Perdoador-geral
Com seu vernáculo trôpego de Odorico Paraguaçu, o prefeito folclórico da fictícia Sucupira da novela e do seriado O bem amado, de Dias Gomes, do cerrado, o senador Joaquim Roriz (PMDB-DF) fez uma defesa considerada fraca tecnicamente pelo presidente nacional de seu partido, Michel Temer (SP). Nem por isso ela foi irrelevante. Em pelo menos um trecho, Sua Excelência produziu uma sutil, mas cabal, definição de como as coisas funcionam aqui. No meio de sua versão, considerada estapafúrdia pelo colega Romeu Tuma (DEM-SP), corregedor, o réu apelou para um argumento decisivo: o de que nunca negou seu apoio às propostas do governo. Ou seja, não interessa se ele cometeu, ou não, um delito que configure quebra do decoro parlamentar. O que está em jogo é sua lealdade de fiel serviçal do governo.
Essa mentalidade de encarar o debate político como um Palmeiras X Corinthians ou Vai Vai X Camisa Verde e Branca, na base do ou está comigo ou está “sem migo”, como diria o jogador Dedeu, do Náutico de Recife, levou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva a absolver o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), até que se produza prova de sua culpa. Do alto de sua montanha de votos e na crista da onda da popularidade, apesar do Caos Aéreo Nacional e do “me dá um dinheirinho aí” do mano Vavá, o chefe do Executivo incorporou de novo seu papel favorito de “perdoador-geral da República”. E conta para isso com o silêncio cúmplice da oposição, pois o DEM passou 24 horas na presidência do Conselho de Ética do Senado, não indicou o relator, como deveria ter feito, e ainda fingiu disputar a presidência. Argh!
© Jornal da Tarde, terça-feira, 03 de julho de 2007.
A republiqueta do João sem braço
Parlamentares e juízes desmoralizam a democracia representativa
O episódio da tentativa dos congressistas de concederem um aumento abusivo e extorsivo de 90,7% para seus vencimentos é de enorme relevância e traz lições fundamentais para a construção da democracia que queremos ter para o Brasil. Mas, infelizmente, nada indica que tais lições possam vir a ser devidamente incorporadas ou sequer compreendidas.
A disputa entre os três Poderes da República pelo troféu do que mais se dedica a atender ao apetite da própria grei e desprezar os interesses do cidadão-contribuinte que os sustenta revela um índice praticamente intolerável de descolamento entre Estado e Nação. O grau em que essa competição vem sendo travada tanto inverte o sentido da palavra democracia (o governo do povo), quanto contraria frontal e brutalmente a natureza representativa daquela que se diz viger neste país. Da forma como funcionam nossas instituições políticas, os Poderes são autônomos não apenas entre si, mas também em relação à base de que, em teoria, mas apenas em teoria, retiram a legitimidade que é e só lhes pode ser dada pela delegação da vontade da maioria. Ao lutar por aumentos abusivos para juízes e procuradores, a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ellen Gracie, certamente não se comporta como uma julgadora suprema das demandas entre cidadãos ou entre estes e o Estado, mas, sim, como dirigente sindical da corporação a que pertence. A naturalidade com que ela e seus colegas, ministros da Corte julgadora suprema, agem em defesa de sua corporação não atenua, mas agrava esse sintoma de nossa doença institucional, retirando-lhe autoridade para o exercício de sua função capital para o funcionamento da República. E aqui mais uma vez se perde o sentido da palavra, que vem do latim e significa a coisa do povo. Não a causa dos juízes e procuradores, mas daqueles que são partes nos processos em que estes atuam, seja como porta-vozes do Estado, seja como julgadores.
No vácuo da ligeireza com que o Judiciário assegura os próprios privilégios vêm aqueles que menos poderiam fazê-lo, pois, em teoria, e mais uma vez apenas em teoria, são os “representantes” diretos da vontade popular. No entanto, estes se comportam como sócios remidos de um clube privado cujos regulamentos se baseiam no princípio do “estatuto da gafieira”: “quem está fora não entra, quem está dentro não sai”.
