Warning: Illegal string offset 'class' in /home/storage/2/10/42/neumanne2/public_html/novosite/wp-content/themes/neumanne/epanel/custom_functions.php on line 78
Warning: Illegal string offset 'alt' in /home/storage/2/10/42/neumanne2/public_html/novosite/wp-content/themes/neumanne/epanel/custom_functions.php on line 79
Warning: Illegal string offset 'title' in /home/storage/2/10/42/neumanne2/public_html/novosite/wp-content/themes/neumanne/epanel/custom_functions.php on line 80
No Blog do Nêumanne: Pizza e promiscuidade no Supremo
José Nêumanne
Bolsonaro leva sucessão do decano do STF ao fundo do poço ao garantir maioria de sete a quatro a ministros que só fazem política, e não justiça, em conchavos de convescotes habituais em Brasília
O procurador paulista José Celso de Mello Filho é o último ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) nomeado durante a transição da ditadura militar para a democracia, em um ano de vigência da Constituição de 1988. Foi indicado por José Sarney, que preferia seu ministro da Justiça, o advogado Saulo Ramos, para o lugar, mas este indicou o jovem assessor em quem confiava cegamente. A escolha não teve destaque nos noticiários da época. Ao contrário da longa permanência do escolhido na função de decano, ou seja, ministro mais antigo, quando, pela repercussão dos debates sobre processos de grande alcance midiático, como mensalão e petrolão, o posto mais alto da hierarquia judiciária passou a ser cobiçado por ocupantes de cargos no topo dos outros dois Poderes: o Executivo e o Legislativo.
As transmissões pela TV Justiça dos debates sobre a compra de apoio, pelo ex-presidente Lula, da maioria do Senado e da Câmara tornaram o Judiciário popular e, em consequência relevante. Ao contrário do que se poderia esperar, a disputa pelas 11 cadeiras do Olimpo judicante tornou o chamado “pretório excelso” mais poderoso e mais medíocre. O historiador leniente terá dificuldade de encontrar composição menos sublime da designação do tribunal comparado com a tenda dos generais romanos. Difícil será escolher entre os atuais ocupantes um que possa carregar a designação histórica dos pretores ancestrais. Num plenário de advogados e procuradores, com apenas dois juízes concursados (por coincidência, o atual presidente, Luiz Fux, e a futura ocupante da cabeceira da mesa, Rosa Weber), os casos de extrema parcialidade indesejável para a nobilíssima função são de Gilmar Mendes e Dias Toffoli.
O procurador mato-grossense foi elevado ao ápice da carreira após passagem pela assessoria da secretaria-geral da Presidência de FHC, que o promoveu a advogado-geral da União e, em seguida, ao STF. O paulista Dias Toffoli foi, enquanto advogou, funcionário do Partido dos Trabalhadores (PT) desde a assessoria jurídica das bancadas petistas na Assembleia Legislativa de São Paulo e na Câmara dos Deputados. E foi advogado-geral da União de Lula, que o alçou ao topo da carreira, na qual ele nunca teve destaque. Não é de estranhar que ambos tenham soltado corruptos condenados, acusados e indiciados nas instâncias inferiores da Justiça. E que unam seus esforços para perseguir procuradores e juízes que tenham processado e até condenado seus padrinhos de sempre.
Em entrevista recente, reproduzida no Blog do Nêumanne no Portal do Estadão, o professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) Joaquim Falcão tratou do tema. Apesar de crítica, sua opinião é otimista em relação a uma característica de nomeados para o STF. Segundo ele, é comum não se tornem dependentes de quem os nomeou. Na entrevista lembrou os exemplos recentes de Ayres Britto, Joaquim Barbosa, Cármen Lúcia, Luiz Fux e Luís Roberto Barroso, que, indicados pelo PT, só julgaram com base nos autos dos processos do mensalão e da Operação Lava Jato. Mas Toffoli e Mendes atuam com desenvoltura impressionante como fiéis depositários da confiança de quem os promoveu. Na atual conjuntura, atuam como “conspiradores-gerais da República” pela garantia de impunidade para seus padrinhos e transferem a própria missão para os que vierem a ser nomeados a partir de agora.
