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Meu novo livro de poesia

A Editora Ibis Libris lançou meu novo livro de poesia, Antes de Atravessar, com texto de orelha do acadêmico Antônio Carlos Secchin, prefácio de Alexey Bueno e apresentação de Astier Baslio. O livro mereceu os seguintes comentários de críticos e poetas:
Hildeberto Barbosa Filho Facebook 14 de janeiro de 2023
Breve Comentário Crítico
José Nêumanne Pinto é jornalista de texto hábil e contundente. Romancista premiado e lido, com simpatia, argúcia analítica, isenção e brilho, por um Wilson Martins. 0 silencio do delator integra minha lista de romances amados. Fala bem perto de mim. Escreveu sobre casos políticos que ainda hoje envergonham a história da República. Faz parte de minha geração, ainda quando o Cine Capitólio, em Campina Grande, abrigava as sessões bacurau, depois da meia noite, em plena ditadura. Depois se foi para o Sudeste e lá se ficou, a consolidar sua trajetória de jornalista polêmico e competente. Zé, como o chamo, é também poeta. E poeta dos melhores. Daqueles que não temem o perigo e a sedução das palavras. Poeta das coisas de dentro, dos elementos da terra, dos fatos banais, dos órgãos íntimos do amor e seus múltiplos derivados. Quem quiser conhecer esta sua faceta de mágico das palavras que vá às páginas de As tábuas do sol, Barcelona, Borborema, Solos do silêncio e o recém publicado Antes de atravessar. Aqui, feito um Caronte pelo avesso e disposto a duelar com a beleza e a verdade de sua musa maior, única e última, Izabel, se propõe uma travessia vital que parece ultrapassar as fronteiras da morte. Lirismo sem açúcar, verbos de sal e poeira, cadência telúrica, expressão coloquial, verso alongado, poética excessiva, coisa concreta e metafísica que não elide o sol, o sertão e a beleza solitária que só a poesia sabe preservar. Tudo, enfim, se mistura na sua dicção, como os elementos naturais se mesclam nas entranhas do que é e do que existe. Uma beleza que dói e que comove…
(Hildeberto Barbosa Filho é doutor em Letras e professor da Universidade Federal da Paraíba e membro das Academias Paraibanas de Letras e de Filosofia)

LETRAS NACIONAIS: O LUGAR DE NÊUMANNE
Deonísio Da Silva *
Ele é mais conhecido por suas atividades de jornalista corajoso e lúcido em análises e opiniões, mas seus livros “Antes de atravessar” e “O silêncio do delator” são pontos altos da poesia e do romance brasileiros.
Estou aqui, ainda inebriado pela leitura do luminoso “Antes de atravessar”, pensando em que lugar de meu coração acolher esses belos e sentidos textos, pois não são somente versos, trazem também outras travessias, como a prosa poética que lhes faz companhia.
Já sei: ficarão junto a Carlos Nejar, a Mário Quintana, a Carlos Drummond, a João Cabral, a Manuel Bandeira, a algum haicai de Dalton Trevisan falsamente extraviado num conto, a uma das epifanias de Neide Archanjo.
Quem sabe, vizinhos da Eva e da uva de Ledo Ivo, de alguma tirada sacra do Padre Vieira ou de certa obscenidade contida de outro clássico.
Sim, clássicos são também esses versos no exato sentido da palavra: equipamento indispensável para a viagem do amanhecer ao poente e deste ao eterno retorno que todos fazemos no cotidiano, comece ou termine o dia.
De alguns poemas gostei mais, como de “Magnificat”, quando “os anjos tocam em sua fanfarra um ritmo de axé”.
Nos achados deste outro marco, “Ecce homo”, eis, de novo, José Nêumanne Pinto: “E aqui estamos, eu e Deus,/ Só nós dois no sertão da existência”.
E levo para concluir essa leitura a boa mensagem de “Fundação do Pai”: ” Somos todos primogênitos,/ Não nos vendemos por um prato de lentilhas”.
Os acompanhamentos de Antonio Carlos Secchin, Alexei Bueno e Astier Basílio ornam este livro magistral, tão bem editado por Thereza Rocque da Motta.
Pairando sobre todos os textos aqui reunidos está Isabel, a musa que, diferentemente da Beatriz de Dante, não apenas inspira a caminhada do autor: ela lhe dá antes o Paraíso, e o dá já, tal como prescreve a recomendação da bíblia, tão bem invocada ao longo deste livro que me deixou comovido por tão plácida leitura: “goza a vida com tua amada porque esta é a parte que te cabe dos trabalhos que suportas”.
* professor e escritor, Doutor em Literatura Brasileira pela USP, autor de de “Avante Soldados: para trás” e “De onde vêm as palavras”.
(Publicado no Facebook em 22 de janeiro de 2023)

Fernando Coelho, poeta e jornalista, no whats app
Precisei me desvestir dos meus mantos de metáforas. Abandonei os muros rasos e ralos da minha trincheira de quase inútil proteção. E permiti que os solavancos do susto não casual trepidassem o meu instinto, ao abrir, cheio de volúpia, o livro ANTES DE ATRAVESSAR, do poeta e jornalista José Nêumanne Pinto, esse caudaloso e cáustico cronista político da atualidade. Certamente busquei, com avidez, vocalizar proteção de Camões a Patativa do Assaré, de Lindolfo Bel a Adélia Prado, de Roberto Piva a Hilda Hilst, intentando uma travessia menos tempestuosa e de maior temperança, por esse louco igarapé de palavras, torcidas em versos, da poesia dilacerante e sedutora de Nêumanne, mas de inútil valia a minha precaução.
Não é um poeta de mares e desertos, nem da paixão e das estrelas, apenas. É um poeta da rosa dos ventos de toda alma humana. Ele tece um mundo de águas e crepúsculo, que me obriga a, ao ter sede, gritar, e, ao beber a água do amor, a ressuscitar. Expõe, compondo a sua poesia, hematomas sonoros, que marcam, não o corpo, mas o sonho de quem sonha para viver. Entrega, para a travessia, caminhos de amor, sem beiradas, e rios de paixão, sem margens. Lendo e relendo ANTES DE ATRAVESSAR, uma certeza: eu não quero atravessar, quero morar no antes, onde nasce o segredo alquímico da poesia agridoce de José Nêumanne Pinto.