Sua tentativa de elevar o próprio teto salarial até o patamar alcançado pelos dignitários do Judiciário é mais que uma agressão aos trabalhadores de baixa renda, entre os quais os barnabés do serviço público, cujos reajustes salariais a que têm direito mal acompanham a degradação do valor da moeda pela inflação, sendo que, no caso destes últimos, nem reajustados são. É mais que um acinte ao contribuinte escorchado por uma carga escandalosa de impostos para sustentar a farra dos corruptos e estróinas no dispêndio desregrado dos recursos públicos. É, sobretudo, uma violência contra a democracia de que dizem ser agentes. Pois, ao legislar em causa própria em assunto de interesse pecuniário, os parlamentares dão razão a quem pense que não funciona neste país uma democracia (governo do povo) representativa (por delegação popular) de verdade, mas uma ditadura de uma elite política civil cúpida, imoral e insensível que não tem nenhum espírito cívico nem capacidade alguma de enxergar o mal que faz à própria idéia de que é viável erigir um regime baseado na soberania da escolha e da vontade do povo para a gestão dos interesses coletivos num país pobre como este.
“Nunca antes” a opinião pública se havia manifestado de forma tão indignada como neste caso e é natural que Suas Excelências tenham sido obrigados a recuar. Mas esse recuo, ao contrário do que possa parecer à primeira vista, não deve ser comemorado como um avanço na direção de um regime político moderno e transparente. Mas, sim, como mais uma manobra espúria e maquiavélica para manutenção do status quo. Na festiva comemoração do recuo, a sociedade civil comporta-se como se tivesse vencido uma batalha, pois, afinal, a tendência natural das coisas é que a próxima legislatura seja melhor e, sobretudo, mais comprometida com os interesses comuns do que esta que se fina, a pior de todos os tempos. As Mesas da Câmara e do Senado, contudo, sabem, por experiência própria, ser mais provável que a próxima legislatura seja ainda pior. Não porque Maluf e Clodovil serão deputados com delegação de expressivo número de eleitores, mas, sim, porque prevalece a Lei de Murphy (e não o princípio de Peter, como equivocadamente este autor citou no último artigo nesta página), segundo a qual o que tende a piorar só tem de piorar.
Tudo isso é devastador. Mas mais desolador ainda é observar o jogo que tem sido feito pelo grupo que se mantém no topo do Poder Executivo por vontade de ampla maioria da população votante nacional. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seus lugares-tenentes assistem com indisfarçável júbilo a esse processo suicida de desmoralização dos outros dois Poderes, para poderem contar com a cumplicidade dos juízes egoístas e o apoio dos parlamentares egocêntricos, tornando possível que eles próprios façam da máquina pública gato e sapato, aproveitando-se até para pisotear os pés de quem quiser mudar o rumo das coisas e amordaçar as vozes que insistam em dissentir. Nesta republiqueta do João sem braço, prevalecem os princípios de “manda quem pode, obedece quem não é da corte” e “quem pode menos nunca ri”. A democracia que resulta disso, menos que um arremedo, é um monstro sem cabeça que devora o próprio futuro sem deixar saída.
© O Estado de S. Paulo, página A2, quarta-feira, 27 de dezembro de 2006.
A morte anunciada e a ressurreição real do objeto de arte
A importância da 27ª Bienal de São Paulo (SP, Brasil), aberta em 7 de outubro e encerrada neste fim de semana, pode ser medida pela freqüência: em 89 dias 550 mil pessoas visitaram o prédio desenhado pelo arquiteto Oscar Niemeyer e puderam ver cerca de mil obras de 118 artistas, 96 deles vindos de outros 81 países. Mas a mostra em nada contribuiu para apontar saídas para os impasses das artes plásticas contemporâneas, como fizeram as anteriores, principalmente as pioneiras.