A fórmula garante que um plenário do STF sempre merecerá menos a confiança da sociedade, que os sustenta, do que o que vier a suceder-lhe. Nenhum brasileiro honesto e bem-intencionado tem por que prever que o presidente Jair Bolsonaro substitua por alguém que esteja à altura de quem o substituía. A volta dele ao aprisco do Centrão suspeito, que hoje comanda os destinos da República na pessoa do bedel Ricardo Barros, seu lugar-tenente na Câmara, e sua gestão criminosa na crise da pandemia, com a consequente recessão econômica, não autorizam nenhuma vã esperança nesse sentido. Para uma função em que a Constituição exige renome e honestidade, adotar o critério do “terrivelmente evangélico” mostra que seria mais provável o oposto: André Mendonça, sabujo de Lula, de Toffoli e dele prenunciava o desastre. Outros nomes aventados – Jorginho Oliveira, com seis anos de diploma, sem nunca haver exercido a advocacia, João Otávio Noronha e Augusto Aras – não ficam por menos.
E Bolsonaro surpreendeu para pior no método e na solução. Foi à casa de Mendes sacramentar com o anfitrião, Toffoli, mais Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, a indicação de Kassio Nunes Marques, feito desembargador do Tribunal Regional Federal da 1.ª Região por Dilma Rousseff na vaga do quinto dos advogados. E para celebrar a publicação da escolha no Diário Oficial visitou Toffoli, que o recebeu com abraço caloroso, contagioso do novo coronavírus e de condenável despudor inconveniente do convescote. Que contou ainda com a presença de Marco Aurélio Costa, ex-dono do Piantella, palco falido das negociações menos republicanas da política na capital. A traição a mais uma de suas bandeiras de campanha, governando apenas para Brasília, enquanto inaugura pelo Brasil desde bica até posto de wi-fi, não poderia dar razões mais adequadas a quem põe a família no panteão da “nova política” dos velhos costumes de hábito. O presidente nacional do Cidadania, Roberto Freire, resumiu no Twitter o objetivo do conluio. “Acordo para livrar Bolsonaro e Flávio é amplo. Quem é da mamata ganha cargo. Quem é da bala compra armas e munições. Quem quer ocupar desmata, queima e garimpa. Quem é corrupto ganha o fim da Lava Jato”, ele escreveu.
Qual foi a pièce de résistance? Pizza de Camorra, naturalmente. E, sob a regência da promíscua famiglia Bolsonaro, servida antes de esfriar.
*Jornalista, poeta e escritor
(Publicado no Blog do Nêumanne na segunda-feira 5 de outubro de 2020)
Para ler no Blog do Nêumanne, Política, Estadão, clique aqui.
Carlos Marighela, o herói errado
Em vez de Marighella, que nunca lutou pela Pátria nem se armou para defender a democracia, herói foi o capitão Sérgio “Macaco”, que não explodiu o Gasômetro do Rio, como o chefe mandou
Anteontem foi perpetrada uma das maiores injustiças provocadas por hipocrisia oportunista, cegueira ideológica, mistificação política e arrogância dos grupos que estão no poder e“nunca antes cometidas na História deste País”, como diria o líder deles, Luiz Inácio Lula da Silva, em suas arengas. Na ocasião da comemoração do centenário de nascimento do militante comunista Carlos Marighella, sua família recebeu, em Salvador, cidade natal do ex-líder da Ação Libertadora Nacional (ALN), pedido formal de desculpas do Estado brasileiro pela perseguição política de que ele teria sido, segundo a versão oficial, vítima ao longo de toda a sua vida.
