maestria – no segredo capital da convivência dos enigmáticos arquétipos urbanos presentes no tecido textual dele com a pequenez, mesquinhez, racismo e outros preconceitos encontrados em cenários e seres irreais tirados da realidade com a beleza, a solidariedade e a magia do bem.
Entre a memória e o delírio da obra se permanentemente altos de Torres convivem com o prazer de uma leitura comovente da beleza da língua de Camões, Bilac e Castro Alves, baiano como ele, mantida em sua integridade nos grotões dos sertões com aquele irresistível sabor de antiguidade e permanência. Que não se perderam com as importações de outras falas e outras culturas nos espaços urbanos, onde também habitam os seres e costumes reproduzidos ou criados por nossa ficção mais admirável e lúcida. O amor à urbe construída pela mão de obra de pedreiros e operários braçais também se manifesta na arte fulgurante de Antônio Dias, Tarsila do Amaral. Cândido Portiari, Aldemir Martins e Antônio Bandeira. E essa beleza consta do próprio título da obra de Torres: querida é a cidade prometida, não a roça abandonada. Mesmo tendo o guri de dez anos que a abandonou para acompanhar um parente quase desconhecido.E e à qual voltou para saber por que razão o pai abandonara a família em busca dessa miragem, que nunca mais será como antes nunca fora. Jamais tal segredo será revelado. Mas, seja qual for o desfecho, nunca trairá o amplíssimo significado semântico do verbo querer, com tudo o que significa como sonho, sinônimo de fiasco e também de realização. Ao abrigo dessa senha mágica, propiciada pela amada língua portuguesa, a saga do menino só será cumprida se nela permanecerem na fusão cinemática o sonho, o suor, as lágrimas, a dor e o prazer que nossa boa literatura revela, mesmo ao esconder.
Este leitor, beneficiado com tudo o que de generoso e sórdido contém o Brasil mais profundo dos sertões do Semiárido e outros quaisquer, vividos na própria vida e nas existências que não existiram na realidade, mas se produzem na ilusão como na desilusão, vem a público manifestar a profunda dívida de gratidão a essa leitura magnífica. Foi um prazer enorme conhecer mais essa faceta de seu talento, pareceiro.
Jornalista, poeta e escritor
Desgoverno despreza Biblioteca Nacional
Instituição secular dedicada a preservar a memória nacional de cultura, ciência e literatura homenageia com medalhas de mérito delinquentes que atentam contra liberdade de pensar e criar
“Filhos do sec‘lo das luzes! / Filhos da Grande Nação! / Quando ante Deus / Vos mostrardes, / Tereis um livro na mão: / O livro — esse audaz guerreiro / Que conquista o mundo inteiro / Sem nunca ter Waterloo… / Eolo de pensamentos, / Que abrira a gruta dos ventos / Donde a Igualdade voou!”.
Esta estrofe, simplesmente espetacular, foi escrita pelo maior poeta brasileiro de todos os tempos, Antônio Frederico de Castro Alves, pertence ao poema O Livro e a América, foi publicada na coletânea intitulada Espumas Flutuantes e eu me familiarizei com ela antes mesmo de ser alfabetizado. Minha mãe, Mundica Ferreira Pinto, dizia de cor nas noites quentes do sertão do Rio do Peixe a todos os seus filhos reunidos seus poemas preferidos. A doce lembrança de minha mãe, que perdemos há seis meses, me serviu de lenitivo à dor causada pelo impacto da noticia da lista dos beneméritos da bibliofilia na visão do atual desgoverno da causa familiar, convocados para receberem a medalha da Ordem do Mérito do Livro. O presidente da centenária instituição literária e cultural, Luiz Carlos Ramiro Jr., ao estilo bolsonarista de ser e não ler, misturou Jesus Cristo com Zé Buchudo, ou pior, Machado de Assis, o maior ficcionista brasileiro de todos os tempos, com o ex-PM do Rio e deputado federal Daniel Silveira, condenado pelo Supremo Tribunal Federal a oito anos e nove meses por atos antidemocráticos e no dia da publicação agraciado por indulto presidencial de discutível constitucionalidade. Não se sabe se por vergonha ou cinismo, o executivo não divulgou a lista dos agraciados, entre os quais conhecidos iletrados ágrafos como as deputadas Bia Kicis e Carla ]zambelli. Mas a simples menção do parlamentar, que foi filmado na rua em Copacabana instruindo seus ex-colegas de farda a dispararem contra a “caixa dos peitos” de pacíficos manifestantes antifascistas, motivou os raros merecedores da medalha a recusarem-na e faltarem à ominosa cerimônia na sexta-feira 1 de julho em defesa da democracia e do decoro.