A maior crítica a esta bienal foi a de que o tema escolhido – “Como viver junto” – passou ao largo do exibido. A impressão que ficou foi oposta. Os visitantes testemunharam o reflexo na arte da devoção da sociedade contemporânea ao isolamento: cada um que viva por e para si, sem precisar interagir com outrem em praticamente nada mais. Seguindo a tendência das últimas bienais, nesta predominaram instalações e encenações de desempenho, que gradativamente substituem os suportes tradicionais de desenho, pintura e escultura, exibindo o impasse em que se encontram hoje os museus de arte, nos quais é cada vez mais inexato referir-se a acervos. A não ser que se considere acervo a guarda em caixotes de material bruto usado em instalações, cujas fotografias são exibidas em catálogos e livros de arte – como definiu, com argúcia, o cenógrafo português José Manuel Castanheira. O diretor artístico adjunto do Teatro Nacional D. Maria II de Lisboa esteve em São Paulo antes do fim da Bienal e das exposições simultâneas, mas não as visitou no tempo livre entre as palestras que deu sobre a falta de limites claros entre teatro e artes plásticas, nesta era por excelência da troca da moldura pelo espaço arquitetônico dos pavilhões que servem de sede às grandes exposições.
Pioneirismo privado – A Bienal de São Paulo é a típica representante do espírito empreendedor da burguesia paulista em resposta ao mecenato oficial, que concentrou os investimentos públicos na produção cultural na antiga capital brasileira, o Rio de Janeiro. Não que houvesse existido em São Paulo algum tipo de investimento institucional, como há nos EUA, por exemplo, de empresas privadas em patrimônio artístico. Até os anos 40 do século 20, a elite tradicional paulista, de fazendeiros de café, produto quase exclusivo na pauta de exportações brasileiras no começo dos anos de 1900, e, depois de 30, na industrialização por esta financiada, fazia pequenas doações de partes de heranças para comprar objetos de arte. Nos anos de 1940, um grupo remanescente do movimento da Semana de Arte Moderna (realizada no Teatro Municipal, em 1922) reuniu-se em torno da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo (fundada por esta elite, que importara um grupo de acadêmicos europeus, entre os quais Claude Lévi-Straus e Fernand Braudel), para fundar associações e clubes e divulgar a arte autóctone. Com o término da 2ª Guerra Mundial, Assis Chateaubriand, o “Cidadão Kane brasileiro”, aproveitou-se dos preços baixos de objetos de arte na Europa arrasada para fundar, em 1947, o Museu de Arte de São Paulo (MASP), dirigido pelo italiano Pietro Maria Bardi. Um ano depois, Francisco Matarazzo Sobrinho, Ciccillo, parente brasileiro de um italiano que capitaneara o maior grupo industrial nacional ao longo do século 20, criou o Museu de Arte Moderna (MAM), aberto com uma exposição que marcou época, Do figurativismo ao abastracionismo, reunindo 51 artistas, entre os quais três brasileiros: Cícero Dias,Waldemar Cordeiro e Samson Flexor.
Sob a tutela de Ciccillo e de sua mulher, Yolanda Penteado, de família tradicional de paulistas, foi realizada, em 1951, a primeira Bienal de São Paulo, inspirada na Bienal de Veneza. Nela se expuseram 1.854 obras oriundas de 23 países num pavilhão construído sobre um terreno cedido pela Prefeitura de São Paulo na esplanada do Trianon, na Avenida Paulista, até hoje considerada o símbolo da maior cidade sul-americana. No lugar seria construída depois a sede do MASP, planejada pela arquiteta italiana Lina Bo Bardi, mulher de Pietro Maria Bardi.
Em 1953, a 2ª Bienal, que abriu as comemorações do quarto centenário de São Paulo, foi montada no conjunto de edificações desenhadas por Oscar Niemeyer, o autor do projeto arquitetônico dos edifícios públicos em Brasília, nova capital federal, inaugurada em 1961, e erguidas num amplo espaço verde: o Parque do Ibirapuera. Em 1957, ela se instalou no prédio especificamente construído para abrigá-la nesse conjunto, ao lado do MAM, do qual se separou em 1962, com a criação da Fundação Bienal, que organiza a mostra. Aos 54 anos de atividade, a exposição, único evento brasileiro assinalado no calendário internacional da arte e da arquitetura, concorre atualmente com 50 outras do mesmo gênero no mundo, permitindo a convivência das artes plásticas, cênicas, gráficas, design, música, cinema, arquitetura e outras formas de expressão artística.