O que há de verdadeiro e nobre nesta atitude é residual. Marighella teve seu mandato de deputado federal cassado no regime liberal sob a vigência da Constituição de 1946 porque a legenda pela qual fora eleito, a do Partido Comunista Brasileiro (PCB), havia sido extinta. Pode-se argumentar, e com razão, que o pretexto para jogar o “Partidão” na clandestinidade foi mesquinho: o chefão comunista, Luiz Carlos Prestes, foi ambíguo ao responder se lutaria pelo Brasil numa guerra eventual contra a União Soviética e isso valeu o registro do PCB. Mas é preciso entender que, naqueles anos 40, o Brasil vivia a aurora de uma nova democracia e a pátria do socialismo internacional era submetida a uma das mais bárbaras ditaduras da história e ao tacão de um tirano que se tornaria conhecido, depois da morte, como um dos maiores assassinos do século – Josef Stalin. Reza a lenda que Marighella chorou quando foi informado disso.
Em pleno regime militar brasileiro, quando a União Soviética ainda estava submetida à “ditadura do proletariado”, Marighella rompeu com a linha “revisionista” da Internacional Comunista, vassala dos interesses geopolíticos de Moscou, e aderiu às teses “foquistas” dos barbudos de Sierra Maestra, em Cuba, que derrubaram a ditadura de Batista para instalar a de Fidel Castro. Portanto, ele lutou, sim, contra a ditadura militar brasileira, mas não pela democracia, e sim por outra tirania.
Marighella nunca empunhou uma arma em defesa da Pátria: é herói, então, de quê? Enfrentou, armado, a ditadura direitista para implantar outra, de esquerda, não sendo, pois, mártir da democracia. A Comissão de Anistia do governo federal do PT promove uma retaliação histórica pelo método stalinista de reescrever a história. A homenagem a Marighella dá uma má ideia do tipo de “verdade” que a comissão de Dilma persegue. Se busca um herói, sugiro o capitão aviador Sérgio “Macaco”, que desafiou a hierarquia militar, negando-se, em 1968, a explodir o Gasômetro do Rio, como mandou o brigadeiro João P. Burnier.
Bastidores Líderes© Jornal da Tarde quarta-feira, 7 de dezembro de 2011, p. 2
Nesta ‘terra do nunca’ o crime sai bem na fita
A lei só atinge quem não tem força, como o líder William da Rocinha e o lobista Marcos Valério
Neste fim de semana William de Oliveira brilhou nas páginas dos jornais em várias fotografias. Uma, atual, que mereceu maior destaque, registra sua presença à mesa com Francisco Bonfim Lopes, o Nem, chefão do tráfico de drogas na Favela da Rocinha preso recentemente. A imagem, obtida e fornecida aos meios de comunicação pela polícia do Rio de Janeiro, seria o flagrante do momento em que intermediava a venda de fuzis ao traficante. Como convém a uma reunião de negócios, o ambiente parecia tenso, e não era para menos: na companhia dos protagonistas, o figurante Alexandre Leopoldino, auxiliar de manutenção na Superintendência de Engenharia e Manutenção (Supem) da Casa Civil do governo do Estado do Rio de Janeiro, segurava ostensivamente um fuzil. Em outra foto, de semblante carregado, William, também servidor público, lotado no gabinete da vereadora Andrea Gouvêa Vieira, do PSDB, que o exonerou assim que soube da notícia, aparece algemado na hora da captura. Nas outras fotos, a mesma personagem mostra seu melhor sorriso de dentes alvos ao lado de figurões da República e do Estado: a presidente Dilma Rousseff, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o governador Sérgio Cabral e o ex-governador e ex-secretário de Segurança Anthony Garotinho.
