José Nêumanne de Castro Pinto: Poema dez anos de amor

…e eu não quero mais nada
Para Isabel, desde 17 de setembro de 2011
Nel mezzo del cammin di nostra vita Dante Alighieri, A Divina Comédia
No meio do caminho da minha vida eu encontrei você
E eu não quero mais nada.
O sol parou, a lua suspirou, o céu caiu.
Você deteve o próprio passo e me seguiu.
Deu-me a mão e imitou meu passo, pé a pé.
Parecia só, mas estava sossegada.
Tudo o que queria pra mim ganhou sentido.
Brotou uma flor no meio do asfalto
E meu velho coração pulsou sem medo.
É desse jeito a nossa caminhada.
Nunca mais sozinho, você é meus amores.
Sempre é plural, múltiplo de dois, muito, demais.
Eu sou seu cateto, você, minha hipotenusa.
Você me basta, me sossega, me acalma.
Mas você também me excita, me agita, me atrai.
Você largou tudo para vir comigo. E veio ficando.
E eu só tenho paz se roubo a sua.
Você não olhou pra trás e eu sigo em frente.
Nós somos um. E somos todos. Poucos, os dois.
E tantos. Nunca me sacio de você.
Sempre quero mais, saber mais, amar mais.
Quero amar você como se só houvesse amanhã.
Você é meu desejo, meu abrigo, meu raio de luz.
Sem você não existe o resto nem o texto.
Eu leio nos teus olhos os mares
nunca dantes navegados,
Os espaços que nunca serão conquistados,
O céu, a terra, e o Éden infinito
Do tamanho do botão de sua blusa.
Nada existe que eu possa lhe dar
Que você já não tenha,
A não ser tudo o que eu quero,
Com você não saio mais de minha infância,
A seu lado navego minha madureza.
Tudo o que eu tiver de ter virá de tua mão aberta.
Não tenho medo de nada, nem de te perder,
Pois nada há, a não ser o que tiver de te achar.
Sou tua sombra e és minha luz,
Seu abraço é minha força,
Seu beijo, o sabor dos meus sonhos.
O dia em que eu te encontrei nunca acaba,
O galo nunca para de cantar,
Nem a coruja deixa de espiar.
Nossos trens nunca partem da estação,
Nosso poema, nossa rotina, é uma chegada que não cessa
E nossas surpresas nunca admitem retiradas.
No meio do caminho de nossa vida,
De nossas vidas,
Achei você e não preciso de mais nada.
Quero apenas o calor de seu colo
E a agulha sábia de sua bússola.
Quero ser a areia de sua ampulheta.
Com isso corro o mundo sem sair do lugar.
Nossa vida não cansa, não gasta, não para.
Nosso paraíso é o jardim que nos acolhe
No meio do caminho de nossas vidas
Eu me deparei com você
Você parou pra me ver
…e eu não quero mais nada.
José Nêumanne de Castro Pinto, ano X
Ouça também no Sound Cloud. Clique aqui.
Neste domingo no Aliás: Uma vida bem contada

Escritor, jurista, político e ex-chanceler
narra episódios importantes da história do Brasil
dos quais teve participação
A publicação mais imponente (1.789 páginas) e importante do mercado editorial brasileiro em 2018 – ano marcado no setor pelos pedidos de recuperação judicial das Livrarias Saraiva e Cultura – foi a reedição num só volume das memórias do político, jurista, ex-chanceler e literato mineiro Afonso Arinos de Melo Franco, A Alma do Tempo. Disponível também em edição digital à venda na Amazon, esta reedição com capa dura, lombada de 7,2 cm, vários textos introdutórios de expoentes da crítica, é um empreendimento de fôlego hercúleo, heroico e quase insano da editora Topbooks. A casa de José Mario Pereira, cujo primeiro grande sucesso foi outro volume de memórias de um homem público, A Lanterna na Popa, de Roberto Campos, edita mais um texto essencial para a compreensão da vida política, social e econômica do Brasil contemporâneo. Esgotada há quatro decênios a edição original em cinco tomos, a obra foi escrita numa língua portuguesa elegante, escorreita e canônica, à altura dos melhores entre os escritores que foram seus pares na Academia Brasileira de Letras (ABL).