Artistas revelados – Desde 1951, as 27 bienais revelaram grandes talentos brasileiros das artes plásticas e apresentaram aos artistas locais as tendências mais relevantes registrados no mundo. Na primeira edição, com 1.800 obras de 21 países, foi premiado o artista brasileiro (do Estado do Ceará) Aldemir Martins, recentemente falecido. Na segunda destacaram-se as retrospectivas de Picasso, incluindo Guernica, Volpi, Klee, Calder, Mondrian, Bonadei, Flávio de Carvalho e Manabu Mabe. Na 3ª brilharam Cândido Portinari e Lasar Segall. Mais de 15 mil obras foram expostas na 12ª. Na 13ª destacaram-se as salas hors-concours de latino-americanos: o mexicano José Luís Cuevas, o peruano Fernando Szyzio, o uruguaio Augusto Torres, o portorriquenho Luís Hernandes Cruz e o venezuelano Alejandro Otero.
A 18ª, em 1985, com a participação de 46 países glosando o tema “O homem e a vida”, incorporou a moda, que começava a tomar conta da produção artística mundial, das instalações – com a montagem da Grande tela – e das performances – de expressionistas alemãs e dos principais membros da transvanguarda internacional. Essa tendência se acentuou na 21ª, com as encenações predominando nas instalações de artistas como os brasileiros Alex Fleming e Maurício Bentes e a americana Ann Hamilton. A questão do suporte, debatida desde os anos 50, foi levantada na 22ª por inspiração do curador Nelson Aguilar, que também organizou a 23ª, com o tema “A desmaterialização da arte no Brasil”.
Adeus, moldura! – Um passeio por esta 27ª, sob curadoria de Lisete Lagnado, dá ao leigo a sensação de que, de fato, a ditadura do conceito desembarcou para valer na Bienal de São Paulo: este ano, os destaques cada vez mais deixam de ser as obras e passam a se concentrar nas complexas explicações dadas pelos monitores aos grupos de escolares que têm merecido a atenção especial dos organizadores. Mesmo sendo característica de praticamente todas as bienais e museus do mundo, a excessiva valorização da monitoria foi levada a extremos em São Paulo: Cada vez menos importa a obra, cada vez mais valoriza-se o artista. E tal valorização se faz pelo discurso conceitual rebuscado e maçante dos monitores.
Fora dos passeios guiados, nada de muito estimulante há, de fato, a ver. Logo á entrada, os guarda-chuvas do brasileiro Marepe, que se diz “observador ativo da inventividade da cultura popular”, davam a clara impressão de uma caverna povoada por morcegos gigantescos. Depois dessa visão, a próxima era a “escultura” de plástico On-air dos argentinos Tomás Saraceno e Juan Guerra, encomendada pela curadora e composta de balões de hélio, com a intenção de “investigar o potencial de estratégias alternativas de vida”. No espectador leigo, que não domina o jargão conceitual das instalações, resta a impressão de que a arte contemporânea, para ser aceita pelos curadores de bienais, será tudo o que não for e, sobretudo, não parecer “artístico”. São exceções peças como Poliuretano “A 12”, do argentino Leon Ferrari, que lembra A coluna de animais, do escultor mineiro sem formação erudita Artur Pereira, exibida na mostra Brasil imaginário.
Cultura da mistura – Curadora desta exposição, a paulistana Vilma Eid, proprietária da galeria Estação, onde ela foi montada, acredita que os caminhos da arte contemporânea passam muito mais pela cultura da mistura, em que popular e erudito não se distinguem (daí a semelhança acima citada), que pela discussão estéril entre cenário e instalação, performance e encenação. Após peregrinar pelas várias exposições simultâneas à 27ª Bienal, ela resumiu: “O critério de seleção das mostras paralelas foi mais aprimorado”. Isso, é óbvio, não reduz a importância da Bienal, pois estas sempre se referem a ela, seja para homenageá-la, seja para criticá-la.
Momentos felizes em técnica e inspiração, como os expostos na paralela A geração da virada (vide Karen no sofá, de Rodrigo Cunha), no Instituto Tomie Ohtake, mostram que o objeto artístico, seja quadro, seja escultura, negociado em galerias, morreu nas bienais, mas está ressuscitando além do território estéril e hostil da arte meramente conceitual.