João Almino, romancista, diplomata e acadêmico da ABL no Gmail:
Nêumanne, os dois textos são primorosos. Vinda do Secchin, faz todo o sentido que a orelha trace a comparação e contraste com Cabral. Entre as muitas referências da apresentação, o destaque a meu ver vai mesmo para a Beatriz/Isabel, que sabemos, pelos dois textos, ter presença marcante no livro, ao lado de Artur. Obra de maturidade, que certamente merece os dois comentários tão elogiosos.

que seu ótimo livro continue navegando como merece.

Álvaro Alves de Faria no Gmail
Li seu livro durante a madrugada e me senti um homem feliz.
Encantado.
Poemas belos poemas belos poemas.
Especialmente os dedicados à Isabel.
Senti-me um homem feliz por saber que ainda existe poesia
neste vale de lágrimas e enganadores que é o Brasil.
Um livro belíssimo. em todos os sentidos, em todas as palavras,
em todos os poemas, letras, vírgulas.
Um livro que tem o poder do encantamento.
Por isso agradeço você ter escrito um livro assim.
Tocou-me profundamente.

DOIS LANÇAMENTOS
Sérgio de Castro Pinto
(A União, João Pessoa, 17 de fevereiro de 2023)
José Nêumanne Pinto é homem de muitos livros lidos; homem que se abriga sob a sombra das estantes acesas: “livros /crepitam/ no forno/ das estantes// livros / são pães/ eucarísticos/ crocantes”*.
Porém, apesar de ser um homem dedicado aos livros, Nêumanne escreve vivendo; ou, bem ao gosto do amigo Jomard Muniz de Brito, escrevivendo.
Pois bem. Os poemas de Nêumanne são umbilicalmente ligados à vida, escrevem-na a cada verso, a cada estrofe. Isso, contudo, sem descurar da forma, sem negligenciar do construto da linguagem. Destaque, nesse “Antes de atravessar” (Ibis libris Editora, Rio de Janeiro, 2022), para a alta voltagem dos poemas eróticos dedicados à Maria Isabel, sua companheira, que devem constranger os arautos da moral e dos bons costumes.
Os poemas de Nêumanne quase sempre disfarçam a atmosfera elegíaca que os envolve, tanto que o eu-lírico só alusiva e implicitamente recorre ao ubi sunt qui ante nos fuerent (“Onde foram aqueles que foram antes de nós? ”), como no poema “Minha tia, nossa genealogia”. No que corrobora as palavras de Antônio Carlos Secchin, segundo as quais o eu-lírico celebra tão efusivamente a vida que chega a “desdramatizar a morte”. Ainda para o autor de “Todos os ventos”, diferentemente da antilira de João Cabral de Melo Neto, que convencionou chamar de “poesia do menos”, a de Nêumanne é uma “poesia do mais”. E continua: “Exuberância traduzida no jorro dionisíaco dos seus versos, em que as palavras ganham textura, sabores, cheiros…” Ora, mas se as palavras adquirem textura, sabores, cheiros, certamente são palavras pensadas, sopesadas e medidas, o que denota que ao jorro dionisíaco se consorcia a lucidez apolínea de José Nêumanne Pinto.
Em suma, a faculdade de aparar as arestas, os excessos, de evitar que os sentimentos corram destrambelhados à frente das palavras, possui o dom de condensar os poemas que, à primeira vista, soam longos e discursivos, assim como soam falsamente longos e discursivos os de Walt Whitman e os de Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Fernando Pessoa.
Três nomes representativos da poesia brasileira chancelam “Antes de atravessar”: Antônio Carlos Secchin, Alexei Bueno e Astier Basílio, este último já em vias de concluir o doutorado em Literatura Russa pelo Instituto Maksim Gorki, de Moscou.
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Estranho, sem dúvida, o título do mais recente livro de Sidnei Schneider: “Quichiligangues”. E tão estranho que os dicionários mais conhecidos, o Aurélio e o Houaiss, simplesmente omitem a palavra, constando apenas no Dicionário Escolar da Língua Portuguesa, de Francisco Silveira Bueno, com o sentido de insignificância ou bagatela, o que me levou a concluir que os poemas nele reunidos tratavam de ninharias, de nonadas, de vidrilhos, de mixarias, das “pequenas grandezas do universo”, bem na linha de um Manoel de Barros. Ou então que tivessem alguma semelhança com a poesia de Francis Ponge, que privilegia as coisas, os objetos, descortinando-lhes a face oculta, aquela que só o olho de lince do poeta é capaz de desvelar, de descobrir. Mas, não, ao que tudo indica, o que o poeta julga insignificâncias, nonadas, são os seus próprios poemas, o que não corresponde à verdade, pois textos como “Porta”, “Como lidar com o rio”, “O Trombonista” e muitos outros, já asseguram a qualidade do livro.
Destaque para a concisão dos poemas, que me lembram um verso lapidar do Lêdo Ivo de “Ode e elegia”: “Oceano reduzido numa vaga”. O prefácio de “Quichiligangues” é de José Eduardo Degrazia, poeta também gaúcho e da melhor cepa. As ilustrações do livro são de Fabiano Rocha. A editora é a Dahmer.

