O Brasil mais perto de Cuba que do México
Não tem sido fácil para parte da intelligentsia brasileira entender por que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), impôs uma vantagem de 20 milhões de votos sobre seu adversário, o principal candidato da oposição, o ex-governador paulista Geraldo Alckmin, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), no segundo turno da eleição presidencial de domingo 29 de outubro. Mais difícil ainda será para o leitor mexicano, pouco habituado à História e à realidade da política brasileira. No entanto, não parece impossível explicar o que ocorreu.
Em primeiro lugar, a jovem e ainda imatura democracia brasileira, reconquistada há 22 anos, após a queda do regime militar, vive um contraste e um paradoxo. O contraste é que cada vez mais o povo vota de acordo com seus interesses e sem a intermediação dos chefes políticos dos célebres currais eleitorais do passado. E o paradoxo é que isso levou à vitória pela segunda vez de um líder capaz de entender e falar diretamente a cada cidadão, particularmente as camadas mais pobres de uma população majoritariamente composta por carentes, mas também viciado por uma vida inteiramente dedicada às estruturas sindicais dependentes do Estado e às comodidades da direção de um partido político, sem necessidade de lidar com a realidade da administração concreta de qualquer coisa que o preparasse para a gestão de um dos mais complexos Estados do mundo. A chegada do Brasil à democracia popular (o termo “de massas” talvez fosse impróprio por inexistir, na prática, um partido de massas) representa, pois, uma ameaça real às instituições da boa e velha democracia burguesa.
Identificação com o povo – Duas metáforas fizeram muito sucesso na recondução do egresso do sertão miserável do Nordeste, mas criado no berço da industrialização brasileira pós-1950, o ABC, ao posto máximo da República. Falou-se no efeito Teflon e no fim da teoria dos círculos concêntricos, que defende a irradiação dos valores da classe média rumo às camadas mais populares da população. O efeito Teflon refere-se à capacidade demonstrada por Lula de não se deixar sujar pelas falcatruas cometidas por companheiros muito próximos de seu partido e de seu governo.
Na verdade, ele venceu a segunda disputa eleitoral, após perder três vezes seguidas, para Fernando Collor, em 1989, e Fernando Henrique, em 1994 e 1988, por ser o político que mais se identifica com o brasileiro comum na experiência de vida e na comunicação em todos os tempos. Lula é como a maioria dos membros do lúmpen proletariado que o sufragaram maciçamente: tão inteligente quanto ignorante, preguiçoso e arrogante, avesso a cumprir a palavra e os acordos e fanático por futebol, despreparado e infiel. Por isso, e não por ser um fenômeno Teflon, em que nenhuma denúncia de fraude gruda na sua imagem por magia, é que convenceu 57 milhões de eleitores a lhe confiarem a condução dos negócios republicanos por mais quatro anos.
Sagacidade sem escrúpulos – Em 2002, ele vencera o social democrata José Serra convencendo parte significativa da classe média e a maioria dos segmentos populares de que seu partido, uma congregação de sindicalistas, ex-guerrilheiros da luta armada contra a ditadura e católicos da linha da Teologia da Libertação, era diferente de todos os outros, viciados na corrupção e no compadrio. Nos quatro anos de sua gestão, contudo, cumprindo a tarefa de aparelhar a máquina do Estado com militantes petistas, estes foram flagrados comprando parlamentares para aprovar projetos de interesse do governo e engordando os cofres do próprio partido de forma vergonhosamente ilícita. Há um ano e meio, tais escândalos foram revelados por um ex-aliado, o presidente nacional afastado do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), Roberto Jefferson. Isso o obrigou a mudar de tática: passou a repetir que os adversários que clamavam contra ele eram na verdade seus iguais. Estes caíram na armadilha e para defender alguns companheiros pilhados em práticas escusas semelhantes promoveram uma espécie de pacto sigiloso da impunidade, que não escapou à percepção pré-racional do eleitorado.
Numa mistura de sagacidade e falta de escrúpulos, características que sempre serviram de estofo para os políticos tradicionais no Brasil, ele convenceu o eleitorado, não de que ele não tinha conhecimento do que se passava em baixo e em redor dele, mas, sim, de que aquilo não tinha relevância para este. Não foi difícil convencer disso uma sociedade que convive diariamente com o crime organizado e, mais ainda, com a negligência das autoridades em relação a essas práticas ilegais, nas ruas das favelas metropolitanas e nas roças abandonadas dos ermos do interior. Para tanto, abusou da emoção e da fantasia: segundo o professor de marketing político da mais importante universidade brasileira, a USP, Gaudêncio Torquato, ele criou, em palanque, a “desrealidade” e a “desrazão”.