Ninguém, é claro, está imune a ter registrada uma camaradagem explícita com alguém acusado de crime grave, por uma câmera fotográfica. Personalidades públicas, como artistas e candidatos a cargos eletivos, estão sujeitas a ser surpreendidas por conexões incômodas com a publicação de imagens como essas. Acusar uma celebridade de cumplicidade com um criminoso por um flagrante infeliz seria uma irresponsabilidade. Mas merece reflexão a acusação a William de Oliveira, feita pelo delegado Márcio Mendonça, da Delegacia de Roubos e Furtos de Automóveis (Derfa), de ter intermediado a venda de um fuzil AK-74 a Nem. Pode haver contradição mais cruel do que o ex-presidente de uma entidade intitulada União Pró-Melhoramentos e benemérito da campanha do desarmamento ser pilhado armando bandidos, para que estes possam executar cidadãos honestos? Trata-se de uma ironia que transcende a pura amargura, mas, infelizmente, não passa de um respingo de lama.
O vídeo de 18 minutos em mãos da polícia fluminense é mais uma evidência dos vasos de comunicação existentes entre crime e política, grupos armados que violam a lei e figurões republicanos que se engalfinham pelo poder no Estado. Nessa comunicação do “me engana que eu gosto” se utiliza o eufemismo politicamente correto como retórica oficial. Não sei se o distinto leitor já reparou, mas nos noticiários de televisão não se usa mais a palavra favela, com a qual antes se definiam conjuntos de habitação precária em que a miséria cerca nossos centros urbanos. O nome foi dado pelos sobreviventes da Guerra de Canudos que foram morar nos morros do Rio e tem origem na forma como é denominada uma planta do semiárido de origem. Hoje são “comunidades”.
A prática de tentar suavizar uma brutalidade pela retórica caridosa se tem tornado corriqueira nesta era da comunicação de massas, em que a linguagem se sobrepõe ao ato e a versão prevalece sobre o fato. Chamar um negro de “afrodescendente” não elimina o preconceito racial, mas o mascara de forma conveniente para uma sociedade de faz de conta, na qual a incapacidade de acabar com conflitos usa a hipocrisia para mascará-los. Mesmo apanhado em flagrante delito, William da Rocinha foi qualificado como “líder comunitário”. O eufemismo benevolente torna-o um benfeitor por vocação, ao mesmo tempo que fornece o álibi perfeito a todos os políticos que se aproveitaram de seu prestígio na “comunidade”, desde sempre desamparada e desprezada pelo Estado e seus agentes, para angariar votos em campanha e boas imagens populistas para os shows de marketing político ao longo das administrações. Trata-se de uma prática antiga e disseminada. O ex-governador do Rio Leonel Brizola praticamente avalizou a tomada do território das “comunidades carentes” instaladas na periferia da capital fluminense ao declarar que sua polícia não subiria o morro para não constranger o morador dos bairros pobres. O poder real na Rocinha, representado (até a prisão) pelo traficante Nem, e o poder político da República – presidentes e governador no exercício de seus mandatos, o secretário de Segurança que ignora o óbvio e a vereadora tucana que o sustenta com nosso dinheirinho escasso – se curvaram ante o “representante do povo”.
Mais irônico é que no dia em que foi noticiada a prisão de William da Rocinha também foi divulgada a de Marcos Valério Fernandes de Souza, o lobista acusado de operar uma prática lesiva ao interesse público inadequadamente apelidada de “mensalão”. Como Al Capone, o gângster mais poderoso e violento da Chicago da Lei Seca, caiu nas malhas do fisco, o “careca” (agora com fios incipientes de cabelo no crânio), como ficou conhecido, na definição do delator da fraude, o ex-deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ), foi preso sob acusação de ter falsificado matrículas de imóveis em São Desidério (BA) para fraudar processos de execução de dívidas com instituições financeiras e empresas. Com a Operação Terra do Nunca, o Ministério Público e a Polícia Civil da Bahia, cujo governador, Jaques Wagner, é do PT, desmoralizaram por tabela todas as tentativas dos principais réus do processo – entre os quais José Dirceu, ex-chefe da Casa Civil no governo Lula – de negar a existência de um eventual esquema de compra de apoio de parlamentares de legendas menores da base governista em votações no Congresso de interesse do governo.