*Poema “comunhão”, do meu livro “Brando fogo das palavras”, ainda inédito.

Melitzá, liturgia poética do Zé
Jacob Pinheiro Goldberg, Facebook
José Nêumanne Pinto, segundo meu diagnóstico, é um poeta, portanto um ser confuso, irreal, surreal, personagem de si mesmo, nela prisioneiro e libertário.
Viajante sempre, em navio de cabotagem, escreve mais um de seus Sermões, que, sagrado, profano, carrega, em águas turbulentas, um barco à deriva, rimbaudiano, que tão lembra O Barco dos Mortos, de Bruno Traven… Antes de Atravessar.
E o título vale por si mesmo num fluxo de associação de idéias, um mergulho no inconsciente do autor.
A escrita, por sinal, contaminada pela oralidade de Zé, se vê revestida de afetos, contestando a ordem e a estruturação.
Foucault diz que “os procedimentos de controle e delimitação do discurso, funcionam, sobretudo, a título de princípios de classificação, de ordenação, de distribuição, como se tratasse desta vez , de submeter outra dimensão do discurso: a do conhecimento e do acaso”.
O poema Decomposição da folha se inicia numa referência ao meu intelectual de paradigma, Garcia Lorca, assassinado pelos fascistas espanhóis de Franco, no último verso, pergunta “o que será de mim, hein?” e é a síntese numa catarse icônica do psicodrama estético do mundo em que nos foi dado viver.
Numa catarse icônica estamos perante, diante, antes da Páscoa, antes da travessia, antes e diante de outra passagem em que a tragédia murmura: choramos do “olho cego de Deus”.
Sem espaço nem tempo, o passatempo genial do “bigodinho de Hitler, verdade alegre e verdade cruel do bigodinho de Chaplin”.
Esta, a linha de costura sem linearidade que a obra de Zé se enrola num monólogo neste divã gasto em que ouço as profundas tristezas do romantismo de Mahler que se esconde e se revela na literatura arrebatada de um sertão mudo, surdo, rouco, louco, apoucado e sublime que nos mobiliza a confissão deste jornalista “nos jornais, nas revistas ou nos noticiários da rádio e da TV”.
Assim como Garcia Lorca e Bob Dylan, “furarei teus olhos para que não vejam o inferno”, Zé canta, conta, encanta o corpo desse ser estando que é o espírito, culpa contemporânea, que não fala, reza, finalmente, mas não por menos “minha sarça vai arder e jogarei incenso na fogueira”.
O tempo da lógica arrasou a felicidade, resta a escrita visionária da última estima na condição humana, uma literatura de palavras, não de esquiva.
Jacob Pinheiro Goldberg, escritor, psicanalista, advogado.

De Ary Albuquerque, empresário e poeta:
Terminei de ler seu livro e os comentários: Secchin, Alexei e Astier, além dos discursos, seu e do Vilaça.
Não sou crítico literário , nem tenho pretensão de ser, mas, como o amigo teve a delicadeza de me enviar seu livro, vai aqui um breve comentário, de leitor, a respeito do ANTES DE ATRAVESSAR:
Seu livro é um canto poético que transborda emoções de um ser maduro que, declara ao mundo o seu deslumbramento pela mulher amada, Isabel, e o filho Artur. Não esquece, também, antes de atravessar para o outro lado, os seus familiares e os amigos e os canta com uma voz sonante e digna de aplausos.
Uma poesia vicinal, pois, procura ligar o passado ao presente, intimista e, porque não chamar de obsessiva, no sentido de fixar-se no grande amor que devota a sua musa, ISABEL e ao ARTUR, seu filho.
Só cabe uma palavra final: PARABENS , AMIGO!
Do seu amigo de sempre, Ary

De Ricardo Viveiros, jornalista e escritor, no WhatsApp:
Você é um poeta que — muito além da boa arquitetura — transmite emoção e provoca reflexões.
Seus versos acrescentam, porque trazem o prazer da poesia nos fazendo sentir e pressentir a vida como ela se apresenta.
Gostei do livro, gostei do poeta!

Machado visita Almino em romance de gênio

Homem de papel traz o último protagonista do maior romancista brasileiro, com sua sutileza explícita, a fúria de Barreto e um toque de Rabelais, para coroar grande feito de nossa ficção