No Twitter, um dos incluídos na lista para lhe dar o mínimo de credibilidade, o romancista Marco Lucchesi, autor da trilogia de romances O Dom do Crime, O Bibliotecário do Imperador e Pirandello no Rio, criticou a entrega da honraria a Silveira. E disse não ter condições de recebê-la. “Se eu aceitasse a medalha, seria referendar Bolsonaro, que disse preferir um clube ou estande de tiro a uma biblioteca”, afirmou o ex-presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL).
Outro acadêmico que recusou a duvidosa oferta foi o poeta, tradutor e professor Antônio Carlos Secchin. “Quando aceitei a medalha, supunha que ela seria entregue a pessoas que, como no meu caso, tivessem vivência com a Biblioteca Nacional e com o universo do livro”, afirmou Secchin, com a autoridade de bibliófilo de escol. “Porém, pelo que soube há pouco, a cerimônia vespertina se constituirá na celebração de uma única diretriz política, agraciando pessoas sem relação com livros, biblioteca e cultura. Minhas más companhias eu mesmo me dou ao luxo de escolher”, cunhou ainda essa frase lapidar o poeta Secchin. Os bolsonaristas nem sequer têm o condão dessa liberdade de escolha e são obrigados a acolher os amigos do mal da imensa coleção particular do capetão sem noção.
E concluiu o professor aposentado de literatura na Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de O Galo Gago : “não me sentiria bem vendo compartilhada a Medalha do Mérito de Livro a personalidades que provavelmente não veem no livro mérito nenhum”.
Como qualquer leitor de jornais e revistas está cansado de saber, o líder de vários dos premiados, da seita bolsonaristas do fascismo de Mussolini, detesta livros e adora pistolas. E, na certa, isso não condiz com o trajeto intelectual e a popularidade da grande historiadora carioca Mary Del Priore, que acaba de ocupar uma vaga na Academia Paulista de Letras. A autora de As Vidas de José Bonifácio registrou em seu perfil no Facebook um resumo dos escolhidos levados à recusa pela impossibilidade de escolherem os piores amigos disponíveis na praça suja: “Embora muito sensibilizada por ter sido agraciada com a Medalha de Honra ao Mérito do Livro, outorgada pela Biblioteca Nacional, prêmio que já foi dado a Carlos Drummond de Andrade e Gilberto Freyre entre outros, sou obrigada a recusá-lo, pois um dos agraciados é o senhor Daniel Silveira.”
O antropólogo e historiador baiano Antônio Risério, autor de Sinhás Pretas da Bahia, suas escravas, suas joias, noticiou a inclusão de seu nome na lista dos agraciados também no Facebook e na mesma rede mandou brasa: “A coisa vai mesmo de muito mal a ainda pior. Fiquei alegre e noticiei aqui que iria receber a medalha da Biblioteca Nacional – Ordem do Mérito do Livro. O motivo era até bem simples: ela já tinha sido conferida ao escritor-pensador pernambucano Gilberto Freyre. Mas agora, quando soube da corja que vai ser premiada, quero distância. Não tenho nada a ver com essa gente. Podem jogar a medalha no lixo.”
A presença dos bolsonaristas ofende os intelectuais relacionados e cospe numa tradição de 210 anos de uma instituição que merece respeito de todos, inclusive de quem proclama falso amor à Pátria.
*Jornalista, poeta e escritor
(Publicado no site Estação José Nêumanne Pinto no sábado 2 de julho de 2022:
domingo 3
Um Prêmio Nobel no Brasil
Meu poema, que fez Saramago chorar, foi citado no discurso de posse de José Paulo Cavalcanti Filho na Academia Brasileira de Letras (ABL) na sexta-feira 10 de junho de 2022, susto, emoção e honra
Na sexta-feira 10 de junho de 2022, o ex-ministro da Justiça José Paulo Cavalcanti Filho tomou posse na cadeira que era ocupada por seu conterrâneo Marco Maciel na Academia Brasileira de Letras (ABL). Não podia faltar à solenidade, de vez que o próprio Zé Paulinho, a quem fui apresentado por Tancredo Neves em pessoa, sempre disse que a Paraíba é o maior município de Pernambuco e além de ser o Estado de Joaquim Nabuco e Gilberto Freyre, ídolos de minha veneração. Anedota privada à parte, o fato é que, se não fosse, teria perdido susto, emoção, prazer e honra de ter versos meus citados da tribuna da casa de Machado de Assis.