Na “terra do nunca” o crime sai bem na fita, já que o braço da lei só logra alcançar “bagrinhos” sem força, como William da Rocinha e Marcos Valério.
Bastidores Líderes© O Estado de S. Paulo, quarta-feira, 7 de dezembro de 2011, p. A2
Afinal, quem tem medo da mentira?
Quem cobra verdade da ditadura extinta não deve perdoar mentiroso nem destruir provas
A verdade não é, nunca foi, um valor absoluto, um bem em si. Verdades podem ferir, magoar, prejudicar. Assim como mentiras, a depender de como são contadas e para que são usadas, podem se tornar até edificantes. Gabriel García Márquez imagina que Jonas saiu, à noite, para a farra, dormiu fora de casa e, quando recuperou a clarividência, contou à mulher a aventura que teria vivido dentro do ventre de uma baleia. A imaginosa invenção do bebum salvou a paz familiar e tornou-se pedra fundamental da ficção, gênero literário que, como qualquer obra humana, pode servir ao bem e ao mal, ser inútil e desagradável ou útil e prazeroso. Do ponto de vista filosófico, há controvérsias sobre a existência da verdade absoluta, assim como se discute a existência da mente superior que a criou. Quase sempre é relativa e pode ser contraditória.
Na quinta-feira da semana passada, a presidente Dilma Rousseff sancionou a lei que cria a Comissão da Verdade, uma instituição imperfeita, como o são todas as criações do ser humano, para buscar a memória que a ditadura militar brasileira tentou sepultar em covas rasas de cemitérios clandestinos. Nada contra. A revelação de uma verdade pretérita não poderá fazer mal algum porque, se “malfeitos” foram executados no arbítrio, o Estado Democrático de Direito já os absolveu na figura jurídica clássica da prescrição. Saber-se-á que determinado oficial ou policial torturou e pelo hediondo crime ele será sempre execrado e apontado na rua como um réprobo por suas vítimas, agora no poder. Entre eles, a presidente mesma, que guerreou, foi presa e maltratada.
Para ser digna da pomposa denominação a comissão teria de ser bifronte como o deus romano Jano, que tem duas faces, uma voltada para a frente e outra para trás. Nas escolas de Jornalismo ensina-se que o relato dos fatos será tanto mais imparcial quanto contiver os dois ou mais lados da questão. É a teoria Rashomon da narrativa: como no filme clássico do japonês Akira Kurosawa, cada fato permite uma gama múltipla de relatos, assim como o delito testemunhado por várias pessoas com pontos de vista diferentes do mesmo ocorrido. A comissão de Dilma, contudo, dificilmente abrigará as versões dos que venceram a guerra suja e acabaram alijadas do poder.
A questão da multilateralidade da verdade relativa, contudo, não é a única que se apresenta no debate sobre a comissão que o governo esquerdista criou para julgar os crimes da direita derrotada nas urnas. Fica em aberto também a limitação cronológica da apuração. Por que limitá-la ao prazo da ditadura?
Não será a verdade um valor positivo a ser perseguido também no Estado Democrático de Direito? A pergunta ganha força quando se sabe que no mesmo dia o País foi informado de que o chefão do Partido Democrático Trabalhista (PDT) – no qual Dilma militou –, Carlos Lupi, mentiu com loquacidade e desfaçatez. E, ao desmentir, mentiu mais numa vez, desmoralizando a natureza redentora da mentira, consagrada no mais popular e sagrado dos livros, a Bíblia.