Uma obra-prima da literatura é uma peça muito rara, muito especial, de altíssima qualidade. Ser posta no alto de todos os pedestais e altares da crítica impõe um imenso respeito e também uma enorme solidão. Mas nem sempre esse píncaro significa esterilidade. Ao contrário: estar nesse pico pode gerar outro texto a merecer elogios dos críticos especializados. E também a satisfação de um grupo seleto, mas numeroso, de leitores. O efeito gerador da genialidade consta de dois dos mais lidos e celebrados romances do mestre dos mestres, Joaquim Maria Machado de Assis: Esaú e Jacó e Memorial de Aires, o canto de cisne do “bruxo” do Cosme Velho. Eles escalaram o Olimpo da ficção nacional e para lá deram passagem para Homem de Papel, de João Almino, editado este ano pela Record.
Tal livro entrega a um aficionado do mulato genial tudo o que, desde o título, seu texto promete. O protagonista e/ou narrador é um tipo centenário, no qual o maior romancista brasileiro empenhou sua genialidade e sua experiência: o conselheiro Aires. E aqui a palavra tipo pode ser empregada em todos os seus valores semânticos. Antes como personagem de uma peça de ficção, corpo dos logaritmos do passado, os chamados tipos móveis, de que se compunham as frases dos impressos em geral e dos romances em particular no começo do século passado. A narrativa foi transposta de um material original, do qual emergiu o texto do contexto da personagem e de seu tempo. Ao leitor pouco importa que tenham mudado as formas originais dos tipos, que saíram dos prelos oriundos da mecânica de Gutenberg. E saltitam nas máquinas compositoras eletrônicas atuais, no gênero da cibernética, descrita por Norbert Wiener, autor de uma manual profético de relevância técnica e científica reconhecida.
O Machado ressuscitado na composição eletrônica usada pelo diplomata (como a personagem) ressuscita em plena forma na figura recriada de um antigo conselheiro do Império para se tornar palpiteiro amador, ou melhor, não profissional, da “verdadeira” protagonista do livro, a colega Flor, na atual republiqueta. Isso se reproduz na atemporalidade das cenas vividas pelo Aires duplamente romanesco, quando algumas vezes ele se perde e se reencontra na confusão estabelecida entre a memória remota de uma crise desafiadora dos oitocentos e ressurge na lembrança próxima dos conflitos do atualíssimo segundo milênio. Trata-se evidentemente de uma tarefa espinhosa, um desafio e tanto, de vez que o autor contemporâneo empenha seu talento de escriba na recriação do tipo machadiano por se obrigar à verossimilhança. E este é o mais exigido dos atributos de um criador literário de qualquer época. Almino é potiguar de Mossoró e elegeu Brasília como lócus primordial de seus oito títulos de ficção. Machado, um urbanoide carioca de outra distante e praieira capital federal em plena deterioração da sétima, e talvez mais desastrada, reencarnação, do golpe da república privatizada, que o Aires original conheceu E assim teria convívio de menor familiaridade com um século inteiro de golpes e contragolpes armados até os dentes, contrariamente ao que ocorria no Segundo Império, cenário no qual viveu e trabalhou.
Almino, sertanejo no cerrado do Planalto Central, saiu-se desse qüiproquó com aquela característica reconhecida em seus ancestrais por Euclydes da Cunha, militar, gênio literário e vítima fatal da imperícia no manejo de armas: a têmpera, que não se traduzia no sinônimo mais comum, sempre a lembrar a força física. Reconstruir o mundo do amado de Carolina não é nem nunca foi uma tarefa de Hércules, e o fez com a finura afiada de uma adaga árabe ou de uma peixeira nordestina. Adestrado e bem-sucedido na saga homérica de voltar a Ítaca no romance anterior, o também magnífico (desde o título fidelíssimo) Entre Facas, Algodão, sobre o tema ancestral da volta ao pago sagrado, mostra no mais recente, sua intimidade absurda com a ironia refinada do criador de Aires. Ao qual acrescentou a crítica amarga e arrebatada de Lima Barreto, inspirador secreto de seu primor machadiano. Policarpo Quaresma passeia pelas páginas de Homem de Papel em cenas antológicas, caso do almoço entre os trigêmeos centrais da trama – um esquerdista de boteco, um oportunista de direita e uma “isentona” de almanaque -, talvez a que melhor resume as intenções do autor. Como no Brasil, onde um compadre do imperador o derrubou para criar uma república de opereta. Nela um camelô de feira reuniu embaixadores do resto do mundo para denunciar como fraudulenta a eleição da qual ascendeu ao poder discricionário, que exerce sem empatia nem civismo, sem sabedoria nem bom senso.
O protagonista que sai, literalmente, das páginas, para intervir na “falsa”, mas muito verossímil, farsa da permanência do desgoverno interminável dos medíocres (atenção, a palavra reproduz um eufemismo!), mantém a fúria de Barreto e a delicadeza de Machado quando abandona a sutileza de Sterne, herdada do vovô guanabarino. Fá-lo ao adotar no episódio final da anta a entronização da estupidez com a verve de Rabelais. Não é preciso recorrer à escatologia da descarga intestinal do tapir candidato para atingir esse paroxismo, talvez intencional do autor, porque, ao longo da descrição, o leitor deleita-se com a cultura enciclopédica do escritor, com a entrada da alimária-símbolo do integralismo de Plínio Salgado, intelectual de direita que o golpista da hora imita sem saber. Mas o faz de forma tão imprudente que acaba por mostrar que ignora até a anta de tênis, adotada como símbolo das poucas luzes da ditadura no Pasquim.
Saiba o leitor, que navega entre monstros e sereias, como o herói helênico depois da invasão de Troia por um cavalo de pau, que estes comentários irreverentes aqui expostos decorrem apenas de uma das muitas leituras da obra comentada. Essa parte da intromissão de um homem de papel na ficção brasileira com verve e delicadeza, dão-lhe todos os méritos para subir ao altar elevado do ciclo que a inspirou, como mais um produto do engenho do qual herdou o que de melhor nele há.
*Jornalista, poeta e escritor

Seu Tonho Torres entre memória e delírio

Após 12 anos escrevendo-o, o romancista baiano lançou em 2021 mais um texto seminal na ficção brasileira narrando trajetórias interna e externa no êxodo de um menino sertanejo da roça à praça

