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Maria Bonita

Rainha do cangaço, a companheira de Lampião ganhou um estudo da neta, Vera Ferreira

 

Nascida e criada na Malhada da Caiçara, no sertão baiano, Maria de Déa foi destinada ao casamento, celebrado em plena adolescência, e a uma vida pacata. Aos 16 anos, casaram-na com o sapateiro Zé de Nenê, mas o lar do casal, que foi morar no povoado de Santa Brígida, ali perto, logo desmoronou, segundo as más línguas porque o varão era pacato demais para a inquietação febril da mulher. Além do mais, o marido era estéril e a diferença de temperamento gerou conflitos que levavam o par a se separar e se reconciliar até o dia em que, no final de 1929, cruzou a soleira dos pais dela, Zé Filipe e Dona Déa, o temível Rei do Cangaço no sertão, Virgolino Ferreira da Silva, o Lampião, aos 32 anos.

O chefe de bando era vingativo, cruel e destemido, mas também tinha lá seus laivos de herói romântico. Dos saques das fazendas dos ricaços do sertão furtava perfumes franceses de boa cepa e o melhor uísque escocês. Ao relento nos acampamentos no zigue-zague das fugas para escapar da perseguição policial, puxava um fole de oito baixos e a ele foi atribuída a autoria de um dos maiores sucessos do cancioneiro sertanejo e nacional, Muié rendeira, de cuja autoria se apropriaria, no Rio, o malandro Zé do Norte. Não era de estranhar que fizesse corte à morena e começou por lhe encomendar que bordasse suas iniciais CL (Capitão Lampião) em 15 lenços de seda, o que permitiu a abordagem e, depois, serviu de pretexto a novo encontro, que terminou com a retirada da morena separada do marido da casa dos pais. Foi, então, que a beleza da escolhida do Rei lhe deu a alcunha com que morreu na Grota do Angico, Sergipe, ao lado do amante, e que se fixou na memória do povo: Maria Bonita.

Expedita, filha do casal real da caatinga, criada no Estado em que os pais morreram, Sergipe, sobreviveu à carnificina e gerou, entre outros filhos, Vera Ferreira, que, professora universitária em Aracaju, tem mantido viva a memória dos avós e empreendeu obra de vulto para comemorar o centenário da avó. Bonita Maria do Capitão, livro trazido a lume pela Editora da Universidade do Estado da Bahia, lançado em São Paulo na Livraria da Vila (Rua Fradique Coutinho, 915), por R$ 100, é obra de fôlego O volume de 328 páginas, organizado pela neta, jornalista e escritora, com a cumplicidade da desenhista paraibana Germana Gonçalves de Araújo, reproduz o legado da personagem lembrada pelos caprichos e vontades, mas também pelo bom humor e descontração quase infantil, com esmero e bom gosto.

A aventura da menina que saiu de casa aos 19 anos para percorrer o sertão nordestino a pé num bando de cangaceiros até tombar, aos 27, humilhada a ponto de ter a cabeça, decepada quando ainda vivia, exposta à curiosidade popular, tem sido narrada em prosa, verso, imagem e som.

O casal, evidentemente, foi tema de muitos romances de cordel. Num deles, Sabóia, chamado de Marechal de Cordel do Cangaço, registrou: “Cupido fez passatempo / com Maria e Lampião/ ela Rainha ele Rei / governou nosso sertão / cangaço e amor viveu / não foi uma ilustração”. Rouxinol do Rinaré e Antônio Klévisson Viana versejaram: “Maria Gomes de Oliveira / amou muito a Lampião / decidiu ser a primeira / cangaceira do sertão / ignorando o destino / acompanhou Virgolino / pela força da paixão”. O livro reproduziu a capa de um cordel de Sávio Pinheiro sob título O arranca-rabo de Yoko Ono com Maria Bonita ou A desaventura de John Lennon e Lampião, editado em 2008.

Seu apelido famoso também foi muito cantado. “Acorda, Maria Bonita, / levanta pra fazer café, / que o dia já vem raiando / e a polícia já está de pé” – esta é uma estrofe de Muié Rendeira, que ou foi acrescentada depois ou se tornou, como mofou Bráulio Tavares em seu texto registrado no livro, o caso de premonição mais espetacular da história da música popular, de vez que o casal foi morto, de fato, ao amanhecer.

Seu nome também foi muitas vezes lembrado em funções de repentistas pelo sertão afora. Certa vez, Otacílio Batista glosou: “Virgolino Ferreira, o Lampião, / bandoleiro das selvas nordestinas / sem temer a perigo nem ruínas / foi o rei do cangaço no sertão, / mas um dia sentiu no coração / o feitiço atrativo do amor / a mulata da terra do condor / dominava uma fera perigosa. / Mulher nova, bonita e carinhosa / faz o homem gemer sem sentir dor”. Zé Ramalho pôs música nos versos e a canção virou tema da minissérie Lampião e Maria Bonita, na Rede Globo.

A beleza de Maria, mostrada em foto e cinema por Benjamin Abrahão, fascinou artistas plásticos como Mino e virou tema obrigatório de xilogravadores como J. Borges, Mestre Noza, J. Miguel e Marcelo Soares. Suas peças de vestuário e as joias que usava foram reproduzidas no livro, que também se refere à peça de Rachel de Queiroz sobre ela e a filmes do gênero dito nordestern que a adotaram como personagem. Como resumiu Maria Lúcia Dal Farra em poema: “Maria de Déa, Maria Bonita, minha Santinha! / Mulher de tantos nomes / tão poucos para contê-la”.

Artes plásticas

A permanência de Maria Bonita como personagem emblemática se fez presente nas diversas recriações feitas por artistas, reproduzidas no livro, como a retratada na xilografia de Humberto Araújo.

Cinema

A cantora Vanja Orico de Maria Clódia caracterizada como Maria Bonita no filmeLampião, o Rei do Cangaço, de 1964, dirigido por Carlos Coimbra, uma das muitas adaptações de sua história para a tela grande.

Teatro

Croqui do “vestido de caatinga”, feito pelo artista plástico Aldemir Martins em 2006 para a montagem da peça Lampião, escrita nos anos 50 por Rachel de Queiroz, encenada no Teatro Leopoldo Fróes, em São Paulo.

Bonita Maria do Capitão. Livraria da Vila, Rua Fradique Coutinho, 915, tel. 3813 5811, terça-feira 10 de janeiro de 2012, às 18h30.

© O Estado de S. Paulo, 9 de janeiro de 2012, Caderno 2, p. D1

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