Obra do sul-africano William Kentridge, que usou páginas de livros para homenagear os escritores, inclusive alguns brasileiros
Quando a empreendeu, em sua casa na rua Dona Mariana, em Botafogo, no Rio, Afonso Arinos já era reconhecido como estilista de gênio por duas biografias clássicas. A primeira é Um Estadista da República, sobre seu pai, Afrânio de Melo Franco, uma espécie de paródia republicana e familiar do clássico de nossas letras Um Estadista do Império, de Joaquim Nabuco, retrato do reinado de dom Pedro II a partir da vida do próprio genitor, Nabuco de Araújo. Outra obra capital dele no gênero foi Rodrigues Alves, relato biográfico em dois volumes. O interessante nesta obra-prima da crônica política da Velha República é que biógrafo e biografado têm suas vidas cruzadas (e não “paralelas”, como as narradas por Plutarco) duas vezes. A primeira delas: a mulher de Afonso, Anah, era neta de Rodrigues Alves. A outra é um dos mais singulares episódios da História do Brasil. O paulista foi eleito presidente da República duas vezes. Cumpriu o primeiro mandato, mas por ter morrido, vitimado pela gripe espanhola, não foi empossado pela segunda vez e foi substituído pelo vice mineiro, Delfim Moreira, clássico exemplo da aliança café (de São Paulo) com leite (de Minas). Sepultado o chefe do governo, contudo, ficou patente a doença mental do substituto legal. E as oligarquias, que manejavam os cordéis republicanos à época, encontraram uma solução salomônica, entregando o governo de fato, antes da eleição de Epitácio Pessoa, a um ministro de confiança do morto e do sobrevivente: Afrânio de Melo Franco, pai de Afonso Arinos. Este, ainda imberbe, avistou na casa familiar no Posto 6 de Copacabana, onde testemunhou a histórica Revolta dos 18 do Forte, uma cena trágica e inesquecível. Enquanto a mãe e o irmão Cesário morriam de febre espanhola, o pai, à beira dos leitos da esposa e do filho em agonia, resolvia negócios do governo republicano.

Afonso com o político udenista Milton Campos e o poeta Manuel Bandeira
Vale a pena reproduzir neste texto um parágrafo da descrição feita pelo autor a esse respeito. Ele escreveu: “Ora, tal situação não podia deixar de repercutir na nossa casa. Esta, apesar das condições trágicas em que se encontrava a família, passou a viver cheia, dia e noite, não só de amigos verdadeiros, mas também de políticos cerimoniosos, de altos funcionários, bem como de aduladores e oportunistas habituais em tais ocasiões, que surgiam farejando vantagens e alardeando serviços ao poderoso ministro”. O Brasil era, pois, idêntico ao que é hoje.
Para o estudioso e interessado em História, a pena de Afonso Arinos recolheu vívidas impressões sobre a austera, mas apenas remediada, e não nababesca, elite mineira, com quem conviveu de forma íntima e familiar. Entre os episódios mais interessantes narrados ao correr da pena no cartapácio destacam-se um encontro fortuito na infância e um convívio parlamentar longevo com um dos mais poderosos políticos da primeira metade do século 20. Criança, antes da Revolução de 1930, que pôs fim à era das primícias republicanas, foi levado a um passeio de trem com o então ainda presidente da província de Minas (seria depois da República), Artur Bernardes. Enquanto Afrânio e seus companheiros de passeio proseavam no trem, o cavalheiro, isolado, recebia um a um, convidados a se sentarem ao seu lado.

Afonso no dia de sua posse na Academia Brasileira de Letras
Deixemo-lo narrar o caso. “Fiquei espantado quando o chefe do trem veio procurar-me, em nome do presidente. Fui logo e Bernardes mostrou-me uma cadeira a seu lado, onde me sentei, entre divertido e receoso. O presidente curvou-se um pouco para me ver melhor, perscrutou-me por detrás de seu pince-nez enfumaçado, de chapéu-coco na cabeça, todo limpo e esticado. Depois, em voz baixa, como se estivéssemos confidenciando coisas graves, perguntou-me pelo colégio, pelos estudos, pelos professores, insistindo, particularmente em saber por que eu não me matriculara no ginásio de Belo Horizonte. Nossa conversa demorou bastante, até que ele me despediu, desta vez risonho, com um cordial aperto de mão”. Afonso Arinos testemunhou o período presidencial do mineiro, marcado por um longo estado de sítio. Curioso é pensar que o gestor a quem foi atribuída uma frase que virou provérbio – “aos amigos, tudo; aos inimigos, o rigor da lei” – conviveria na velhice com Afonso, já na maturidade, no plenário da Câmara dos Deputados no belo Palácio Tiradentes, no Rio.