Quebrando um silêncio de 15 anos desde a edição de Pelo Buraco da Agulha, em 2006, o escritor Antônio Torres, nascido em Sátiro Dias, que já foi Junco no sertão da Bahia, repórter em Salvador e publicitário de sucesso em São Paulo, lançou de Itaipava, na Serra Fluminense mais um romance. E este o põe num lugar na estante das maiores obras de ficção do Brasil, Seu 18º livro é também a 12ª obra de um nívelcomparável com das grandes narrativas que retratam a fuga de roceiros pobres para grandes cidades onde tentam sobreviver e empurrar de barriga cheia a chegada da Indesejada das Gentes.
No universo onde brilham o engenho e a arte Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Ariano Suassuna, Ismail Kadaré, Gracilliano Ramos, Jorge Amado, que saudou sua estreia com júbilo e entusiasmo, e José Américo, que fez questão de registrar por escrito sua supina admiração, Torres inovar em texto e contexto em sua mais recente aparição no universo das letras. Em Querida Cidade, ele recorreu aos truques do cinematógrafo dos irmãos Lumière, apoiando o esqueleto de sua estória em fusão em vez de cortes e planos. E deixando a cronologia por conta de citações de filmes, peças de teatro, livros de poesia de bancada e, sobretudo, grandes sucessos do cancioneiro popular, em que se destacam os sambas-canções que fizeram enorme sucesso à época em que ocorreram os fatos narrados e os delírios consumados. A cultura do narrador atinge a posição de enciclopédia, exigindo a presença de um memorialista de escol, mesmo quando não esteja citando literalmente a lembrança do personagem. Isso, é claro, exige uma cultura proverbial e um conhecimento detalhado das obras de uma época em que o Brasil viveu o apanágio do cancioneiro popular, particularmente os favoritos dos notívagos do samba-canção e a turma do sol e do barquinho no mar da bossa nova.
Seu Tonho, como o chamo desde que nos conhecemos, quando eu estreava no jornalismo e ele se destacava na publicidade. E, já ficava famoso, então, como ficcionista de primeira linha à época dos festivais de Música Popular na Record e dos filmes de Godard da geração Paissandu, pois já estava de mudança para o Rio, antes de morar na Serra Fluminense, onde vive hoje. E agora desloca-se para o Rio nas noturnas sessões semanais da Academia Brasileira, de que é membro. Ou para o exterior, para onde é sempre convidado para atuar em encontros com os papas da literatura mundial. E foi perto de Petrópolis e Teresópolis que ele afiou seu estro para merecer a definição magistral da também romancista e também acadêmica Nélida Piñon, que flagrou seu grande feito como escritor. Pungente ao narrar as dores de seus protagonistas carregados de medo, saudade e desilusão, dores atenuadas com “subterfúgios que a história quer silenciar”. A autora do genial Um Dia Chegarei a Sagres, publicado à mesma época do último romance de Torres, mexeu nessa definição – como sabe fazer com maestria – no segredo capital da convivência dos enigmáticos arquétipos urbanos presentes no tecido textual dele com a pequenez, mesquinhez, racismo e outros preconceitos encontrados em cenários e seres irreais tirados da realidade com a beleza, a solidariedade e a magia do bem.
Entre a memória e o delírio da obra se permanentemente altos de Torres convivem com o prazer de uma leitura comovente da beleza da língua de Camões, Bilac e Castro Alves, baiano como ele, mantida em sua integridade nos grotões dos sertões com aquele irresistível sabor de antiguidade e permanência. Que não se perderam com as importações de outras falas e outras culturas nos espaços urbanos, onde também habitam os seres e costumes reproduzidos ou criados por nossa ficção mais admirável e lúcida. O amor à urbe construída pela mão de obra de pedreiros e operários braçais também se manifesta na arte fulgurante de Antônio Dias, Tarsila do Amaral. Cândido Portiari, Aldemir Martins e Antônio Bandeira. E essa beleza consta do próprio título da obra de Torres: querida é a cidade prometida, não a roça abandonada. Mesmo tendo o guri de dez anos que a abandonou para acompanhar um parente quase desconhecido.E e à qual voltou para saber por que razão o pai abandonara a família em busca dessa miragem, que nunca mais será como antes nunca fora. Jamais tal segredo será revelado. Mas, seja qual for o desfecho, nunca trairá o amplíssimo significado semântico do verbo querer, com tudo o que significa como sonho, sinônimo de fiasco e também de realização. Ao abrigo dessa senha mágica, propiciada pela amada língua portuguesa, a saga do menino só será cumprida se nela permanecerem na fusão cinemática o sonho, o suor, as lágrimas, a dor e o prazer que nossa boa literatura revela, mesmo ao esconder.
Este leitor, beneficiado com tudo o que de generoso e sórdido contém o Brasil mais profundo dos sertões do Semiárido e outros quaisquer, vividos na própria vida e nas existências que não existiram na realidade, mas se produzem na ilusão como na desilusão, vem a público manifestar a profunda dívida de gratidão a essa leitura magnífica. Foi um prazer enorme conhecer mais essa faceta de seu talento, pareceiro.
Jornalista, poeta e escritor

Desgoverno despreza Biblioteca Nacional

Instituição secular dedicada a preservar a memória nacional de cultura, ciência e literatura homenageia com medalhas de mérito delinquentes que atentam contra liberdade de pensar e criar