Pois foi o que aconteceu. Lá para o fim do discurso, na hora em que a coruja pia, o novo imortal pôs-me ao lado simplesmente de Olavo Bilac, poeta de quem ouvia desde muito cedo minha mãe recitar o poema épico mais simples e bonito que eu conheci, O caçador de esmeraldas. “Bilac escreveu: Última flor do Lácio, inculta e bela, és a um tempo esplendor e sepultura”. E, apontando em minha direção, afirmou: “E José Nêumanne Pinto completou: “semente, coração, berço e caixão”. Tais são os atributos da língua de Camões. enunciados num poema de minha autoria intitulado A seara de Saramago e publicado em dois livros: As Tábuas do Sol, de 1986, e Solos do Silêncio, de 1996. Ambos têm orelhas de Ivan Junqueira, ex-presidente da ABL, prefácio de José Paulo Paes e texto de contracapa de Tereza Souza, que, na infância, havia inspirado um poema de Manuel Bandeira e sido amiga, desde jovem, de um antigo vizinho num subúrbio do Rio, Lins de Vasconcelos, do Rei do Baião, Luiz Gonzaga.
A primeira coletânea ainda estava fresca quando o presenteei a Saramago. Em agosto de 1986, o genial romancista viajou para São Paulo para lançar o que considero seu melhor livro, O Ano da Morte de Ricardo Reis. Levei-lhe o exemplar, e, claro, li o poema sobre nosso comum vernáculo com seu sobrenome no título. O militante comunista e jornalista profissional chorou discretamente e o autografou na folha de rosto. Nunca mais vi o xará na vida, mas guardo com zelo e ciúme o que escreveu: “Para o José Nêumanne e a Regina, este trabalho de um autor muito grato, que vive, de facto, com um pé em Portugal e outro na América Latina (Brasil) – a estima pessoal e intelectual de José Saramago, S. Paulo/86”.
A meu pedido, um querido amigo de fé de muitos anos, apesar da diferença de idades, o poeta e crítico Astier Basílio, que nasceu em Vitória de Santo Antão (PE), mas nos conhecemos na cidade de origem de seus pais, Tião e Socorrinha, Campina Grande, usou seus talentos de vasculhador de arquivos cibernéticos. E descobriu que se escreveu bastante sobre o romancista português no Brasil antes da viagem em que nos encontramos. Antes de se tornar conhecido como ficcionista, chamou a atenção pela militância comunista na imprensa lusitana depois da Revolução dos Cravos. No levantamento a que me refiro destaca-se Armindo Blanco. O português, que foi editor de features do Última Hora do Rio, escreveu, em meados dos anos 1970, vários textos sobre a trajetória do notório jornalista de ofício, exaltando seu enorme talento de ficcionista.
Em 1978, o crítico Vilson Brunel Mendel mencionou o autor de Manual de Pintura e Caligrafia no Suplemento Literário do Estadão. Em setembro de 1983, na coluna Informe JB, então editada pelo acadêmico Cícero Sandroni, de quem cobri férias, registrou a presença dos escritores portugueses José Cardoso Pires, Alexandre O’Neil e José Saramago no lançamento do livro Viagem à Literatura Portuguesa Contemporânea no Centro Empresarial Rio. O bibliófilo José Mindlin destacou O Ano da Morte de Ricardo Reis (de 1984) e Memorial do Convento (de 1982) em suas melhores leituras em 1985 no Suplemento Literário do Estadão.
Saramago passou despercebido por muitos críticos brasileiros, mas não por Wilson Martins e, principalmente Affonso Romano de Sant’Anna. Este nunca perdeu uma oportunidade de celebrar a edição brasileira da Bertrand do Memorial nem o pioneirismo da Difel ao editar seu primeiro romance reconhecido como fundamental pela crítica, Levantado do Chão.
Em 12 de janeiro de 1986, em artigo intitulado O cerco feroz da comunidade de amigos, publicado no Cadeno B do Jornal do Brasil, o autor destas linhas celebrou a coragem do militante comunista ao enfrentar “as polêmicas posições políticas semi-salazaristas do maior poeta europeu do século 20, o lisboeta Fernando Pessoa”. Dois meses depois, em 14 de março, na mesma editoria de variedades, foi exaltada pelo mesmo autor a ousadia da professora de literatura da USP e ex-editora de variedades do Estadão, Cremilda Medina, que elevou o lusitano à altura dos celebradíssimos romancistas Robert Musil, austríaco, e Ítalo Calvino, italiano, tidos como ocupantes do topo do Olimpo da literatura européia em fins do século passado.
