Os doidos mentais da minha terra
Morreu o Caixa. Para quem não é da Paraíba, como este escriba, tal começo pode até parecer enigmático, sem nexo. Que Caixa masculino é este, que não é de banco nem de supermercado, mas gente, com C capital, adequado para a definição de substantivos próprios, que denominam seres vivos, do reino animal? Que animal racional seria esse Caixa, segredo dos paraibanos, desconhecido dos outros brasileiros?
O nome dele era Manoel José de Lima, além de paraibano, pobre e poeta – a língua do pê feito gente. A vida inteira percorreu as ruas da capital do Estado, João Pessoa, a pé, como um peregrino, para não fugir da prosódia pessoense. Pobre, sim, maltrapilho nunca. Ao contrário: envergava invariavelmente um terno de linho branco, embora nem sempre tão branco assim, com nódoas amareladas e manchas de sujeira denunciando o desleixo e a pobreza do dono. Quando lhe perguntavam sobre sua preferência pela cor favorita das noivas, respondia que aquilo era coisa de intelectual. Nisso se parecia com outro fã do linho imaculado, o usineiro de açúcar Renato Ribeiro Coutinho. Na terra de Caixa, diz-se, a gente se divide em duas categorias: os Ribeiros Coutinhos e os Ribeiros coitados. Manoel era tão coitado que nem sequer chegou a Ribeiro. Ainda assim, tratava o companheiro de alinhamento com desprezo. Se alguém lhe perguntava por que Renato usava branco, ele respondia com uma grosseria: “É porque ele é um imbecil”. Generoso, folgazão, o ricaço terminou por presenteá-lo com uma casa. O colega de terno branco não era ingrato. Ascendeu o generoso doador ao lado nobre das letras e, desde que ganhou a casa, Caixa incorporou o empresário à casta dos “intelectuais”. Vai saber o que seria um intelectual para Manoel.
Uma renka alcoolizada – Sabe-se apenas que ele era poeta. Sim. E, acredite quem quiser, era dos bons! De seus porres magníficos brotaram versos de tal elegância de estilo que o autor os repetia no mesmo poema, sem pudor: “Eu tinha nas minhas mãos somente sonhos/ eu tinha nas minhas mãos somente sonhos”. Sabe a renka japonesa, aquele gênero que repete versos como se fosse um modo de viola sertanejo e que o poeta de Jaboatão Alberto da Cunha Melo trouxe para seu magnífico O cão dos olhos amarelos? Pois então: sem nada saber do gênero Manoel inventou essa versão própria, a renka da Lagoa Sólon de Lucena, a renka da Praia de Tambaú, ensopada de álcool notívago.
Mas as épicas carrapanas do poeta na Churrascaria Bambu ou no vanguardista cabaré da Berta produziam também trapalhadas magistrais. Tropeçando nas pernas e nas palavras, certa noite, o poeta resolveu desafiar a ladeira que o separava da porta salvadora da própria casa e sapecou um poema que se tornaria célebre entre os colegas de cana e tremoços: “Ladeira da Borborema, / eu subo em tu, / mas tu não sobe ineu”.
Entre um porre e outro, o poeta fazia versos e misteriosamente conseguia o feito raríssimo entre colegas menos afortunados: conseguia publicá-los. Alguns denotavam um gênio rústico, mas inegável, como a estrofe que usei como epígrafe em meu livro de estréia, de poesia, As tábuas do sol: “Para que me ensinassem / os caminhos por onde caminhei / as cidades sem portas / as ruas brancas de minha infância / que não voltam mais”, de uma força estranha e pungente. Quanto lirismo! Quanta exatidão! Que vocação para o ritmo e a simetria interna da palavra!
Barganha e intimação – O bardo costumava levar seus livros para os lançamentos de outros escritores que comparecessem a João Pessoa e promovia um escambo que se tornaria tradicional. Deve ter freqüentado todos os lançamentos de livros promovidos na capital paraibana enquanto viveu. Costumava ir antes da hora marcada para o lançamento, quando o autor tomava conhecimento do local onde seria submetido à tortura habitual de ter de identificar todos os convidados postados na fila ritual à espera da chatice das loas solenes das “apresentações”. Aquele sujeito moreno, cor de indiano, franzino, chegava de mansinho e propunha: “Caro colega, vamos fazer uma troca. Eu trouxe aqui meu último livro, que vou lhe dar autografado. E você me dá o seu.” Antes mesmo de o interlocutor aceitar a troca, já estendia o braço vestido na manga folgada do paletó de linho branco com o próprio livro previamente autografado, normalmente com uma dedicatória enxundiosa e laudatória. Nunca foi de economizar encômios.
Certa vez, este escriba foi lançar um livro em João Pessoa e cometeu a imprudência de chegar muito tempo antes. À oferta de hábito o visitante inesperado apresentou-se e acrescentou um pedido que reservava apenas para alguns eleitos: “Colega, terei o maior prazer em discursar em seu lançamento. Vai me dar a honra?”