“Filhos do sec‘lo das luzes! / Filhos da Grande Nação! / Quando ante Deus / Vos mostrardes, / Tereis um livro na mão: / O livro — esse audaz guerreiro / Que conquista o mundo inteiro / Sem nunca ter Waterloo… / Eolo de pensamentos, / Que abrira a gruta dos ventos / Donde a Igualdade voou!”.
Esta estrofe, simplesmente espetacular, foi escrita pelo maior poeta brasileiro de todos os tempos, Antônio Frederico de Castro Alves, pertence ao poema O Livro e a América, foi publicada na coletânea intitulada Espumas Flutuantes e eu me familiarizei com ela antes mesmo de ser alfabetizado. Minha mãe, Mundica Ferreira Pinto, dizia de cor nas noites quentes do sertão do Rio do Peixe a todos os seus filhos reunidos seus poemas preferidos. A doce lembrança de minha mãe, que perdemos há seis meses, me serviu de lenitivo à dor causada pelo impacto da noticia da lista dos beneméritos da bibliofilia na visão do atual desgoverno da causa familiar, convocados para receberem a medalha da Ordem do Mérito do Livro. O presidente da centenária instituição literária e cultural, Luiz Carlos Ramiro Jr., ao estilo bolsonarista de ser e não ler, misturou Jesus Cristo com Zé Buchudo, ou pior, Machado de Assis, o maior ficcionista brasileiro de todos os tempos, com o ex-PM do Rio e deputado federal Daniel Silveira, condenado pelo Supremo Tribunal Federal a oito anos e nove meses por atos antidemocráticos e no dia da publicação agraciado por indulto presidencial de discutível constitucionalidade. Não se sabe se por vergonha ou cinismo, o executivo não divulgou a lista dos agraciados, entre os quais conhecidos iletrados ágrafos como as deputadas Bia Kicis e Carla ]zambelli. Mas a simples menção do parlamentar, que foi filmado na rua em Copacabana instruindo seus ex-colegas de farda a dispararem contra a “caixa dos peitos” de pacíficos manifestantes antifascistas, motivou os raros merecedores da medalha a recusarem-na e faltarem à ominosa cerimônia na sexta-feira 1 de julho em defesa da democracia e do decoro.
No Twitter, um dos incluídos na lista para lhe dar o mínimo de credibilidade, o romancista Marco Lucchesi, autor da trilogia de romances O Dom do Crime, O Bibliotecário do Imperador e Pirandello no Rio, criticou a entrega da honraria a Silveira. E disse não ter condições de recebê-la. “Se eu aceitasse a medalha, seria referendar Bolsonaro, que disse preferir um clube ou estande de tiro a uma biblioteca”, afirmou o ex-presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL).
Outro acadêmico que recusou a duvidosa oferta foi o poeta, tradutor e professor Antônio Carlos Secchin. “Quando aceitei a medalha, supunha que ela seria entregue a pessoas que, como no meu caso, tivessem vivência com a Biblioteca Nacional e com o universo do livro”, afirmou Secchin, com a autoridade de bibliófilo de escol. “Porém, pelo que soube há pouco, a cerimônia vespertina se constituirá na celebração de uma única diretriz política, agraciando pessoas sem relação com livros, biblioteca e cultura. Minhas más companhias eu mesmo me dou ao luxo de escolher”, cunhou ainda essa frase lapidar o poeta Secchin. Os bolsonaristas nem sequer têm o condão dessa liberdade de escolha e são obrigados a acolher os amigos do mal da imensa coleção particular do capetão sem noção.
E concluiu o professor aposentado de literatura na Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de O Galo Gago : “não me sentiria bem vendo compartilhada a Medalha do Mérito de Livro a personalidades que provavelmente não veem no livro mérito nenhum”.
Como qualquer leitor de jornais e revistas está cansado de saber, o líder de vários dos premiados, da seita bolsonaristas do fascismo de Mussolini, detesta livros e adora pistolas. E, na certa, isso não condiz com o trajeto intelectual e a popularidade da grande historiadora carioca Mary Del Priore, que acaba de ocupar uma vaga na Academia Paulista de Letras. A autora de As Vidas de José Bonifácio registrou em seu perfil no Facebook um resumo dos escolhidos levados à recusa pela impossibilidade de escolherem os piores amigos disponíveis na praça suja: “Embora muito sensibilizada por ter sido agraciada com a Medalha de Honra ao Mérito do Livro, outorgada pela Biblioteca Nacional, prêmio que já foi dado a Carlos Drummond de Andrade e Gilberto Freyre entre outros, sou obrigada a recusá-lo, pois um dos agraciados é o senhor Daniel Silveira.”
O antropólogo e historiador baiano Antônio Risério, autor de Sinhás Pretas da Bahia, suas escravas, suas joias, noticiou a inclusão de seu nome na lista dos agraciados também no Facebook e na mesma rede mandou brasa: “A coisa vai mesmo de muito mal a ainda pior. Fiquei alegre e noticiei aqui que iria receber a medalha da Biblioteca Nacional – Ordem do Mérito do Livro. O motivo era até bem simples: ela já tinha sido conferida ao escritor-pensador pernambucano Gilberto Freyre. Mas agora, quando soube da corja que vai ser premiada, quero distância. Não tenho nada a ver com essa gente. Podem jogar a medalha no lixo.”
A presença dos bolsonaristas ofende os intelectuais relacionados e cospe numa tradição de 210 anos de uma instituição que merece respeito de todos, inclusive de quem proclama falso amor à Pátria.
*Jornalista, poeta e escritor
(Publicado no site Estação José Nêumanne Pinto no sábado 2 de julho de 2022:
domingo 3

Um Prêmio Nobel no Brasil

Meu poema, que fez Saramago chorar, foi citado no discurso de posse de José Paulo Cavalcanti Filho na Academia Brasileira de Letras (ABL) na sexta-feira 10 de junho de 2022, susto, emoção e honra