Em 21 de agosto de 1983, três anos antes de nosso encontro num hotel em Santa Ifigênia, o correspondente do Jornal do Brasil na Itália, Araújo Neto, entrevistara o protagonista destas linhas e a reportagem fora publicada sob o significativo e premonitório título de O descobridor do Macondo português.
Há ainda dois fatos para a conclusão deste relato. Primeiro, a entrevista a Millôr Fernandes, publicada no Jornal do Brasil em 11 de outubro de 1986, a partir de gravação feita por André Ervilha e Cora Ronai. E, last but not least, a concessão do primeiro Prêmio Nobel para um autor em português, em 1998, três anos após ele ter recebido o Prêmio Camões.
*Jornalista, poeta e escritor
O inferno é pouco para punir Bolsonaro
Pobres brasileiros são asfixiados em sistema aplicado por Hitler por guardas rodoviários beneficiados pelo desgoverno, afogados em casa e desprezados pelos favoritos à polarização nas urnas
A eleição no fim deste ano porá o cidadão brasileiro na terrível opção entre a angústia e o pânico, de acordo com basilar definição de Antônio Lavareda e Joaquim Falcão em entrevistas publicadas no canal José Nêumanne Pinto no YouTube. Os ilustres especialistas podem acrescentar a suas afirmações dois exemplos claros do conflito entre o rentismo financista do atual desgoverno da direita extremada e o pobrismo de migalhas do decênio de decadência sob a esquerda iletrada, conforme a definiu o professor Roberto Mangabeira Unger no mesmo espaço virtual.
O primeiro case, para usar a “categoria farialímica” dos financiadores das desventuras dos trabalhadores famintos sob a tirania dos capitalistas selvagens, relata a pena de morte cruel executada, segundo o Fantástico da Globo, pelos agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF) Kléber do Nascimento Freitas, Paulo Rodolpho Lima do Nascimento e William de Barros Noia. Sua vítima foi Genivaldo de Jesus Santos, afrodescendente, 38 anos, com deficiências mentais e sem antecedentes na polícia, numa rodovia federal por eles patrulhada, em Umbaúba, Sergipe. Os assassinos improvisaram no porta-malas da viatura uma câmara de gás lacrimogêneo e spray de pimenta, similar ao sistema usado por nazistas em campos de concentração. O pobre trafegava de moto sem capacete na estrada, foi levado à delegacia e ao hospital, onde morreu de “asfixia mecânica e insuficiência respiratória aguda”, segundo laudo oficial do Instituto Médico Legal (IML) de Sergipe.
No local do “incidente”, a PRF tratou o sobrinho do morto, Wallison de Jesus Santos, e outros parentes como lixo tóxico. E, depois, ainda teve o desplante de registrar em nota oficial: “Na data de hoje, 25 de maio de 2022, durante ação policial na BR-101, em Umbaúba-SE, um homem de 38 anos resistiu ativamente a uma abordagem de uma equipe PRF. Em razão da sua agressividade, foram empregadas técnicas de imobilização e instrumentos de menor potencial ofensivo para sua contenção e o indivíduo foi conduzido à Delegacia de Polícia Civil em Umbaúba”. Três dias depois, tropeçando em vídeos do crime, a comunicação de um dos núcleos mais bolsonaristas das forças estatais de segurança falou em “indignação”, ao comentar o caso. Mentira e hipocrisia, habituais nessa grei.
Nada, contudo, se compara com a reação do chefe das tropas de assalto do bolsonarismo oficioso. Informado do incidente, Sua Insolência usando suas notórias deficiências em empatia e vernáculo, disse que seus agentes da ordem fascistoide “abateram um marginal”. Sem informações confiáveis sobre o caso, Jair Bolsonaro recorreu a verbo usado para definir o tiro de misericórdia usado em cavalos com perna quebrada. E tornou a vítima ilibada agente da covarde execução de uma pena de morte, ilícita no Brasil até para punição de perigosos bandidos de verdade.
