Adones Alves de Oliveira. Um amigo boa pinta, bom papo e boa praça.
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José Nêumanne
Jornalista, poeta e escritor
Recolhendo dados sobre meu querido e velho amigo Adones Alves de Oliveira, repassados pela viúva, Helô Machado, e pelo primogênito Felipe, escrevi um pequeno perfil para o obituário do Estadão. Logo na primeira frase topei com um mistério: por que cargas d’água o pai dele o teria ido registrar em outra cidade, em outro Estado? Adones nasceu na zona rural de Equador, hoje município, mas à época distrito de Parelhas, Rio Grande do Norte, e foi registrado em Santa Luzia do Sabugi, na Paraíba. Um relato simples e curto da historiadora Maria Isabel Pimentel de Castro Pinto, minha mulher desde 9 de junho último, me esclareceu tudo.
Isabel é neta de Ageu de Castro, dentista, farmacêutico, rábula e revolucionário de 1930, personagem de causos que José Américo de Almeida contava e Sebastião Nery reproduziu em livros. Ele foi um político de destaque nos dois Estados vizinhos e ocupou várias prefeituras. Uma delas, a de Parelhas. Ela me esclareceu que foi seu avô quem deu esta denominação ao distrito, porque ele e a população não se conformavam com a denominação fescenina que a tradição cunhou: Priquito de Maria. Esclarecido o mistério: Adones nasceu na zona rural do vilarejo que ainda tinha um nome impublicável quando se deu o parto de dona Clotilde. João Caetano, o pai, preferiu registrá-lo num lugar de nome menos profano e mais sagrado: o da santa padroeira da visão. Não ficou esclarecido? Pois é: coisas do sertão!
Este sertanejo aqui cruzou com Adones sem saber, antes sequer de conhecê-lo. Regina Coeli, minha primeira namorada, minha noiva, minha primeira mulher, mãe de meus filhos, avó de meus netos, morava no Ponto de Cem Réis em Campina Grande. Quando ia me encontrar com ela na bodega de seu pai, seu Aluísio Felizardo, descia a rua João Alves de Oliveira, nomeada em homenagem a um parente bem mais velho dele.
Também conheci-o pelas mãos de uma mulher bonita: Helô Machado, que trabalhava no arquivo da Folha de S.Paulo, em cuja redação eu era repórter da editoria local. Eles eram casados e o primogênito, Felipe, era criança quando passei a frequentar seu apartamento na rua Dr. Veiga Filho, em Higienópolis. Numa festa dessas, Belchior, que, graças à ajuda de Adones e à minha, morava numa casa em construção de Irede Cardoso, colega de Helô e minha na Folha, terminou Como nossos pais. No mesmo lugar, comemoramos a decisão de nossa amiga comum Elis Regina gravar a canção e transformá-la num clássico da música popular brasileira.
Fazia parte de nosso folclore particular a história de Adones levando Helô, filha de coronel da PM paulista, portanto criada com conforto na Pauliceia Dilacerada, para passar a lua de mel em Junco do Seridó, no alto da Serra da Viração, a meio caminho entre Equador e Santa Luzia e perto de Caicó, onde nosso amigo cursou o primário. Conheci bem o Junco. Quando se quer dizer que uma cidade é pequena, diz-se que só tem uma rua. Junco tinha meia. À beira da estrada, meninos vendem excelente castanha de caju torrada. E foi a estrada (o princípio da BR230, que termina na Transamazônica) que permitiu que ela tivesse futuro. Antes ficava fora do caminho. Com a rodovia, ficou literalmente no meio do caminho. Eu estudava no Instituto Redentorista Santos Anjos, em Bodocongó, Campina Grande, e passava férias na casa de meus pais em Uiraúna, no sertão do Rio do Peixe, também limítrofe com o Rio Grande do Norte. Antes de chegar o asfalto, o ônibus parava no posto de João Galo para um lauto e gostoso café da manhã preparado pela excepcional cozinheira dona Lourdes, mulher do dono. Um doido local, Barrão 70, ruivo sarará e feliz proprietário de um único dente na boca inteira, carregou as malas do casal para a casa de um primo de Adones, Dr. Zequinha, local escolhido para a lua de mel.