Naturalmente. E quem não daria? Primeiro falaria o prefeito da capital, inimigo do governador que, em seguida usaria a palavra. O autor discursaria em seguida e lhe daria a vez. Correto? Pois sim, como não? À hora aprazada, o poeta, impaciente, esperava a oportunidade de falar e os discursos se encompridavam, parecendo não ter mais fim. A canícula aumentava o desconforto e o último orador não fazia segredo de seu desapontamento. Já perorava, finalmente, o penúltimo, quando fez uma pausa, para respirar. A multidão cansada e suada se rejubilou quando ouviu a voz dele, exausta, mas autoritária, ordenar: “E para concluir…”
Juízo para os doidos – Impossível, naturalmente, será concluir sem, finalmente, ufa, informar que o Caixa de seu apelido, que na prática virou sobrenome, nada tinha a ver com banco, supermercado ou mesmo recipiente para guardar mercadoria. Era Caixa d’água. Mais precisamente Mané Caixa d’água o epíteto do poeta popular. Sabe-se ser dele a famosa explicação que deu quando alguém lhe perguntou sobre o verdadeiro e profundo significado do verbo “abrumar” quando, recitando um poema à mesa de um botequim, saiu-se com um verso enigmático: “Quando minha mãe se abruma”. Um ouvinte mais ousado perguntou-lhe, então, o que queria, afinal, dizer essa palavra “abrumar”? “Sei lá, colega, isso é coisa de mãe. E vou lá eu saber coisa de mãe?!”. E dado por encerrado foi o assunto.
De outra frase famosa, contudo, não há certeza da autoria. “Pra ser doido na Paraíba é preciso ter muito juízo”, teria ele dito, vangloriando-se de sua posição de doente mental favorito do governador de plantão. A frase tanto pode ter sido cunhada por ele, louco oficial na gestão de Ernani Sátiro, de Patos de Espinharas, quanto por Mocidade, doido oficial no governo de João Agripino Filho. Vai saber!
O tribuno dos enterros – Certo é que é impossível falar de Caixa sem falar de seu antípoda, Mocidade. Este tinha nome de general, João Costa e Silva, e não era dado a arroubos de lirismo como Mané, que a ele sobreviveu por muito tempo. Mocidade não era dado a versos, mas à retórica fogosa e barroca dos palanques. Não perdia um enterro, de célebre ou de anônimo. Fosse quem fosse o defunto, merecia um necrológio feito pelo ídolo da garotada nas ruas, sempre de terno e gravata. Só que terno escuro, não branco.
Mocidade teve privilégios negados a Caixa d’água. Chegou a morar na residência oficial do governador quando estava nas boas graças de João Agripino, um sertanejo sisudo e secarrão, que nada tinha de parecido com os arroubos sangüíneos de seu colega da UDN Ernani Sátiro. Consta que certo dia, embriagado, o orador andou maltratando o roseiral da primeira-dama. Foi a gota d’água, que resultou na expulsão. Enfurecido, o louco saiu pelas ruas e se deparou com um magote de estudantes protestando contra o acordo Mec-Usaid em plena ditadura militar. Não titubeou: subiu no palanque e pôs sua candente oratória a serviço da fúria civilista e rebelde da juventude. Falou tão duro e com tal convicção que terminou preso junto com os líderes.
No xilindró, proclamou com tal veemência sua condição de bobo da Corte e amigo do rei que terminou convencendo o oficial que o prendera por não conhecê-lo a telefonar para o governador e confirmar que, de fato, o palanqueiro gozava da intimidade que dizia ter com ele. Confirmada a pretensão dele, foi solto e encaminhado à residência oficial, onde João Agripino o esperava. Foi recebido com o estilo áspero pelo qual se tornara conhecido o político de Catolé do Rocha (“João Agripino é como mandacaru, não dá sombra nem encosto”, dele dizia José Américo de Almeida): “Com que, então, você dorme na cama de seu amigo, come da comida de seu amigo e se junta aos estudantes baderneiros para falar mal do governo desse amigo, hein, seu João?” Habituado ao tom íntimo com que o xará o tratava sem apelar para a alcunha, Mocidade encontrou uma saída genial, afirmando, após um muxoxo: “Ora, seu João, governo é pra sofrer mesmo!” E, depois, fechou-se em copas.
Encontro no céu – Mocidade e Caixa d`água nunca se deram bem. João Pessoa já crescia muito, mas ainda assim era um território pequeno demais para abrigar ao mesmo tempo dois egos monumentais como os que se revelavam nos poemas bêbados do Rimbaud Rústico da Ilha do Bispo e nas orações fúnebres do tribuno dos boêmios da antiga Felipéia de Nossa Senhora das Neves. O tribuno recebeu antes a Indesejada das Gentes e deixou o palco para o rival.
Agora devem ter transferido sua rivalidade para o céu, onde certamente estão a se encontrar com Augusto dos Anjos, outro paraibano poeta, ou Alcides Carneiro, o orador que, de certa forma, se tornou o símbolo de um Estado onde o verbo candente é tido como diferencial importante de prestígio e consideração. Colega de Raimundo Asfora, que encantou seus pares do Brasil inteiro com improvisos nas passagens pela Câmara dos Deputados, Mocidade – que ganhara o apelido por conta do mote a que recorria invariavelmente para começar seus discursos contra ou a favor, “Mocidade da minha terra” – deve estar à vontade bebericando um conhaque celestial. E o boêmio Caixa, que, apesar de sempre ter vivido à beira da indigência e ser apontado como um doido varrido nas ruas de sua cidade, conseguiu publicar uma vasta e consistente obra poética, também não deve estar incomodado ao lado de Jansen Filho e outros conterrâneos e colegas de versejar.
Quem sabe, venham agora os dois formar uma inusitada parceria, admitindo como de ambos a constatação empírica de que a condição essencial que difere os doidos da Paraíba dos de outras terras é o excesso, jamais a falta, de juízo. Afinal, só no Estado natal de ambos, sua condição clínica é definida rotineiramente com a expressão jocosa “doido mental”.. E é nesta condição de poeta e doido mental, mas sem juízo suficiente para sê-lo na Paraíba natal, que este escriba presta esta homenagem póstuma a dois conterrâneos que encharcaram a palavra de poesia, cachaça e graça.
© Sras & Srs
POEMA DE CAIXA D’ÁGUA