O capitão-terrorista fez essa declaração absurda num “bate-volta” a Recife no fim de semana, onde e quando sobrevoou bairros atingidos por deslizamentos provocados por mortíferas inundações. Aproveitou a ocasião para transferir para governadores e prefeitos toda a própria culpa na falta de planejamento para enfrentar dramas como aquele, que provocou mais de uma centena de óbitos na região metropolitana da capital pernambucana. “Faltou iniciativa”, pontificou, referindo-se ao governador de Pernambuco, Paulo Câmara, e ao prefeito de Recife, João Campos, ambos do Partido Socialista Brasileiro, engajado na campanha de reeleição de seu provável adversário em eventual segundo turno, Lula da Silva.
Ora, bolas, a responsabilidade pelos deslizamentos não é das vítimas, mas de péssimos gestores, que desgraçam há mais de um século, a República, Estados e municípios no Brasil. Inclusive aqueles que sob o comando de Lula e sua assecla, Dilma Rousseff, afundaram os pobres habitantes das periferias das metrópoles numa vala aberta de miséria, fome, inflação, desemprego, angústia e pânico. Se Bolsonaro é o cínico dos cínicos, o ex-dirigente sindical de uma nau que continua e continuará naufragando, caso se confirme o triunfo da polarização entre o rentismo e o pobrismo, é seu mais óbvio competidor. Seja no país como um todo, seja no Estado natal do petista, onde dispõe de folgada maioria. E, ainda assim, não se dignou ir até lá e exerceu o mutismo auto-piedoso, ao limitar seus comentários a uma solidariedade fajuta e inútil. E a um pedido para ser convocado a atuar pelas vítimas, sem explicar através de quem elas poderiam comunicar-se com essa sua nova encarnação de Pôncio Pilatos, que estende a bacia e diz: “lavo minhas mãos da falta de sorte de afogados e desabrigados”.
Habituado a mentir e a se regozijar da desgraça alheia, em particular de eleitores de inimigos, o capetão sem noção montou numa motocicleta e comandou uma motociata de inspiração mussoliniana, com a cabeça descoberta e um bajulador também sem capacte na garupa, o notório major Vitor Hugo. Assumiu postura “isonômica” à de Genivaldo, mas obviamente delituosa, pois fez campanha eleitoral fora de época, E gargalhou a dragonas despregadas da desgraça do asfixiado e dos inundados para celebrar uma improvável vitória futura. Ou seu iminente golpe. Com as mais obscenas manifestações de gáudio, ao comparecer ao sepultamento do que chama de “pátria amada” sob sua gestão de demolição absoluta e sem piedade alguma. Para um falso cristão, que, mesmo se chamando Messias, adula vendilhões do templo como se fossem monopolistas da fé e da virtude, rindo da morte de um Jesus pobre, como o de Nazaré, o inferno como pena é pouco. Muito pouco, convenhamos.
*Jornalista, poeta e escritor
Falsa democracia mata e solta
A pretexto de poupar bons servidores, reforma da Lei da Impobridade Administrativa, feita por inimigos de Moro e da Lava Jato, impede a punição do desgoverno Bolsonaro pela tragédia de Manaus
Não foi por falta de crimes: 31 brasileiros morreram em Manaus, durante a pandemia da covid 19, por falta de oxigênio e por terem servido de cobaias na tentativa de provar o negacionismo da equipe dirigente do Ministério da Saúde, sob a chefia do general da ativa Eduardo Pazuello. Não foi por falta de provas: o Ministério Público Federal denunciou o ex-ministro e dois ex-responsáveis pela “gestão” da pasta, Hélio Angotti e Mayra Pinheiro, por omissão flagrada e ululante. Nem por desconhecimento de causa: contra o combate atroz do chefe do desgoverno, Jair Bolsonaro, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid no Senado, ouviu fatos, versões contra e a favor e reuniu vasta documentação comprobatória. E o juiz federal Diego Oliveira, da 9.ª Vara Cível Federal na capital do Amazonas, declarou-se, na sentença, impedido de puni-los pela exigência do dolo dos agentes, incluída pela maioria parlamentar necessária na revisão da Lei da Impobridade Administrativa.