Afonso face a face com seu maior adversário, Getúlio Vargas
O autor ainda participou do episódio sangrento protagonizado pelo caudilho que liderara a dissolução da aliança do café com leite: Getúlio Vargas. Líder da União Democrática Nacional (a UDN, partido político nascido do “manifesto dos mineiros” para se opor ao Estado Novo do gaúcho), o filho de Afrânio fez um discurso a que se atribui o motivo pelo qual o então presidente eleito pelo povo em 1950 resolveu atirar no próprio peito para “sair da vida e entrar na História”. Quando presidia o Senado, Antônio Carlos Magalhães editou uma coleção de CDs com os pronunciamentos mais importantes da Casa e o incluiu na antologia. O orador, contudo, recolheu-se à humildade de tribuno consagrado ao registrar nas memórias uma de suas famosas diatribes contra Vargas. “Na verdade o discurso, embora longo, não teve nada de propriamente novo. Apenas colocou em termos que então me pareciam mais acertados, e que ainda me parecem válidos, a realidade histórica daqueles difíceis dias”. Em seguida, copiou as notas taquigráficas do pronunciamento que sacudiu a História recente do Brasil em sua maior tragédia. “Unidos em torno das instituições, salvaremos o Brasil: divididos pelo ódio, mergulharemos a pátria na escuridão”. Retirado do contexto histórico, 65 anos depois, soa como uma prudente (e sábia) profecia.

Afonso com o também mineiro e memorialista Pedro Nava
Como dirigente da UDN, Afonso Arinos apoiaria a eleição de Jânio Quadros, que, feito presidente, o nomeou chanceler, mesmo sem ter ele feito carreira diplomática. Como chefe do Itamaraty, tentou evitar a crise da democracia posterior à saída de Jânio, sugerindo ao então presidente do Congresso, Auro de Moura Andrade, “a recusa da renúncia” — “cujas consequências”, observa, “eu logo entrevi, dadas a ausência de Goulart e a oposição que se formaria contra sua posse”. Seu telex não foi recebido e a História seguiu seu rumo implacável: o parlamentarismo imposto e o golpe que depôs o vice empossado.
Na saborosa leitura do pesado volume encontram-se, além de fatos, retratos impecáveis de grandes brasileiros com quem conviveu. Ele, que saudou o genial romancista Guimarães Rosa em sua entrada na ABL, fez perfis admiráveis, destacando-se as páginas em que falou da morte de Santiago Dantas e de Carlos Lacerda, seu companheiro na guerra de espadachins retóricos contra o PTB de Getúlio. Sobre o segundo é o caso de recorrer a seu estro para concluir este texto. “Carlos era feito para o triunfo na vida política e o prazer na vida pessoal. Não direi felicidade, porque é coisa indefinível e, no caso de certos santos, existe no próprio sofrimento”.
A Alma do Tempo é o documento de uma vida de relevo descrita com raras maestria psicológica e elegância estilística.
José Nêumanne Pinto
Serviço
A Alma do Tempo
Autor: Afonso Arinos de Melo Franco
Editora: Topbooks
1.789 páginas R$ 249,70
(O volume reúne cinco livros publicados entre 1961 e 1979)
Para ler no Portal do Estadão clique aqui.
No Aliás do Estadão deste domingo: O poeta contra o lugar-comum

A originalidade marca os dois livros de Antônio Carlos Secchin agora lançados, um com poemas seus, outro dedicado a obras alheias
O maior inimigo da boa literatura é o chavão. Não há verso ou prosa, por melhor que aparente ser, que resista ao poder corrosivo de uma platitude. Combater a praga da boa aparência que esconde a falta de originalidade é dever do crítico e professor de literatura. E só muita vigilância evita o literato de escorregar na mera mesmice. Poeta, crítico e professor, Antônio Carlos Secchin, membro da Academia Brasileira de Letras, é um cruzado contra o lugar-comum, como comprovam seus recentes lançamentos. Percursos da Poesia brasileira reúne lampejos de sua militância crítica e já encontra em nossas livrarias Desdizer, coletânea de poemas, que acaba de ser lançada em Portugal.