Na sexta-feira 10 de junho de 2022, o ex-ministro da Justiça José Paulo Cavalcanti Filho tomou posse na cadeira que era ocupada por seu conterrâneo Marco Maciel na Academia Brasileira de Letras (ABL). Não podia faltar à solenidade, de vez que o próprio Zé Paulinho, a quem fui apresentado por Tancredo Neves em pessoa, sempre disse que a Paraíba é o maior município de Pernambuco e além de ser o Estado de Joaquim Nabuco e Gilberto Freyre, ídolos de minha veneração. Anedota privada à parte, o fato é que, se não fosse, teria perdido susto, emoção, prazer e honra de ter versos meus citados da tribuna da casa de Machado de Assis.
Pois foi o que aconteceu. Lá para o fim do discurso, na hora em que a coruja pia, o novo imortal pôs-me ao lado simplesmente de Olavo Bilac, poeta de quem ouvia desde muito cedo minha mãe recitar o poema épico mais simples e bonito que eu conheci, O caçador de esmeraldas. “Bilac escreveu: Última flor do Lácio, inculta e bela, és a um tempo esplendor e sepultura”. E, apontando em minha direção, afirmou: “E José Nêumanne Pinto completou: “semente, coração, berço e caixão”. Tais são os atributos da língua de Camões. enunciados num poema de minha autoria intitulado A seara de Saramago e publicado em dois livros: As Tábuas do Sol, de 1986, e Solos do Silêncio, de 1996. Ambos têm orelhas de Ivan Junqueira, ex-presidente da ABL, prefácio de José Paulo Paes e texto de contracapa de Tereza Souza, que, na infância, havia inspirado um poema de Manuel Bandeira e sido amiga, desde jovem, de um antigo vizinho num subúrbio do Rio, Lins de Vasconcelos, do Rei do Baião, Luiz Gonzaga.
A primeira coletânea ainda estava fresca quando o presenteei a Saramago. Em agosto de 1986, o genial romancista viajou para São Paulo para lançar o que considero seu melhor livro, O Ano da Morte de Ricardo Reis. Levei-lhe o exemplar, e, claro, li o poema sobre nosso comum vernáculo com seu sobrenome no título. O militante comunista e jornalista profissional chorou discretamente e o autografou na folha de rosto. Nunca mais vi o xará na vida, mas guardo com zelo e ciúme o que escreveu: “Para o José Nêumanne e a Regina, este trabalho de um autor muito grato, que vive, de facto, com um pé em Portugal e outro na América Latina (Brasil) – a estima pessoal e intelectual de José Saramago, S. Paulo/86”.
A meu pedido, um querido amigo de fé de muitos anos, apesar da diferença de idades, o poeta e crítico Astier Basílio, que nasceu em Vitória de Santo Antão (PE), mas nos conhecemos na cidade de origem de seus pais, Tião e Socorrinha, Campina Grande, usou seus talentos de vasculhador de arquivos cibernéticos. E descobriu que se escreveu bastante sobre o romancista português no Brasil antes da viagem em que nos encontramos. Antes de se tornar conhecido como ficcionista, chamou a atenção pela militância comunista na imprensa lusitana depois da Revolução dos Cravos. No levantamento a que me refiro destaca-se Armindo Blanco. O português, que foi editor de features do Última Hora do Rio, escreveu, em meados dos anos 1970, vários textos sobre a trajetória do notório jornalista de ofício, exaltando seu enorme talento de ficcionista.
Em 1978, o crítico Vilson Brunel Mendel mencionou o autor de Manual de Pintura e Caligrafia no Suplemento Literário do Estadão. Em setembro de 1983, na coluna Informe JB, então editada pelo acadêmico Cícero Sandroni, de quem cobri férias, registrou a presença dos escritores portugueses José Cardoso Pires, Alexandre O’Neil e José Saramago no lançamento do livro Viagem à Literatura Portuguesa Contemporânea no Centro Empresarial Rio. O bibliófilo José Mindlin destacou O Ano da Morte de Ricardo Reis (de 1984) e Memorial do Convento (de 1982) em suas melhores leituras em 1985 no Suplemento Literário do Estadão.
Saramago passou despercebido por muitos críticos brasileiros, mas não por Wilson Martins e, principalmente Affonso Romano de Sant’Anna. Este nunca perdeu uma oportunidade de celebrar a edição brasileira da Bertrand do Memorial nem o pioneirismo da Difel ao editar seu primeiro romance reconhecido como fundamental pela crítica, Levantado do Chão.
Em 12 de janeiro de 1986, em artigo intitulado O cerco feroz da comunidade de amigos, publicado no Cadeno B do Jornal do Brasil, o autor destas linhas celebrou a coragem do militante comunista ao enfrentar “as polêmicas posições políticas semi-salazaristas do maior poeta europeu do século 20, o lisboeta Fernando Pessoa”. Dois meses depois, em 14 de março, na mesma editoria de variedades, foi exaltada pelo mesmo autor a ousadia da professora de literatura da USP e ex-editora de variedades do Estadão, Cremilda Medina, que elevou o lusitano à altura dos celebradíssimos romancistas Robert Musil, austríaco, e Ítalo Calvino, italiano, tidos como ocupantes do topo do Olimpo da literatura européia em fins do século passado.
Em 21 de agosto de 1983, três anos antes de nosso encontro num hotel em Santa Ifigênia, o correspondente do Jornal do Brasil na Itália, Araújo Neto, entrevistara o protagonista destas linhas e a reportagem fora publicada sob o significativo e premonitório título de O descobridor do Macondo português.
Há ainda dois fatos para a conclusão deste relato. Primeiro, a entrevista a Millôr Fernandes, publicada no Jornal do Brasil em 11 de outubro de 1986, a partir de gravação feita por André Ervilha e Cora Ronai. E, last but not least, a concessão do primeiro Prêmio Nobel para um autor em português, em 1998, três anos após ele ter recebido o Prêmio Camões.
*Jornalista, poeta e escritor

O inferno é pouco para punir Bolsonaro

Pobres brasileiros são asfixiados em sistema aplicado por Hitler por guardas rodoviários beneficiados pelo desgoverno, afogados em casa e desprezados pelos favoritos à polarização nas urnas