Tostão contra o milhão – Surpreendido pelo fato de a reação indignada da classe média ter forçado a realização do segundo turno, quando esperava ganhar no primeiro, o presidente adotou a estratégia de contrapor sua condição de pai dos pobres contra a elite interessada em vender o patrimônio público em benefício próprio. Favorecido pela reação covarde do adversário, que vestiu a carapuça ao tentar provar que não era a favor da privatização, aliás bem-sucedida, do antecessor do PSDB, Fernando Henrique, Lula conseguiu explorar a cantilena do “tostão contra o milhão”, de apelo popular garantido na história política nacional.
Além disso, usou sem pruridos morais a máquina do governo, aproveitando-se para isso dos benefícios propiciados pelo instituto da reeleição no Brasil, que, na prática, funciona como um recall. Instituído por Fernando Henrique em 1998, este propicia um tal desequilíbrio de oportunidade do mandatário (presidente, governador ou prefeito) que não sai do cargo sobre o oponente, que fica ao relento, que na prática, ao ser eleito pela primeira vez, qualquer prócer obtém um mandato de oito anos submetendo-se à avaliação do eleitorado no meio. Além disso, o sistema do voto obrigatório, uma excrescência da democracia brasileira, compensou dificuldades que uma candidatura apoiada no povo mais simples, como é a dele, poderia ter.
Pão à mesa – Duas outras explicações são necessárias para explicar o êxito de Lula, crivado de denúncias de corrupção, no segundo turno no Brasil: a estratégia de cevar os extremos do ranking social, desprezando o meio, e a incompetência da oposição. Em seu primeiro mandato, propiciou um aumento de 26% dos lucros das cinco maiores instituições financeiras comparando com os dois mandatos do antecessor, Fernando Henrique. Com isso, deixou a campanha do adversário a pão e água em termos de finanças. Em compensação, seus programas de assistencialismo direto, que aumentaram os gastos públicos e reduziram a capacidade de investimento do Estado, transferiram renda a ponto de aumentar em 23% o poder aquisitivo dos mais pobres, que, com pão à própria mesa, o sufragaram com fervor.
Além disso, seu oponente, o ex-governador de São Paulo Geraldo Alckmin, fez uma campanha sem propostas alternativas, pobre de idéias e absolutamente incompetente em termos de comunicação com o povo. Ficou na defensiva na questão da privatização, que poderia ter explorado positivamente, pois a vida do cidadão melhorou com a venda de parte dos ativos estatais, que só significavam ônus para a sociedade.
O sonho da potência emergente – Certo é que Lula conseguiu convencer a maioria do eleitorado a lhe dar “mais do mesmo”. É bem provável que repita a linha econômica conservadora, apesar de seu ministro de Relações Institucionais, Tarso Genro, haver anunciado na festa da vitória o fim da Era Palocci, do rigor fiscal. E insistirá no sonho estúpido de transformar o Brasil na potência dos emergentes, que foi perseguido ao longo de quatro anos pelo chanceler Celso Amorim, um diplomata de carreira que serviu à ditadura e ocupou o cargo no mandato-tampão de Itamar Franco, mas hoje atua à sombra dos dois principais ideólogos petistas de política externa: o terceiromundista Samuel Pinheiro Guimarães e o pretenso especialista em América Latina Marco Aurélio Garcia, que, na reta final da campanha, assumiu sua coordenação.
Esse trio esquerdista deverá dar a linha externa do novo governo: o Brasil manterá a política de confronto com os EUA e a aliança estratégica com o castrismo do venezuelano Hugo Chaves e do boliviano Evo Morales, pregando a integração latino-americana, inspirada no modelo bolivariano com pitadas de ignorância explícita. Ao comemorar o triunfo, Lula anunciou que estenderá o Mercosul a uma faixa territorial entre a Terra do Fogo e a Patagônia. Por mais que isso represente apenas mais uma de suas constantes agressões à lógica e à gramática, dificilmente o México, tido por ele como aliado preferencial dos EUA e do Canadá, será convidado a parcerias maiores, embora também não lhe deva ser atribuído papel de adversário ou de competidor ferrenho.
© Revista Vértigo: Internacional. 05 de novembro de 2006.