O acadêmico. Análises de Antônio Carlos Secchin dependem mais do trabalho do historiador do que propriamente de crítico. Foto: Ian Cheibub/Estadão
O que dá organicidade aos dois volumes não é o ineditismo, mas a originalidade. As análises do primeiro resultam mais do trabalho de historiador do que propriamente de crítico. Nele o autor reúne textos, já ou nunca publicados, num esforço que, mais do que de opinião, é de investigação das formas originais que a lírica brasileira – do romantismo ao pós-modernismo – engendrou para fugir da armadilha do facilitário, à disposição do escritor incauto. Essa fuga do repeteco comodista levou nossa poética a uma espécie de Olimpo distante do mercado, o que muitos apressados confundem com torre de marfim. Secchin defende quem se escondeu de recitais escolares em laboratórios do vernáculo.
É o caso de Bernardo Guimarães, romancista de A Escrava Isaura, sucesso em adaptações recentes para telenovelas, que tem lembrada a “vertente erótica-demoníaca” na visão do dublê de ensaísta e criador. Nas resenhas reunidas poetas consagrados como Alphonsus de Guimarães é analisada sua fase menos notória, antes da militância católica. Nesse livro Secchin enfrenta mitos consagrados como a inexistência de versos livres antes do modernismo, trazendo a lume a obra de Mário Pederneiras. E critica a Academia Sueca por não ter outorgado a Ferreira Gullar o Prêmio Nobel de Literatura. Duvidar quem há-de?
De Desdizer o título diz tudo. A obra contém a produção poética do acadêmico até o momento. Nela Secchin escapa de versos com pompa, frases feitas, trocadilhos e outras figuras de gramática como o diabo foge do Crucificado. Esse canto ao inusitado, que faz da arte poética mais semente do que fruto, e menos ainda repouso no certo e bem sabido, esgueira-se por todas as páginas e espanta traças e pó como adversários do novo que celebra a descoberta, e não a consagração, como o fizeram escritores citados no outro livro.
Na passagem do ano de 2002 para 2003, por exemplo, o poeta não deseja alvíssaras do calendário a inaugurar, mas deixa claro que propõe buscar em seus recantos disposição para avançar, não para renascer. Exemplo: “Teu corpo já bem maduro/ sustenta o tempo que virá depois./ Em ti revejo o avesso do futuro, / recém-amigo 2002”.
A poesia da desdita não é triste, como soem ser as baladas de desencontro e despedida. Na batalha contra o conformismo das formas rebuscadas, o autor se arma de um humor militante, quase feroz, quando, algumas páginas adiante, retoma o mesmo tema para mofar das listas de tarefas de virada de ano que compõem o réveillon de muita gente. A mordaz ferocidade torna o aparente retinir de taças de espumantes do título do poema Feliz Ano Novo um estilhaçar de cristais sem dó. Profetiza: “Encontrarás o amor de sua vida,/ inerte, num esquife de partida”. Ao chegar ao último verso, o leitor atento hesitará entre o susto e a gargalhada: “Chegará sorrindo ao Céu sonhado./ Mas é domingo. O portão está fechado”.
A impressão que algum desavisado pode fruir da poesia satírica de Secchin, como em sua militância crítica, é de que ele está atrás da porta, abafando o riso com a mão pelos próprios ardis. Sendo o autor, de ofício, professor de Literatura, pode ter encontrado inspiração na ironia aguda, mas sem amargura, de mestres como o maior de todos, Machado de Assis, e no senso de ritmo que Castro Alves aprendeu com Bocage. Ou ainda em autores contemporâneos de além-mar, casos do iconoclasta Cesário Verde, do polígrafo Fernando Pessoa ou da profunda e precisa Sophia de Mello Breiner Andresen. Mas não se deixe enganar: sua escrita é extremamente pessoal e, também por isso, inimitável.
Secchin sabe ser irreverente, quase blasfemo, no engraçadíssimo Soneto Pio, em que ele escorrega por uma irresistível pornografia profana ao tratar de tradição religiosa com palavras de duplo sentido e rimas ocultas: “E o sacerdote pega no pau, para espantar o exu. / ‘Quem no meu saco um bom óbolo mete?’, / fala um noviço tocando sineta”. Abordando a mais sagrada das formas, a dos sonetos parnasianos, o poeta põe à prova sua decisão de buscar o risco como objetivo, sem a qual a poesia não se realiza em sua forma mais ampla.
O mestre-escola exala conhecimento da teoria literária ao longo do livro todo, mas este leitor deslumbrado não poderia deixar de manifestar sua preferência por uma espécie de manifesto da instabilidade do balanço das ondas do mar e dos limites da grade que detém o voo das aves, num poema sem título que justifica sua veneração de pontífice do rito verbal. “O ar ancora no vazio. / Como preencher / seu signo precário? / Palavra, / nave da navalha, / gume da gaiola, / invente em mim / o avesso do neutro / o não assinalado, / o lado além / do outro lado”. Nessas 12 linhas de retas e curvas pretas sobre o papel, o poeta enfrenta o efêmero, navegando no fio da navalha, uma espécie de Ulisses indo a Ítaca em busca de Madame Satã. No caminho, ele para num porto para soltar o assum preto, cego dos olhos, para voar, mesmo na negra amplidão, solto da prisão do verso de Humberto Teixeira na toada de Luiz Gonzaga. O menestrel rebelde não dá bola para as armas e os brasões do caolho Camões, pois se dispõe sempre a buscar imagens atrás do reflexo do espelho na terceira margem do rio do conto de um prosador que ele conhece bem: João Guimarães Rosa. Aventura infinita, saga maldita, a do poeta na poesia, Gregório de Matos limado por João Cabral.
- José Nêumanne Pinto. Jornalista, poeta, escritor e autor deBarcelona, Borborema
(Publicado no Aliás, O Estado de S. Paulo, Pag. E3 , domingo 15 de julho de 2018)
Serviços
Percursos da Poesia Brasileira
Editora: Autêntica
368 páginas
R$ 59,80
Desdizer
Autor: Antonio Carlos Secchin
Editora: Topbooks
211 páginas
R$ 50
No Blog do Nêumanne: Audálio, o audaz sereno