A eleição no fim deste ano porá o cidadão brasileiro na terrível opção entre a angústia e o pânico, de acordo com basilar definição de Antônio Lavareda e Joaquim Falcão em entrevistas publicadas no canal José Nêumanne Pinto no YouTube. Os ilustres especialistas podem acrescentar a suas afirmações dois exemplos claros do conflito entre o rentismo financista do atual desgoverno da direita extremada e o pobrismo de migalhas do decênio de decadência sob a esquerda iletrada, conforme a definiu o professor Roberto Mangabeira Unger no mesmo espaço virtual.
O primeiro case, para usar a “categoria farialímica” dos financiadores das desventuras dos trabalhadores famintos sob a tirania dos capitalistas selvagens, relata a pena de morte cruel executada, segundo o Fantástico da Globo, pelos agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF) Kléber do Nascimento Freitas, Paulo Rodolpho Lima do Nascimento e William de Barros Noia. Sua vítima foi Genivaldo de Jesus Santos, afrodescendente, 38 anos, com deficiências mentais e sem antecedentes na polícia, numa rodovia federal por eles patrulhada, em Umbaúba, Sergipe. Os assassinos improvisaram no porta-malas da viatura uma câmara de gás lacrimogêneo e spray de pimenta, similar ao sistema usado por nazistas em campos de concentração. O pobre trafegava de moto sem capacete na estrada, foi levado à delegacia e ao hospital, onde morreu de “asfixia mecânica e insuficiência respiratória aguda”, segundo laudo oficial do Instituto Médico Legal (IML) de Sergipe.
No local do “incidente”, a PRF tratou o sobrinho do morto, Wallison de Jesus Santos, e outros parentes como lixo tóxico. E, depois, ainda teve o desplante de registrar em nota oficial: “Na data de hoje, 25 de maio de 2022, durante ação policial na BR-101, em Umbaúba-SE, um homem de 38 anos resistiu ativamente a uma abordagem de uma equipe PRF. Em razão da sua agressividade, foram empregadas técnicas de imobilização e instrumentos de menor potencial ofensivo para sua contenção e o indivíduo foi conduzido à Delegacia de Polícia Civil em Umbaúba”. Três dias depois, tropeçando em vídeos do crime, a comunicação de um dos núcleos mais bolsonaristas das forças estatais de segurança falou em “indignação”, ao comentar o caso. Mentira e hipocrisia, habituais nessa grei.
Nada, contudo, se compara com a reação do chefe das tropas de assalto do bolsonarismo oficioso. Informado do incidente, Sua Insolência usando suas notórias deficiências em empatia e vernáculo, disse que seus agentes da ordem fascistoide “abateram um marginal”. Sem informações confiáveis sobre o caso, Jair Bolsonaro recorreu a verbo usado para definir o tiro de misericórdia usado em cavalos com perna quebrada. E tornou a vítima ilibada agente da covarde execução de uma pena de morte, ilícita no Brasil até para punição de perigosos bandidos de verdade.
O capitão-terrorista fez essa declaração absurda num “bate-volta” a Recife no fim de semana, onde e quando sobrevoou bairros atingidos por deslizamentos provocados por mortíferas inundações. Aproveitou a ocasião para transferir para governadores e prefeitos toda a própria culpa na falta de planejamento para enfrentar dramas como aquele, que provocou mais de uma centena de óbitos na região metropolitana da capital pernambucana. “Faltou iniciativa”, pontificou, referindo-se ao governador de Pernambuco, Paulo Câmara, e ao prefeito de Recife, João Campos, ambos do Partido Socialista Brasileiro, engajado na campanha de reeleição de seu provável adversário em eventual segundo turno, Lula da Silva.
Ora, bolas, a responsabilidade pelos deslizamentos não é das vítimas, mas de péssimos gestores, que desgraçam há mais de um século, a República, Estados e municípios no Brasil. Inclusive aqueles que sob o comando de Lula e sua assecla, Dilma Rousseff, afundaram os pobres habitantes das periferias das metrópoles numa vala aberta de miséria, fome, inflação, desemprego, angústia e pânico. Se Bolsonaro é o cínico dos cínicos, o ex-dirigente sindical de uma nau que continua e continuará naufragando, caso se confirme o triunfo da polarização entre o rentismo e o pobrismo, é seu mais óbvio competidor. Seja no país como um todo, seja no Estado natal do petista, onde dispõe de folgada maioria. E, ainda assim, não se dignou ir até lá e exerceu o mutismo auto-piedoso, ao limitar seus comentários a uma solidariedade fajuta e inútil. E a um pedido para ser convocado a atuar pelas vítimas, sem explicar através de quem elas poderiam comunicar-se com essa sua nova encarnação de Pôncio Pilatos, que estende a bacia e diz: “lavo minhas mãos da falta de sorte de afogados e desabrigados”.
Habituado a mentir e a se regozijar da desgraça alheia, em particular de eleitores de inimigos, o capetão sem noção montou numa motocicleta e comandou uma motociata de inspiração mussoliniana, com a cabeça descoberta e um bajulador também sem capacte na garupa, o notório major Vitor Hugo. Assumiu postura “isonômica” à de Genivaldo, mas obviamente delituosa, pois fez campanha eleitoral fora de época, E gargalhou a dragonas despregadas da desgraça do asfixiado e dos inundados para celebrar uma improvável vitória futura. Ou seu iminente golpe. Com as mais obscenas manifestações de gáudio, ao comparecer ao sepultamento do que chama de “pátria amada” sob sua gestão de demolição absoluta e sem piedade alguma. Para um falso cristão, que, mesmo se chamando Messias, adula vendilhões do templo como se fossem monopolistas da fé e da virtude, rindo da morte de um Jesus pobre, como o de Nazaré, o inferno como pena é pouco. Muito pouco, convenhamos.
*Jornalista, poeta e escritor

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