E, só para Dilma não ficar com a responsabilidade inteira pelo desafio ao relato veraz dos fatos, convém lembrar que na dita quinta-feira 17 o Supremo Tribunal Federal (STF) adiou uma vez mais a decisão sobre um assunto de altíssima relevância para a transparência indispensável ao exercício da Justiça na vigência da democracia. O pedido do Ministério Público Federal (MPF) para que o Supremo autorize a eliminação de todas as provas referentes à Operação Satiagraha, empreendida por seus membros e pela Polícia Federal (PF), deverá ser julgado amanhã a partir de decisão a ser tomada e prolatada pela ministra Cármen Lúcia. Mas também poderá ser adiado mais uma vez.
Tudo é, no mínimo, bem estranho. Da operação resultaram muitas notícias e nenhuma punição. O economista baiano Daniel Dantas, gestor de fundos do Opportunity, responsável pelo comando acionário da Telecom Brasil e denunciado pelo sócio hostil, a Telecom Italia, chegou a ser preso, assim como muitos de seus executivos. Homens públicos, como o ex-prefeito Celso Pitta e o investidor no mercado de capitais Naji Nahas, foram tirados da cama e algemados, mas o assunto terminou, como muitos outros que foram alvo de investigações da PF “republicana” no governo Lula, mergulhando no buraco negro do ostracismo. Nenhum indício, entre os inúmeros levantados na investigação e divulgados com estardalhaço, passou pelas instâncias do Judiciário sem que em algum momento se verificassem abuso de autoridade, produção ilícita de provas, etc.
Neste caso, não se trava uma batalha filosófica entre relato e invenção, mas está em questão um dos fundamentos do Estado de Direito, o da transparência. Réus, agentes da lei, promotores e juízes são todos súditos do mesmo império, o da norma legal. E não há nenhuma explicação plausível para a destruição de provas que tanto podem incriminar os acusados quanto pôr em dúvida a lisura de quem os houver investigado. Como provas não incriminam quem não tenha cometido delito, é de estranhar que logo os acusadores estejam interessados na sua eliminação. Se não é ético manter ocultas as práticas da ditadura, será muito menos sensato agir com a investigação da Operação Satiagraha com o zelo duvidoso atribuído a Ruy Barbosa de providenciar a remoção da mancha da escravidão pela queima dos documentos que a registravam.
A Nação espera que Dilma não dê a Lupi o mesmo crédito dado pela mulher de Jonas ao marido inventivo. A presidente que criou a Comissão da Verdade não pode temer a mentira. Assim, também cabe ao STF provar que a força de possíveis implicados nas provas produzidas por PF, MPF e Justiça não será suficiente para imobilizar o Poder Judiciário, tornando-o cúmplice da destruição de provas, sejam estas contra investigados, acusadores ou investigadores.
Bastidores Líderes© O Estado de S. Paulo, quarta-feira, 23 de novembro de 2011, p. A2
O câncer na laringe e o futuro de Lula
Quem se regozija com o câncer na laringe de Lula e quem imagina que poderá se aproveitar do aumento de seu prestígio por causa da dor que ele enfrentará poderão não se dar bem como pensam
A notícia de que Luiz Inácio Lula da Silva tem na laringe um câncer de agressividade média, seja lá o que queira dizer isso, surpreendeu a todos. É como se, de repente, se tomasse conhecimento de que é falível o titã da política, o semideus da administração pública, o maior ídolo popular que já subiu em palanques neste País. Alto lá, gente fina! O homem é gente, como você, o recordista mundial dos 100 metros rasos, a pobre mulher sertaneja que serve farinha com água para matar a fome da imensa prole desvalida e eu.
Bem, vamos convir que ele foi presidente da República e, nesta condição, se submeteu aos exames de tecnologia mais sofisticada em check ups periódicos em que sua garganta foi vasculhada por sensores poderosos e radiação nuclear que desvenda mistérios que tato e vista não alcançam. E daí? A medicina é falível como o aparelho, o médico e o paciente.