Conheci Audálio Dantas quando eu tinha 9 anos e li suas reportagens na revista O Cruzeiro sobre Carolina Maria de Jesus, autora de Quarto de Despejo, um dos maiores sucessos do mercado livreiro e desde então só o admirei
Audálio Dantas foi meu primeiro herói no jornalismo. Em 1960, eu tinha nove anos e meu pai, caminhoneiro, sempre trazia exemplares de O Cruzeiro com reportagens que encantavam meus olhos já míopes retratando o mundo distante e misterioso do Sul Maravilha. Nestas revistas, entre O Amigo da Onça, de Péricles, e a Última Página, de Rachel de Queiroz, deparei-me com a saga de uma mineira moradora na imensa São Paulo ignota, em cujo barraco na favela do Canindé, movido de argúcia e sem pieguice, um repórter atento, sensível e de estilo elegante descobriu anotações de um diário, depois editado em livro e transformado num dos maiores êxitos do mercado brasileiro em todos os tempos,Quarto de Despejo. Era Audálio.
Só tive o prazer de conhecê-lo e a sorte de conviver com ele muito tempo depois, quando acompanhei sua eleição para a presidência do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo numa disputa histórica em que um grupo independente de profissionais de imprensa afastou da direção do órgão uma diretoria que não resistia a pressões vindas do alto da torre dos carros de combate da ditadura militar. Era um tempo de repressão braba e logo meu herói de infância se materializou numa figura admirável para um iniciante no mesmo ofício. Então em plena flor dos 24 anos de idade, em 1975.
Para conquistar minha devoção, ele não se vestiu de super herói nem de mártir da revolução socialista contra a brutal repressão da guerra suja do regime duro contra a guerrilha armada do extremo oposto, que não lutava para instalar uma democracia no Brasil, mas, sim, para substituir a tirania de direita por outra, de sinal invertido. Audálio sempre foi esquerdista, mas também um democrata capaz de respeitar e admirar quem não comungasse de suas ideias, desde que nele descortinasse talento e simpatia bastantes para desfrutar de sua prosa macia e de sua postura firme como garimpeiro de fatos em letras e mestre no ofício.
Naquela quadra, ele enfrentou uma dura batalha. Vladimir Herzog, nosso colega, dirigia o Departamento de Jornalismo da TV Cultura de São Paulo quando foi levado para uma delegacia de policia onde funcionava o DOI-Codi, órgão clandestino que executava a política de tortura e execuções dos comandantes militares no poder. E ali foi assassinado. Vlado, como era conhecida a vítima, não militava na guerrilha, mas simpatizava com o Partido Comunista, que se posicionava contra a luta armada. E foi levado ao martírio como bucha de canhão numa guerra intestina entre oficiais graduados pelo poder federal. Um grupo de generais da linha dura, chefiados por Sílvio Frota, ministro do Exército do presidente Ernesto Geisel, encontrou na militância de esquerda dos subordinados do chefe deles um pretexto para solapar o plano de abertura do grupo palaciano, cujo principal ideólogo era o chefe da Casa Civil, general Golbery do Couto e Silva. O alvo do sequestro e tortura, que terminou em morte, era José Mindlin, bibliófilo e industrial milionário, então secretário de Cultura do Estado, et pour cause, responsável pela nomeação do jornalista para o posto de comando. Com isso, Geisel não conseguiria, como pretendia, fazer do então governador de São Paulo, o civil Paulo Egydio Martins, seu sucessor. E, de fato, não conseguiu. Numa sessão de torturas, Vlado morreu e logo seus algozes fizeram circular a falsa notícia de que se havia enforcado. Foi a gota d’água para o cálice de fel transbordar e a resistência à ditadura organizou-se em torno de três chefes religiosos: o arcebispo católico, dom Paulo Evaristo, cardeal Arns, o rabino Henry Sobel e o reverendo James Wright, realizaram um culto ecumênico pela alma do morto na Sé, em pleno centro de São Paulo de Piratininga. O rabino autorizou que Vlado fosse sepultado no território comum dos filhos de Judá, e não no reservado para os suicidas, claro desafio à versão mal costurada do regime opressor. Como presidente do sindicato dos colegas do mártir, Audálio foi, ao mesmo tempo, audaz e sereno, sem se deixar tomar por repentes de ira nem por sintomas de covardia. O resto é história: a sociedade percebeu que o governo, que combatia os inimigos armados, também perseguia os arautos da liberdade, e lentamente corroeu as entranhas do regime, que ruiu.
Desses tempos para cá, dois outros pontos costuraram nossa relação pessoal. Ambos somos cidadãos de Campina Grande, na Paraíba. Eu nasci em Uiraúna, no alto sertão, e, desde a infância, amo a Rainha da Borborema como se, mais que madrasta acolhedora, ela fosse minha segunda mãe. Audálio veio à luz em Tanque d’Arca (Alagoas), pequena como minha cidade natal. Sua conexão com minha terra adotiva foi estabelecida por um amigo de infância dele, Joaquim Manuel Barbosa, enfermeiro celebrado, marido de Maria, figura popular na cidade, e pai de políticos atuantes no Estado.
Em 2011, publiquei um perfil nada lisonjeiro do político mais popular da História do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, que nunca admirei, O que sei de Lula (Topbooks, Rio). Embora não tenhamos conversado sobre isso, sei também que Audálio, que nos deixou para sempre na tardinha fria, depois de um dia de sol morno, de 30 de maio, continua tendo nosso personagem comum como um herói do povo, do qual ele, Audálio, sempre foi rebento fiel e devoto. Certo é que os melhores e mais ternos momentos de meu livro sobre seu tema foram copiados de uma das obras literárias mais comoventes, de tanta beleza que contém, que li na vida inteira, O menino Lula, escrita por Audálio, meu herói de ofício desde minha própria meninez.
Na bagagem que Audálio leva para cruzar o rio na canoa de Caronte carrega de mim uma lágrima, um lamento, um aceno e um sorriso triste deste que ainda encontra humor nas presepadas de que se lembra, mas ele nunca mais repetirá.
Jornalista, poeta e escritor
Para ler no Blog do Nêumanne, Política, Estadão, clique no link abaixo:
http://politica.estadao.com.br/blogs/neumanne/audalio-o-audaz-sereno/
Na revista Ventura, a edição bilíngue do poema de Nêumanne para Isabel