Pouco antes de nosso casamento, Isabel e eu recebemos Adones em casa para um almoço em família. Adones era primo do dr. Zequinha, ou seja de Alexandre Tabajara, meu sogro. Para completar as coincidências, Isabel passou a infância andando de bicicleta na meia rua do Junco. Isabel e eu o encontrávamos frequentemente no Shopping Higienópolis. Conversávamos sobre os Balduíno, fundadores de cidades sertanejas e parentes de ambos ou amigos do passado no Pedro II, Franco Paulino, e em redações: Antônio Torres, do Última Hora de São Pauloo, Cícero Afonso Vieira, lendário chefe de revisão da Folha, e Mário Leônidas Casanova, do Estadão, principalmente. Este papo já faz falta em nossas vidas.
Reproduzo abaixo dois textos: o que escrevi para o Estado e o discurso de Felipe na missa de sétimo dia em que encontrei muitos antigos companheiros das redações que freqüentamos da Folha e do Estadão.
Aí vão, se lhe interessar:
Adones, 77 anos e 2 meses, jornalista
Adones Alves de Oliveira nasceu em 15 de setembro de 1936 numa fazenda perto do distrito de Equador, município de Parelhas, no Rio Grande do Norte, mas foi registrado numa cidade próxima, Santa Luzia do Sabugi, no Seridó paraibano, notório pela boa fibra de seus algodoeiros e pela animação das festas juninas. Estudou no internato do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, cidade onde cursou a faculdade de Filosofia e Letras e se tornou profissional de jornalismo na Revista Radiolandia e no jornal Última Hora. Em 1964, mudou-se para São Paulo, onde trabalhou no Última Hora e, em 1966, entrou na Folha de S.Paulo como repórter, redator e cronista de TV e MPB. Especializou-se, então, na cobertura dos festivais de Música Popular Brasileira, nas TVs Excelsior e na Record, e no Festival Internacional da Canção, da Globo. Foi jurado nos dois últimos. Atuou como galã de fotonovela e fez parte do elenco do filme Bebel, a Garota Propaganda, de Maurice Capovilla. Nos anos 70, trabalhou como repórter e editor de variedades do Estado de S. Paulo. Nos 80, fez parte da redação da revista Visão e se dedicou à área de turismo: escrevendo para o Shopping News e Brasilturis, viajou pelo mundo inteiro. Casou-se com a também jornalista Helô Machado, paulistana, e com ela teve dois filhos, Felipe, que dirigiu o portal do Estadão, e Fernando, executivo da indústria fonográfica, e duas netas, Isabel e Laura, ambas de 7 anos. Morava sozinho em Higienópolis e foi surpreendido, à noite, por um infarto fulminante no miocárdio.
Um homem vestido de sol
Felipe Machado
A lógica natural da vida exige que todo homem, mais cedo ou mais tarde, pronuncie as temidas palavras que ameaçam dobrar a esquina desde os tempos em que o menino descobre que ninguém vive para sempre.
Meu pai morreu.
Por mais que seja aparentemente contraditório, o mais difícil não é dizer essa frase dezenas de vezes em voz alta, quando a vida em sociedade torna necessário espalhar a triste notícia entre amigos e familiares. É muito mais dolorido quando chega o momento de tentar entender e contar o que aconteceu para si mesmo, longe do carinhoso ruído e das pesadas lágrimas de quem quer sofrer junto.
É o momento mais solitário e, ironicamente, o mais universal. Os que não passaram por isso, passarão. Os que já passaram compartilham o sentimento do navegante que se vê perdido no mar após olhar ao redor e perceber que o farol se apagou.
Mais que um farol, meu pai era um sol. Por várias razões. Pelas mais poéticas, diria que ele foi um ser que irradiou luz e fez girar em sua órbita corpos celestes e terrenos, atraídos por sua inteligência, simpatia e carisma. Pelas razões mais simples, diria que ele era um sol porque andava cada vez mais obcecado pelo calor, pela sensação dos raios solares cortando sua pele como lâminas de luz. Se pudesse escolher, tenho certeza de que nessa última viagem ele teria se vestido apenas de sol.