Então, por que este susto todo? O ex-presidente da República não é propriamente um ser humano regrado, morigerado e aplicado. Ao contrário, é sanguíneo, explosivo, indisciplinado e ingere toxinas a granel. O que isso tem a ver com o câncer na laringe? Vai saber! Um dos mistérios dolorosos da vida é que de certo mesmo só se sabe que cedo ou tarde ela se extinguirá, mas a fragilidade do sopro vital sempre corresponde à surpresa da chegada da doença. Além do mais, no último decênio, o paciente do dr. Calil tem sido o ponto de referência para convergir ou para divergir na cena pública nacional. Difícil encontrar quem seja neutro ao julgá-lo, impossível lhe ser indiferente.
Lula é gente como qualquer de nós e, como todos estamos atados à certeza da visita da Indesejada das Gentes, bastando para tanto que exista, merece respeito e piedade. A paixão em torno de sua atuação pública, contudo, produziu desafetos que se regozijam com sua dor e prosélitos que receberam a notícia como se dissesse respeito a um ente querido muito próximo. A condição humana é como é: falível e parcial. Uma reação é desumana; a outra, irracional; e ambas, despropositadas.
Impossível saber se o tumor maligno lhe reduzirá o prazo de vida. Muitos contemporâneos mais jovens e hígidos poderão sucumbir antes, outros mais próximos da morte poderão sobreviver a ele. Só uma coisa é certa: a experiência mostra que no convívio com as massas a dor do ídolo poderá exacerbar a idolatria. Quem contar com o fim da popularidade do paciente pela eventual perda de seu principal instrumento, a palavra falada, poderá ser surpreendido pela canonização em vida da vítima. Quem pretender prosperar sob a sombra do ícone semovente poderá aprender que idólatras nada veneram além do ídolo.
Bastidores Líderes© Jornal da Tarde, terça-feira, 1 de novembro de 2011, p. 2
As ONGs, a revolução, a saúva e a corrupção
Eleição presidencial de 2014 está longe no tempo e também do longo bico dos tucanos
Alguém faria um grande favor à oposição e às instituições do Estado Democrático de Direito no Brasil se lembrasse ao tucanato de alta plumagem que ainda faltam mais de três anos para a eleição presidencial e, antes dela, está agendada uma disputa por votos em todos os municípios brasileiros. Os dois principais ex-governadores do Brasil, o de São Paulo, José Serra, e o de Minas Gerais, Aécio Neves, agem como se ambos não tivessem acabado de protagonizar um dos maiores malogros eleitorais da História do Brasil: a derrota para uma adversária jejuna, desprovida de cintura e sem nenhum charme pessoal, dispondo apenas da alavanca do extraordinário prestígio eleitoral de um presidente no fim do segundo mandato. Quem perdeu foi Serra, dirão os adeptos de Aécio, como se este não tivesse trocado o governo de um Estado da importância capital que Minas Gerais sempre teve no cenário político nacional por um desempenho pífio e impotente num Congresso no qual à legenda dos dois não se atribui sequer o papel de figurante interpretando uma horda indígena num western spaghetti.
“Se for a vontade do partido, estarei pronto para disputar com qualquer candidato do campo do PT, seja Lula ou Dilma”, disse o neto de Tancredo Neves à repórter Christiane Samarco, da sucursal deste Estado em Brasília. Depois da divulgação do feito espetacular da presidente, que ultrapassou o índice alcançado por seus dois popularíssimos antecessores em princípio de governo, Fernando Henrique Cardoso, correligionário de Aécio, e Lula da Silva, companheiro de Dilma, na terceira avaliação de desempenho pessoal e de governo, a afirmação do mineiro está mais para bravata do que para promessa. É claro que até 2014 muita água movimentará os moinhos eleitorais e, com Mantega e Tombini e sem Palocci nem Meirelles, a chefe do governo pode dar com seus burros nessas águas. Mas, mesmo na política, uma dama mais trêfega e caprichosa do que a cantada por Rossini na ópera O Barbeiro de Sevilha, o anúncio soa mais como bilhete de suicida do que como convite para festa. Será que Sua Excelência não percebeu que um partido incapaz de constituir uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) e de aproveitar as oportunidades que o PT e seus aliados têm dado não terá chance de chegar ao topo?