A edição bilíngue de 2018, número 91, da revista Ventura traz o poema “Isabel, mar e minas”, de José Nêumanne Pinto, inspirado na sua mulher e musa Isabel de Castro Pinto e traduzido por Lula Freire.
Reproduzimos aqui a versão em inglês e o original em português.
In the veins of Isabel
flows the blood of the Castros,
revolutionary of the 30’s
and mayor of cities
below the Equator line,
washed and dryed in the waters
of the water reservoir of Condado.
And also of the Pimentel’s,
of grandfather Leone,
dealer of hope
in times of hard work,
in order to live well in scarceness.
In the strainer of Isabel’s hair,
the gold of mine’s is seeked,
as between her lips, sheds
the warmth of coffee
planted in the Paraiba valley
and in the inland of São Paulo.
In the eyes of my beloved
shine sparks of emeralds,
caught in the Tambau sea.
Isabel is my Brazil, my worth Brazil.
Brazil of Bonifacios
Brazil of Tiradentes
Brazil of Villa Lobos
of aunt Ciata, Pizindim
and Heitor dos Prazeres,
of cowboys riding in caatingas
of cattlemen leading cattle on long journeys,
Brazil of Antonio Carlos Jobim and Portinari
Brazil of peasants hurting their fingers
catching capuchos of cotton,
and workers in the bus lane,
of streetcars that no more operate
and of the solitude of truck drivers.
Not this motherland bitten by the aedes aegypti
and corrupted by the zika of thefts,
nor this numb people
by the disease of the tse tse fly,
but the Brazil of our decent fathers
of our mothers teaching us the alphabet,
in the dry darkness of the general plains.
The Brazil marked by the feet of Isabel,
the country shaped by my wife’s hands,
that’s all I wish to legate to the future,
as a heritage made only of peace
without fear nor desperation.
Nas veias de Isabel
corre sangue dos Castro
de seu avô Ageu,
revolucionário de trinta
e prefeito de cidades
abaixo da linha do Equador,
lavada e quarada nas águas
do açudão de Condado.
E também dos Pimentel
de vovô Leone,
comerciante de esperança
em tempos de trabalho duro
pra viver bem na escassez.
Na bateia dos cabelos de Isabel
se garimpa ouro de minas,
como por entre seus lábios
passa o calor do café
plantado no Vale do Paraíba
e no interior de São Paulo.
Nos olhos de minha amada
fulguram fagulhas de esmeraldas
pescadas no mar de Tambaú.
Isabel é meu Brasil que vale a pena:
o Brasil dos Bonifácios,
o Brasil de Tiradentes,
o Brasil de Villa Lobos,
Tia Ciata, Pizindim e Heitor dos Prazeres,
de vaqueiros cavalgando em caatingas
e boiadeiros guiando boiadas em lonjuras,
o Brasil de Antônio Jobim e de Portinari,
o Brasil de camponeses ferindo dedos
ao catar capuchos de algodão
e de operários na fila do ônibus,
dos bondes que não andam mais
e da solidão dos caminhoneiros.
Não esta Pátria picada pelo Aedes aegypti
e corrompida pela zica do roubo
nem este povo entorpecido
pela moléstia da mosca tsé tsé.
Mas o Brasil de nossos pais decentes
e de nossas mães nos ensinando o beabá
na treva seca dos sertões gerais.
O Brasil pisado pelos pés de Isabel,
o País moldado pelas mãos de minha mulher,
é tudo que eu queria legar pro futuro
como uma herança só de paz,
sem medo nem desesperança.
José Nêumanne Pinto São Paulo, 30 de janeiro de 2016
No Aliás do Estadão: O rendez-vous do sórdido com o sublime