© Revista Vértigo: Internacional. dezembro de 2006
Brasil, a “casa grande” da mãe Joana
O caos causado pela má gestão do Estado brasileiro é em terra, mar e ar
Dizia-se que a única lei que pegou aqui foi aquela na qual Gérson, fazendo propaganda de cigarros, enaltecia o “levar vantagem em tudo”. Hoje se verifica que mais efetivo entre nós é o “princípio de Peter”, que consagra a irresistível vocação humana para o erro: “Se algo pode dar errado, dará errado.” No Brasil, em especial depois de o sonho megalômano dos tecnocratas e militares da última ditadura ter sido sepultado sem honra no panteão da Nova República e, particularmente, na gestão pelo prejuízo do PT de Lula, errar é destino manifesto. Errou a base aliada no episódio do mensalão; erraram os companheiros “aloprados” que produziram o dossiê falso antitucano; enganou-se a Aeronáutica ao não dispor de equipamentos sobressalentes para evitar a pane de rádio nas torres de controle de nossos aeroportos; equivocou-se o ministro da Defesa, Waldir Pires, recusando-se a reconhecer que atrasos e cancelamentos de vôos representem uma crise neste país, onde a maioria dos eleitores que sufragaram o chefe dele nunca viu avião a não ser voando… lá longe, em nosso lindo céu de anil.
Na República da gestão da inércia e erro (alimentando-se mutuamente), na Pátria da impunidade ampla, geral e irrestrita, erra quem pode e quem tem juízo tenta se proteger desse erro. Fernando Morais está aí lançando a biografia do fundador do Instituto Técnico de Aeronáutica (ITA) e do Correio Aéreo Nacional (CAN), o brigadeiro Montenegro, mas esse tipo de herói que empenhava a vida em algo que podia dar certo, embora parecesse impossível, ficou fora de esquadro. A sigla agora pode servir para definir o Caos Aéreo Nacional, que começou há alguns anos quando os vôos passaram a atrasar pontualmente e ninguém providenciou nada, resultou na tragédia da queda do Boeing da Gol, chegou à crise do controle que ameaça as férias gerais nacionais e ninguém faz nada para que seus efeitos cessem. Ou seja, ninguém tomou providência nenhuma para que eles não produzissem essa sensação terrível de que a casa-da-mãe-joana é aqui. E ponto.
O publicitário Neil Ferreira tem saudade dos tempos em que se voava menos e de forma mais segura porque o cantor Jorge Veiga apelava pelos microfones da Rádio Nacional, a Globo da época da infância dele: “Alô, alô, emissoras de rádio do Brasil. Dêem seus prefixos para controle de nossas aeronaves!” O problema é que o CAN pode até dar a impressão de que, de repente, houve uma confusão causada por má gestão, mas isso se concentra nos ares do Brasil, quando, na verdade, o caos em terra firme é muito maior e tende a piorar, conforme constatou o ministro Augusto Nardes, do Tribunal de Contas da União (TCU), autor de um relatório sobre o colapso causado pela “desgestão” geral. As chuvas de dezembro impediram a chegada do “apagão” elétrico, mas a falência múltipla do Estado brasileiro está aí batendo a nossas portas nas esperas de nove meses por consulta no SUS.
Ineficiente, voraz e estróina, a máquina pública brasileira, seja ela federal, estadual ou municipal, é generosa com quem a domina e brutal com os que não conseguem acesso às “boquinhas” do aparelhamento a que a companheirada do PT a tem submetido desde sempre, mas mais ainda agora que ocupa a Presidência da República. É por isso que Waldir Pires sobrevive às exibições explícitas de incompetência que tem dado. E o diretor do Instituto Médico Legal de São Paulo, Hideaki Kawata, se deu ao luxo de atribuir a “muito azar” da “coitada” mãe Daniele Toledo do Prado, de 21 anos, o laudo falso, firmado por subordinados dele, que constatou cocaína na mamadeira da filha dela, Victoria, de 1 ano e 3 meses. A vítima não pôde ir ao enterro da filha, foi presa e agredida ao longo de 4 horas por companheiras de cela e nenhuma punição foi aplicada aos autores desse terrível engano.