Meu pai viajou tanto na vida que enjoou. Depois de tanto tempo escrevendo sobre música e arte, foi escrever sobre o mundo. E gostou. Engraçado porque sempre me lembro dele voltando de algum lugar, nunca indo. Talvez eu tenha ficado com essa impressão porque viajar é sempre uma folha em branco, colorida com opiniões e impressões somente depois que se volta. As palavras, suas únicas companheiras constantes em todas as viagens, esperavam ansiosamente até chegar em casa para poder descansar das aventuras nas folhas de papel.
Antes das viagens, meu pai escreveu sobre música. Acho que foi sua grande paixão, mais forte do que o cinema, a literatura, a arte. Tinha orgulho de ver o sobrinho, meu primo Pedro, dividir o palco com as maiores orquestras do mundo. Nos últimos tempos, quando a saúde o obrigou a ficar mais introspectivo, a música se tornou ainda mais parte da sua vida, do seu corpo, da sua alma. Como nós respiramos, comemos e dormimos, meu pai ouvia música.
A vida do meu pai foi uma sinfonia. O primeiro movimento começou devagar, Andante, nos confins do Sertão do Brasil. Os documentos diziam que o filho da minha avó Clotilde e do meu avô João Caetano veio ao mundo em 15 de setembro de 1936 em Santa Luzia, Paraíba, mas ele insistia em dizer que havia nascido em uma fazenda no meio do nada em Equador, Rio Grande do Norte. O amor pelo sol deve ter nascido aí. Ao remexer em papeis antigos, descobri coisas e histórias que ele nunca me contou em vida – e nunca mais contará.
Resta ler que ele fez o primário no Ginásio Diocesano Seridoense, em Caicó, Rio Grande do Norte, uma cidade da qual eu nunca ouvi falar. Como um dos seus irmãos ficou no Rio Grande do Norte, um outro foi para Pernambuco e os outros ficaram na Paraíba, nunca pensamos na infância do meu pai em termos geográficos muito bem definidos: para nós, o lugar de origem do meu pai, o paraíso encontrado onde eu e meu irmão passamos tantas férias, era, simplesmente, o Nordeste.
O segundo movimento da sinfonia Adoniana, Presto, começou com uma viagem que mudou sua vida. Em 1951, o corajoso garoto de quinze anos chegou sozinho ao Rio de Janeiro, para estudar no prestigioso internato Colégio Pedro II. De lá sabemos apenas que fez grandes amizades e desenvolveu o amor pelo cinema, a música e as palavras. Gostou tanto delas que entrou para a Faculdade Nacional de Filosofia, onde cursou Letras Neo-Latinas. E de lá saiu direto para a redação da revista Radiolândia, onde passou a escrever sobre os artistas e as paradas de sucesso.
Em 1960 começa o terceiro e fortíssimo movimento dessa sinfonia: Adones muda-se para São Paulo para escrever no jornal Última Hora. E daí vieram os convites para ser jurado dos grandes festivais, os empregos nos grandes jornais da cidade, Folha e Estadão, as assessorias de imprensa para políticos, as bienais de arte, as intermináveis viagens. Ainda na Folha, conheceu uma jornalista chamada Helô Machado, por quem se apaixonou. Como não se apaixonar? Minha mãe era linda, talentosa, chique. E continua assim até hoje.
O quarto e último movimento da sinfonia do meu pai combina com seu nome. Adágio, Adones. Aposentado, passou a curtir a vida lentamente. Aproveitou para brincar com as netas, Bebel e Laura, conversar com os amigos na praça, passear por Higienópolis, bairro onde se sentia verdadeiramente em casa. O lugar, aliás, que escolheu para viver e morrer, em 24 de julho de 2014.
Meu pai morreu.
É duro para um filho dizer isso, mas não sei se cheguei a entender meu pai. A amar, sim, claro, mas acho que nunca cheguei a compreendê-lo direito. Não sei se esse sentimento também é universal, mas para mim meu pai foi um enigma. Nunca se abriu, nunca foi de contar muitas histórias da infância. Conversávamos sobre as músicas dos outros, os livros dos outros, a vida dos outros. E agora tento descobrir quem ele realmente era sem sua presença, lutando para entender as pequenas letras nos diários esquecidos em caixas no fundo do armário. Não há legendas, nem rodapés de página para explicar. As memórias morreram com ele, uma pena. Só nos resta ficar aqui, eu, minha mãe e meu irmão, sozinhos, pensando como seria a vida que nunca mais será.