Poesia Completa é um livro à altura do fino ofício de Alberto da Cunha Melo
O volume de mil páginas provoca o primeiro impacto: como pode o pernambucano de Jaboatão dos Guararapes Alberto da Cunha Melo ter sido um poeta tão produtivo e copioso nos 65 anos em que viveu? Impacto ainda maior terá o leitor, habituado ou não à arte do romano Horácio (seu ícone e cânone), ao percorrer cada uma delas e nada encontrar que considere jaça. Há ainda, no caso desta Poesia Completa, a inserção do gesto criador, do labor exaustivo do autor, permitindo o acesso a poemas inacabados, esboços ou exercícios poéticos, alguns intocados há décadas: belos diamantes brutos, ainda não lapidados.
A poesia publicada em vida do autor foi louvada por críticos respeitáveis. Destaco dentre eles o poeta e professor paraibano Hildeberto Barbosa Filho, que parafraseou Johannes Pfeiffer em Introdução à Poesia: “devido à sua verdade, esta poesia é necessária; devido à sua beleza, é beatificante!” Alberto foi sociólogo e jornalista competente e pontual, mas revelava que essas atividades apenas lhe serviam como fonte de sobrevivência e, algumas vezes, de leitmotiv de seus poemas. Uno e indivisível, é poeta, e a terceira pessoa do singular rege o verbo no presente do indicativo, porque sua poesia atravessa o tempo e ganha uma dimensão que, apesar de todas as honras e gratificações em vida, ainda carece de maior reconhecimento a seu mérito.
A primeira vez que vi falarem dele foi em entrevista de Bruno Tolentino nas páginas amarelas da Veja. O implacável avaliador lançou-o às alturas de maior nome da poética nacional desde João Cabral de Melo Neto. A fé em Bruno me levou a adquirir os livros de Alberto, todos editados no Recife, berço de Cabral e Bandeira, sem penetração no Sudeste. O faro fino do editor Pedro Paulo de Sena Madureira, meu sócio na Girafa Editora, permitiu que a obra imensa e singular circulasse nas metrópoles a bordo de uma edição caprichada e magnífica de O cão de olhos amarelos & outros poemas inéditos. Os adjetivos usados descendem, mais do que do entusiasmo deste autor, da concessão do prêmio para o melhor livro de poesia dado pela Academia Brasileira de Letras em 2007. Debilitado, o poeta não foi à Casa de Machado de Assis recebê-lo e me honrou, como editor, pedindo para representá-lo.