Neste país, onde os traficantes fornecem serviços que deveriam ser do Estado na periferia das metrópoles e mandam nas cadeias onde moram e os controladores de vôo fazem da Aeronáutica, da Anac, das companhias aéreas, do governo federal e, sobretudo, dos passageiros gato e sapato, o contribuinte lesado, que paga a conta, nunca tem vez. O poeta paraense José Maria Leal Paes suspendeu suas viagens de Belém para São Luís porque a rodovia em que viajava agora representa uma ameaça à integridade de seu automóvel e à vida de sua família: os assaltantes esperam o transeunte no primeiro buraco e agem à luz do dia e na ausência de polícia. Assim como os guardas de trânsito em metrópoles como a nossa já deixaram há muito tempo de tentar orientar o chofer porque têm sua missão limitada a fornecer subsídios para a indústria de multas. Leal Paes se comunica com Deus e o mundo pela internet, mas certamente não foi ele quem avisou aos caminhoneiros do Brasil que não entrassem na conversa fiada do programa de renovação de frota do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Difícil é entender como 159 motoristas brasileiros ainda financiaram 118 caminhões novos e 41 usados para os pôrem na estrada e se depararem com o cano de uma arma de fogo pronto para furtar sua carga, a ser vendida ao comerciante inescrupuloso da próxima esquina, e sua vida, que, para qualquer um dos três Poderes republicanos, não vale um vintém furado.
O colapso da infra-estrutura, que é uma coletânea de erros de terra, mar e ar, como proclamava aquela coleção de romances de aventura de antanho, é a filho predileto da mentalidade dos dirigentes políticos de nossa democracia: eles transformaram o Estado brasileiro numa casa grande seleta e refinada e o resto do País numa imensa senzala. Lula e o PT não são os únicos culpados, mas sua crônica incapacidade gerencial tem dado uma enorme contribuição para o caos generalizado que nos espreita.
© O Estado de S. Paulo, página A2, quarta-feira, 13 de dezembro de 2006.
O Brasil mais perto de Cuba que do México
Não tem sido fácil para parte da intelligentsia brasileira entender por que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), impôs uma vantagem de 20 milhões de votos sobre seu adversário, o principal candidato da oposição, o ex-governador paulista Geraldo Alckmin, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), no segundo turno da eleição presidencial de domingo 29 de outubro. Mais difícil ainda será para o leitor mexicano, pouco habituado à História e à realidade da política brasileira. No entanto, não parece impossível explicar o que ocorreu.
Em primeiro lugar, a jovem e ainda imatura democracia brasileira, reconquistada há 22 anos, após a queda do regime militar, vive um contraste e um paradoxo. O contraste é que cada vez mais o povo vota de acordo com seus interesses e sem a intermediação dos chefes políticos dos célebres currais eleitorais do passado. E o paradoxo é que isso levou à vitória pela segunda vez de um líder capaz de entender e falar diretamente a cada cidadão, particularmente as camadas mais pobres de uma população majoritariamente composta por carentes, mas também viciado por uma vida inteiramente dedicada às estruturas sindicais dependentes do Estado e às comodidades da direção de um partido político, sem necessidade de lidar com a realidade da administração concreta de qualquer coisa que o preparasse para a gestão de um dos mais complexos Estados do mundo. A chegada do Brasil à democracia popular (o termo “de massas” talvez fosse impróprio por inexistir, na prática, um partido de massas) representa, pois, uma ameaça real às instituições da boa e velha democracia burguesa.
Identificação com o povo – Duas metáforas fizeram muito sucesso na recondução do egresso do sertão miserável do Nordeste, mas criado no berço da industrialização brasileira pós-1950, o ABC, ao posto máximo da República. Falou-se no efeito Teflon e no fim da teoria dos círculos concêntricos, que defende a irradiação dos valores da classe média rumo às camadas mais populares da população. O efeito Teflon refere-se à capacidade demonstrada por Lula de não se deixar sujar pelas falcatruas cometidas por companheiros muito próximos de seu partido e de seu governo.