Também nenhum cidadão de bem, que ainda há no Brasil, por incrível que possa parecer, terá como argumentar que a tétrica rasura não tenha sido exaustivamente apontada por procuradores, jornalistas e outros responsáveis pela vigilância dos atos do Congresso Nacional. Tudo foi denunciado, explicado e argumentado. Agora é tarde, parodiando Luís Vaz de Camões, Pazuello, Angotti e Mayra estão impunes em razão da existência de inúmeros servidores, que, ao contrário deles, poderiam ser erradamente punidos pela adoção do evidente dolo eventual. A CPI acabou e os responsáveis pelo afogamento a seco de 31 cidadãos brasileiros condenados à execução cruel pela irresponsabilidade alheia de funcionários públicos fardados ou de jaleco, tiveram seus delitos liminarmente anistiados sem sequer a deferência de um decreto de graça de seu chefão. Sob o silêncio cúmplice ominoso de uma esquerda incapaz de pedir perdão pelos pecados de sua lavra e de um centro incapaz de perceber o que dista do próprio umbigo, a direita estúpida e negacionista goza as delícias do poder ilimitado sem freios, penas ou confissões. O Brasil não é um país, é uma pústula. A república, uma récua de assaltantes.
Em tal panorama o que será a tal democracia, que em nome da igualdade de todos perante os rigores da lei, festeja a falácia dos desiguais em prejuízo dos desvalidos? A liberdade, feita farsa na boca imunda do oficial terrorista que planejou atentados a bomba em bivaques em nome do combate sindical pelo aumento indevido do soldo pessoal e intransferível, mata aos magotes. Comparado com o capitão incapacitado por insuficiência de massa encefálica de se submeter ao aperfeiçoamento dos oficiais, o “nobre/’ mártir da liberdade de expressão que ordena colegas meganhas a dispararem na “caixa dos peitos” dos manifestantes do outro lado é um mísero coitado. Mas, tornado o comandante improvisado do pelotão do fuzilamento do direito à opinião do inimigo desarmado, virou o ai-jesus de patriotas de araque que confundem a pátria mãe com uma oportunidade infinita e imperdível de negócios escusos e polpudos.
Daniel Silveira, Jair Bolsonaro, Alexandre de Moraes e os ególatras em busca de inexistente luz própria são atores da tragicomédia surreal dos que atuam como vacas de uma presepada com roteiro imoral e cínico. Nenhum coleguinha com juízo impediu que Dias Toffoli introduzisse uma anta fardada no Supremo Tribunal Federal. Em busca dos cinco minutos de fama, já que não têm como chegar ao bilhão de reais do retrato de Marilyn Monroe pintado por Andy Warhol, seus pareceiros de fantasia de paz em conflitos de mequetrefes beijaram o dólmã dos milicos pendurados nas tetas do bolsonarismo e não têm mais como se livrar da volúpia dos que, nunca tendo visto tanto mel, não conseguem se afastar dos enxames. Nada podem fazer para obstar a ousadia do ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, doidinho para atuar na nova missão “gloriosa” das Forças: a de restaurar o voto de bico de pena na República Caduca. Não faltou exegeta político de ocasião que fizesse cara de paisagem diante do pré-golpe da substituição do obscuro general Heber Portela na mensagem a Garcia que seus antigos companheiros de farda tentaram na arapuca Proconsult para fazer da minoria de Moreira vitoriosa contra a maioria de Brizola. Em conluio, claro, com a vergonhosa substituição do bicho do delegado dos tempos antigos pelas roletas atuais do almanaque do Exército.
No dia em que o intendente incompetente, que, não nos esqueçamos, já montara seu bivaque em Manaus, foi agraciado pela comunidade do Centrãoduto, recebeu o indulto antecipado à própria incapacidade, a advogada Luciana Pires assumiu a causa da delegada Fátima Belém. Ninguém precisava associar a proprietária de R$ 1,8 milhão em dinheiro vivo em casa às tramoias jurídicas do príncipe herdeiro Flávio Bolsonaro no peculatário-geral carioqueiro da Alesp. Mas como não fazê-lo, se também foi na quarta-feira 11 que o Ministério Público Estadual do Rio de Janeiro pediu a anulação da denúncia contra o chocolateiro das grifes? E não pode ter sido por outro motivo que não fosse o excesso de provas. O mesmo que levou o então presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Gilmar Mendes, magistrado das encrencas elitistas, usou para inocentar o compadre Michel Temer, ameno companheiro de vôos transatlânticos.
Na pocilga cívica em que um oficial ressuscita o Proconsult para garantir a permanência do “mau” militar (apud Geisel) no Alvorada, o inocentão dos sítios emprestados e das coberturas descobertas se faz de doidinho de faroeste. Ou seja, o pleito parodia chanchadas da Atlântica em réquiem profano de profundo mau gosto. Arre égua, Satanás!
*Jornalista, poeta e escritor