Alberto da Cunha Melo, no lançamento do livro “O cão de olhos amarelos & outros poemas inéditos”. Recife: Girafa Editora, 2006.
Certa vez, Astier Basílio, precoce candidato a Arthur Rimbaud de Campina Grande (na comparação feita por Alberto e glosada por outro pernambucano, Jomard Muniz de Britto, que indagou quem seria, então, o Paul Verlaine da Borborema), pôs-me nas mãos um exemplar da edição artesanal de 200 exemplares numerados de Yacala, à beira do balcão do Café Aurora, na Praça da Bandeira, em Campina. Exórdio, o primeiro dos 140 poemas reunidos, sacudiu minha alma como um vagalhão na tempestade: “Levamos fogo, não esponjas, / ao trono sujo de excremento, / disputando o mesmo vazio / de uma estrela no firmamento; // jarros negros e estrelas, tudo / é uma busca de conteúdo; // ou somos renúncia ou cobiça, / atravessando esses planaltos / feitos de cinza movediça; // mas todos estamos em casa, / como os voos dentro das asas”.

Manuscrito da segunda versão do “Exórdio” do livro “Yacala”/ Alberto da Cunha Melo exibe uma matriz de chumbo do seu livro “Yacala”. Recife, Gráfica Olinda, 1999.
A emoção desse rendez-vous do sórdido com o sublime se repetiu ao reunir-me a um grupo de atentos e devotos espectadores que lotaram o auditório da Livraria da Vila no lançamento paulistano da obra magna. Entre os presentes, Cláudia Cordeiro da Cunha Melo, professora de literatura, mulher, viúva, a mais completa e mais autorizada crítica (o que permitiu ao poeta conviver com a própria exegeta e permitirá ao estudioso acompanhar neste livro seu processo de criação); Martim Vasques da Cunha, herdeiro de Tolentino, autor do texto da orelha e timoneiro do projeto; e, last but not least, Carlos Andreazza, o bravo editor que trouxe a lume o monumento.

Lançamento do “Poesia completa”. São Paulo, 19 de dezembro de 2017: Auditório/ José Nêumanne, Cláudia Cordeiro da Cunha Melo, Maria do Carmo Ducco / Carlos Andreazza, Cláudia, Isabel Moliterno, Dionísius Amêndola, Rafael Tahan e Martim Vasques da Cunha.
Melhor não teria a dizer sobre o livro que não seja o simples reconhecimento de que está à altura da obra que abriga pela fé, pela autenticidade, pela força, pela verdade, pela beleza e pelo compromisso ético com o que há de mais puro, cru e autêntico na arte maior. O cartapácio é o altar digno da obra que merece o mais alto posto no panteão da poesia em língua de Camões e Vieira.
José Nêumanne
- Jornalista, poeta, escritor e autor de Solos do Silêncio
Resenha publicada no Aliás, neste domingo, 28 de janeiro de 2017.