Na verdade, ele venceu a segunda disputa eleitoral, após perder três vezes seguidas, para Fernando Collor, em 1989, e Fernando Henrique, em 1994 e 1988, por ser o político que mais se identifica com o brasileiro comum na experiência de vida e na comunicação em todos os tempos. Lula é como a maioria dos membros do lúmpen proletariado que o sufragaram maciçamente: tão inteligente quanto ignorante, preguiçoso e arrogante, avesso a cumprir a palavra e os acordos e fanático por futebol, despreparado e infiel. Por isso, e não por ser um fenômeno Teflon, em que nenhuma denúncia de fraude gruda na sua imagem por magia, é que convenceu 57 milhões de eleitores a lhe confiarem a condução dos negócios republicanos por mais quatro anos.
Sagacidade sem escrúpulos – Em 2002, ele vencera o social democrata José Serra convencendo parte significativa da classe média e a maioria dos segmentos populares de que seu partido, uma congregação de sindicalistas, ex-guerrilheiros da luta armada contra a ditadura e católicos da linha da Teologia da Libertação, era diferente de todos os outros, viciados na corrupção e no compadrio. Nos quatro anos de sua gestão, contudo, cumprindo a tarefa de aparelhar a máquina do Estado com militantes petistas, estes foram flagrados comprando parlamentares para aprovar projetos de interesse do governo e engordando os cofres do próprio partido de forma vergonhosamente ilícita. Há um ano e meio, tais escândalos foram revelados por um ex-aliado, o presidente nacional afastado do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), Roberto Jefferson. Isso o obrigou a mudar de tática: passou a repetir que os adversários que clamavam contra ele eram na verdade seus iguais. Estes caíram na armadilha e para defender alguns companheiros pilhados em práticas escusas semelhantes promoveram uma espécie de pacto sigiloso da impunidade, que não escapou à percepção pré-racional do eleitorado.
Numa mistura de sagacidade e falta de escrúpulos, características que sempre serviram de estofo para os políticos tradicionais no Brasil, ele convenceu o eleitorado, não de que ele não tinha conhecimento do que se passava em baixo e em redor dele, mas, sim, de que aquilo não tinha relevância para este. Não foi difícil convencer disso uma sociedade que convive diariamente com o crime organizado e, mais ainda, com a negligência das autoridades em relação a essas práticas ilegais, nas ruas das favelas metropolitanas e nas roças abandonadas dos ermos do interior. Para tanto, abusou da emoção e da fantasia: segundo o professor de marketing político da mais importante universidade brasileira, a USP, Gaudêncio Torquato, ele criou, em palanque, a “desrealidade” e a “desrazão”.
Tostão contra o milhão – Surpreendido pelo fato de a reação indignada da classe média ter forçado a realização do segundo turno, quando esperava ganhar no primeiro, o presidente adotou a estratégia de contrapor sua condição de pai dos pobres contra a elite interessada em vender o patrimônio público em benefício próprio. Favorecido pela reação covarde do adversário, que vestiu a carapuça ao tentar provar que não era a favor da privatização, aliás bem-sucedida, do antecessor do PSDB, Fernando Henrique, Lula conseguiu explorar a cantilena do “tostão contra o milhão”, de apelo popular garantido na história política nacional.
Além disso, usou sem pruridos morais a máquina do governo, aproveitando-se para isso dos benefícios propiciados pelo instituto da reeleição no Brasil, que, na prática, funciona como um recall. Instituído por Fernando Henrique em 1998, este propicia um tal desequilíbrio de oportunidade do mandatário (presidente, governador ou prefeito) que não sai do cargo sobre o oponente, que fica ao relento, que na prática, ao ser eleito pela primeira vez, qualquer prócer obtém um mandato de oito anos submetendo-se à avaliação do eleitorado no meio. Além disso, o sistema do voto obrigatório, uma excrescência da democracia brasileira, compensou dificuldades que uma candidatura apoiada no povo mais simples, como é a dele, poderia ter.
Pão à mesa – Duas outras explicações são necessárias para explicar o êxito de Lula, crivado de denúncias de corrupção, no segundo turno no Brasil: a estratégia de cevar os extremos do ranking social, desprezando o meio, e a incompetência da oposição. Em seu primeiro mandato, propiciou um aumento de 26% dos lucros das cinco maiores instituições financeiras comparando com os dois mandatos do antecessor, Fernando Henrique. Com isso, deixou a campanha do adversário a pão e água em termos de finanças. Em compensação, seus programas de assistencialismo direto, que aumentaram os gastos públicos e reduziram a capacidade de investimento do Estado, transferiram renda a ponto de aumentar em 23% o poder aquisitivo dos mais pobres, que, com pão à própria mesa, o sufragaram com fervor.
