Brasil, a “casa grande” da mãe Joana
O caos causado pela má gestão do Estado brasileiro é em terra, mar e ar
Dizia-se que a única lei que pegou aqui foi aquela na qual Gérson, fazendo propaganda de cigarros, enaltecia o “levar vantagem em tudo”. Hoje se verifica que mais efetivo entre nós é o “princípio de Peter”, que consagra a irresistível vocação humana para o erro: “Se algo pode dar errado, dará errado.” No Brasil, em especial depois de o sonho megalômano dos tecnocratas e militares da última ditadura ter sido sepultado sem honra no panteão da Nova República e, particularmente, na gestão pelo prejuízo do PT de Lula, errar é destino manifesto. Errou a base aliada no episódio do mensalão; erraram os companheiros “aloprados” que produziram o dossiê falso antitucano; enganou-se a Aeronáutica ao não dispor de equipamentos sobressalentes para evitar a pane de rádio nas torres de controle de nossos aeroportos; equivocou-se o ministro da Defesa, Waldir Pires, recusando-se a reconhecer que atrasos e cancelamentos de vôos representem uma crise neste país, onde a maioria dos eleitores que sufragaram o chefe dele nunca viu avião a não ser voando… lá longe, em nosso lindo céu de anil.
Na República da gestão da inércia e erro (alimentando-se mutuamente), na Pátria da impunidade ampla, geral e irrestrita, erra quem pode e quem tem juízo tenta se proteger desse erro. Fernando Morais está aí lançando a biografia do fundador do Instituto Técnico de Aeronáutica (ITA) e do Correio Aéreo Nacional (CAN), o brigadeiro Montenegro, mas esse tipo de herói que empenhava a vida em algo que podia dar certo, embora parecesse impossível, ficou fora de esquadro. A sigla agora pode servir para definir o Caos Aéreo Nacional, que começou há alguns anos quando os vôos passaram a atrasar pontualmente e ninguém providenciou nada, resultou na tragédia da queda do Boeing da Gol, chegou à crise do controle que ameaça as férias gerais nacionais e ninguém faz nada para que seus efeitos cessem. Ou seja, ninguém tomou providência nenhuma para que eles não produzissem essa sensação terrível de que a casa-da-mãe-joana é aqui. E ponto.
O publicitário Neil Ferreira tem saudade dos tempos em que se voava menos e de forma mais segura porque o cantor Jorge Veiga apelava pelos microfones da Rádio Nacional, a Globo da época da infância dele: “Alô, alô, emissoras de rádio do Brasil. Dêem seus prefixos para controle de nossas aeronaves!” O problema é que o CAN pode até dar a impressão de que, de repente, houve uma confusão causada por má gestão, mas isso se concentra nos ares do Brasil, quando, na verdade, o caos em terra firme é muito maior e tende a piorar, conforme constatou o ministro Augusto Nardes, do Tribunal de Contas da União (TCU), autor de um relatório sobre o colapso causado pela “desgestão” geral. As chuvas de dezembro impediram a chegada do “apagão” elétrico, mas a falência múltipla do Estado brasileiro está aí batendo a nossas portas nas esperas de nove meses por consulta no SUS.
Ineficiente, voraz e estróina, a máquina pública brasileira, seja ela federal, estadual ou municipal, é generosa com quem a domina e brutal com os que não conseguem acesso às “boquinhas” do aparelhamento a que a companheirada do PT a tem submetido desde sempre, mas mais ainda agora que ocupa a Presidência da República. É por isso que Waldir Pires sobrevive às exibições explícitas de incompetência que tem dado. E o diretor do Instituto Médico Legal de São Paulo, Hideaki Kawata, se deu ao luxo de atribuir a “muito azar” da “coitada” mãe Daniele Toledo do Prado, de 21 anos, o laudo falso, firmado por subordinados dele, que constatou cocaína na mamadeira da filha dela, Victoria, de 1 ano e 3 meses. A vítima não pôde ir ao enterro da filha, foi presa e agredida ao longo de 4 horas por companheiras de cela e nenhuma punição foi aplicada aos autores desse terrível engano.
Neste país, onde os traficantes fornecem serviços que deveriam ser do Estado na periferia das metrópoles e mandam nas cadeias onde moram e os controladores de vôo fazem da Aeronáutica, da Anac, das companhias aéreas, do governo federal e, sobretudo, dos passageiros gato e sapato, o contribuinte lesado, que paga a conta, nunca tem vez. O poeta paraense José Maria Leal Paes suspendeu suas viagens de Belém para São Luís porque a rodovia em que viajava agora representa uma ameaça à integridade de seu automóvel e à vida de sua família: os assaltantes esperam o transeunte no primeiro buraco e agem à luz do dia e na ausência de polícia. Assim como os guardas de trânsito em metrópoles como a nossa já deixaram há muito tempo de tentar orientar o chofer porque têm sua missão limitada a fornecer subsídios para a indústria de multas. Leal Paes se comunica com Deus e o mundo pela internet, mas certamente não foi ele quem avisou aos caminhoneiros do Brasil que não entrassem na conversa fiada do programa de renovação de frota do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Difícil é entender como 159 motoristas brasileiros ainda financiaram 118 caminhões novos e 41 usados para os pôrem na estrada e se depararem com o cano de uma arma de fogo pronto para furtar sua carga, a ser vendida ao comerciante inescrupuloso da próxima esquina, e sua vida, que, para qualquer um dos três Poderes republicanos, não vale um vintém furado.
O colapso da infra-estrutura, que é uma coletânea de erros de terra, mar e ar, como proclamava aquela coleção de romances de aventura de antanho, é a filho predileto da mentalidade dos dirigentes políticos de nossa democracia: eles transformaram o Estado brasileiro numa casa grande seleta e refinada e o resto do País numa imensa senzala. Lula e o PT não são os únicos culpados, mas sua crônica incapacidade gerencial tem dado uma enorme contribuição para o caos generalizado que nos espreita.
© O Estado de S. Paulo, página A2, quarta-feira, 13 de dezembro de 2006.