O senador das Alterosas disse que o partido dele e de Serra “amadureceu o suficiente para ver que, ou vamos unidos, ou não teremos êxito”. Bem, essa poderia ter sido a amarga lição da derrota para Dilma, provocada pela convicção de Serra de que é melhor perder para os petistas a eleição e a Presidência do que ter de compartilhar o eventual poder após a vitória com os adversários internos de Minas e por ter Aécio preferido a solidão do plenário ao convívio com um parceiro hostil e enfezado. A prova, contudo, de que a lição dolorosa não foi devidamente aprendida, nem sequer assimilada, é a sofreguidão com que, contrariando a prudência dos ancestrais, o neto do símbolo do político manhoso de Minas opta pelo fato consumado, encerrando a conversa ao pé do borralho.
Se a afirmação de Aécio se apoiasse em fatos, ele não teria assumido publicamente o que todo mundo, inclusive Serra, está careca de saber, mas consumiria o imenso tempo de ócio que lhe permite o mandato senatorial de oito anos para encontrar uma solução para desalojar os adversários federais do comando da capital de seu Estado. Ao que parece, o inegável êxito obtido pelo ex-governador em sua bem-sucedida gestão não foi suficiente para permitir que ouça o óbvio ululante de que lhe será menos difícil apear do vagão compartilhado com petistas e aliados a substituir na prefeitura de Belo Horizonte do que derrotar seja Lula, seja Dilma, que, sem dúvida, terão o voto dos aliados locais de ocasião dele.
Mais fácil ainda será para seu desafeto paulistano derrotar na disputa municipal em São Paulo Fernando Haddad, candidato petista da preferência de Lula, ou Gabriel Chalita, mesmo que o noviço peemedebista receba de Alckmin, amigo tucano no governo estadual, mais suporte do que lhe permite a camisa de força partidária. No entanto, Serra não admite sequer discutir a hipótese, de vez que a vitória municipal significará o fim de qualquer ilusão presidencial em 2014. A impotência da cadeira isolada no Senado de nada serviu a Aécio, que também se mostra incapaz de aprender que o capricho dos eleitores reduz a pó vãs ilusões de projetos aparentemente imbatíveis. E a humilhação de perder para um poste arrastado por um mito também não demoveu em um milímetro a prepotência de Serra, que apanha, mas não aprende.
Com um cacife menor do que o de ambos, o prefeito paulistano, Gilberto Kassab, acaba de lhes prestar inestimável serviço ao demonstrar que o desmanche da oposição é muito mais iminente do que sonham os caciques sem índios do PSDB e os coronéis sem jagunços do DEM. A porta de emergência aberta pelo PSD para a fuga dos oposicionistas que não suportarão mais um mandato longe dos cabides das máquinas públicas municipais, estaduais e federal transmite um sinal claro aos ex-governadores dos Estados com os maiores colégios eleitorais do País. Ou eles cuidam de fortalecer as máquinas partidárias do PSDB e do DEM – não criando diretórios onde não existem, mas mantendo as prefeituras de que dispõem e tomando outras de adversários, ainda que se fantasiem de aliados locais –, ou não terão nenhuma chance na disputa presidencial, seja a chapa adversária encabeçada por Lula, Dilma, Marta ou Mantega.
Fato é que 2014 ainda está muito longe no tempo e é quase inalcançável pelo bico dos tucanos, por mais longo e faminto que seja. Mas não é o fim do mundo nem a data da última disputa presidencial no Brasil. Aécio pode muito bem esperar. Serra, nem tanto. Mas antes um galho para pousar e um ninho para se abrigar do que o abismo inevitável de mais uma queda anunciada.
Bastidores Líderes© O Estado de S. Paulo, quarta-feira, 12 de outubro de 2011, p. A2