Além disso, seu oponente, o ex-governador de São Paulo Geraldo Alckmin, fez uma campanha sem propostas alternativas, pobre de idéias e absolutamente incompetente em termos de comunicação com o povo. Ficou na defensiva na questão da privatização, que poderia ter explorado positivamente, pois a vida do cidadão melhorou com a venda de parte dos ativos estatais, que só significavam ônus para a sociedade.
O sonho da potência emergente – Certo é que Lula conseguiu convencer a maioria do eleitorado a lhe dar “mais do mesmo”. É bem provável que repita a linha econômica conservadora, apesar de seu ministro de Relações Institucionais, Tarso Genro, haver anunciado na festa da vitória o fim da Era Palocci, do rigor fiscal. E insistirá no sonho estúpido de transformar o Brasil na potência dos emergentes, que foi perseguido ao longo de quatro anos pelo chanceler Celso Amorim, um diplomata de carreira que serviu à ditadura e ocupou o cargo no mandato-tampão de Itamar Franco, mas hoje atua à sombra dos dois principais ideólogos petistas de política externa: o terceiromundista Samuel Pinheiro Guimarães e o pretenso especialista em América Latina Marco Aurélio Garcia, que, na reta final da campanha, assumiu sua coordenação.
Esse trio esquerdista deverá dar a linha externa do novo governo: o Brasil manterá a política de confronto com os EUA e a aliança estratégica com o castrismo do venezuelano Hugo Chaves e do boliviano Evo Morales, pregando a integração latino-americana, inspirada no modelo bolivariano com pitadas de ignorância explícita. Ao comemorar o triunfo, Lula anunciou que estenderá o Mercosul a uma faixa territorial entre a Terra do Fogo e a Patagônia. Por mais que isso represente apenas mais uma de suas constantes agressões à lógica e à gramática, dificilmente o México, tido por ele como aliado preferencial dos EUA e do Canadá, será convidado a parcerias maiores, embora também não lhe deva ser atribuído papel de adversário ou de competidor ferrenho.
© Revista Vértigo: Internacional. 05 de novembro de 2006.
Lula foi à praia
Há quem tema que o segundo governo de Luiz Inácio Lula da Silva ponha em risco a estabilidade das instituições democráticas burguesas, pois a avalanche de 20 milhões de votos sobre o adversário tucano poderia instigá-lo a seguir os exemplos nada construtivos do colega venezuelano Hugo Chávez. A verrina de seu principal assessor para política latino-americana, Marco Aurélio Garcia, no comentário sobre os vândalos de crachá que agrediram os repórteres na festa de recepção ao reeleito em Brasília não deixa de autorizar esses temores. Embora esta possa não passar de um arreganho autoritário. Ou, mais ainda, a prova de que a frase famosa de Lord Acton esteja incompleta. O poder não apenas corrompe: ele também pode emburrecer. O diabo é que o poder absoluto, pela lógica, também emburrece de forma absoluta.
A reação do presidente à perspectiva de caos no controle do tráfego aéreo nacional – esbravejou com os subordinados, esmurrou a mesa e foi embora para a praia -, contudo, permite o palpite de que talvez na segunda gestão, mais milionário de votos que nunca, ele reforce o lado Ascenso Ferreira. Como o poeta e conterrâneo, o presidente pratica o “hora de comer, comer; hora de vadiar, vadiar; hora de trabalhar, pernas pro ar que ninguém é de ferro”. Depois da exaustiva campanha, viajando do “Oiapoque à Ilha do Marajó” (para nos adaptarmos a suas metáforas de aproximação geográfica), Sua Excelência resolveu desmentir de vez a paródia do próprio marqueteiro Patinhas do lema getulista com o “deixem o homem trabalhar” para pedir votos. Pelo ocorrido no caso, teremos mais do mesmo “deixem o homem descansar”.
© Jornal da Tarde, terça-feira, 7 de novembro de 2006.