Site oficial do escritor e jornalista José Nêumanne Pinto

O Silêncio do Delator (romance/fragmento)

(Capítulo 6, p 129-150)

6 – Ela Me Pertence

O CAIS DO PORTO

Quando a Zuca e João Miguel se encontraram, ninguém poderia apostar que ali estaria surgindo um sólido caso de amor. Dir-se-ia que foi uma conjunção de astros o que os aproximou e de uma forma tão indissolúvel que aos dois parecia que, sim, viviam um matrimônio regular entre si e não com seus parceiros fixos.

Seria uma ingenuidade classificar João Miguel de um marido fiel. Ao contrário. Ele vivia freqüentemente aventuras extraconjugais, mas elas tinham duas características básicas: 1 – as parceiras eram egressas de seu ambiente doméstico ou profissional; e 2 – ele tinha um cuidado obsessivo de evitar que Penélope fosse informada de seus casos.

Maledicentes diziam que João Miguel era covarde e acomodado até nisso: suas parceiras, por mais que se sentisse atraído por elas, por mais que a hipótese de vir um dia a se afastar delas fosse concreta, tinham a impressão de que foram elas que o escolheram e ele apenas as acolhera, sob inúmeras condições. Os horários dos encontros eram cuidadosamente marcados e eles só ocorriam se não interrompessem a rotina acadêmica e pessoal do protagonista.

Compungido, constrangido, usando o tom a que um médico recorreria para noticiar a um paciente que este seria portador de uma doença terminal, ele invariavelmente avisava, antes de se envolver em qualquer parceria afetiva ou meramente sexual:

– Eu sou casado, muito bem casado e não pretendo, de forma nenhuma, pôr fim à relação estável que tenho, nem sequer sair de casa.

Com o tempo, as parceiras se acostumavam com os horários draconianos, o constrangimento de não se cumprimentarem quando o encontravam com algum familiar e às vezes até com alguns conhecidos em comum.

A VOZ DO MORTO

Alto lá, sujeitinho. O retrato que você está traçando do morto aqui não é nada honroso. Chega a ser execrável. O perfeito cafajeste. Explorador de mocinhas incautas. Adúltero contumaz. E, sobretudo, hipócrita. Você já se perguntou por que as tais parceiras avulsas descritas na seção acima aceitavam uma relação que lhes era assim tão desfavorável? Afinal, este morto não era propriamente um galã que despertasse o desejo feminino pelos belos olhos, como seu amigo Marlon. Nem seu desempenho sexual era de qualidade tal que lhe permitisse gabar-se, como Charlie Chaplin, que se chamava nas rodas de amigos, aos quais contava vantagens, como qualquer peru vaidoso, de “máquina sexual”. De fato, sua vítima favorita era um sujeito meio ensimesmado e a maior parte das vezes silencioso na cama. E, ao contrário do que ficou parecendo na abertura infeliz deste capítulo, não era de ficar relatando suas aventuras de alcova aos amigos, mesmo aos mais íntimos, nem fazia propaganda de seus feitos sexuais para aumentar a relação das parceiras fora do casamento. Casamento, aliás, que sempre foi, do princípio ao fim, altamente satisfatório do ponto de vista do desempenho entre lençóis e fronhas. Em defesa do morto, que não pode erguer-se do caixão e protestar em altos brados ou lhe atracar os colarinhos para tomar satisfação ou ainda levá-lo, como, aliás, deveria, às barras dos tribunais, talvez seja o caso de explicar que este livro, que nunca se pretendeu um elogio fúnebre, pode tornar-se definitivamente um auto-de-fé, caso o morto não saia de seu silêncio forçado para delatar o delator.

O CAIS DO PORTO

Talvez fosse um exagero definir como um mar de rosas a vida conjugal de Elsa, a Zuca, no dia em que ela se encontrou por acaso pela primeira vez com o protagonista desta ficção. O relacionamento tinha seus altos e baixos, como sói ocorrer com casamentos longevos, mas também não seria exato dizer que se tratava de um inferno. Nas aparências, que aliás nem sempre são enganosas, tudo fluía bem naquela casa.

José Eugênio a havia conhecido num momento difícil da vida dele. O primeiro casamento desabava sob o peso de incompatibilidades inconciliáveis de temperamento. Raquel, a primeira mulher, pedagoga de renome e reconhecido sucesso profissional, não era propriamente fanática por manter as aparências, o que José Eugênio considerava algo lamentável, quase até desprezível. Ao abrir a gaveta das meias e encontrá-las amontoadas, os pares descasados, misturadas com lenços e algumas cuecas, costumava se perguntar por que cargas d’água se havia casado com aquela mulher tão desleixada. Ela nem era propriamente um tipo de beleza de quem ele pudesse se vangloriar com os amigos no happy hour habitual das sextas-feiras. Eram amigos de infância, se conheciam desde um tempo que depois de um convívio mais prolongado nenhum dos dois conseguia mais se lembrar. Já eram amigos os pais. Costumavam se revezar na ida à escola. Os irmãos de ambas as famílias cresceram juntos. O namoro e o noivado de Raquel e José Eugênio pareciam fazer parte de uma rotina previamente programada.

Adolescente, Raquel já se destacava entre as amigas como a que menos se preocupava com a aparência, que não chamava a atenção dos rapazes. Deixava o cabelo crescer a ponto de ganhar o apelido, mais jocoso que carinhoso, de Rapunzel. Nem sempre sua blusa escolar estava bem passada. A maioria das vezes, ao contrário, parecia que ela a havia tirado de dentro de uma garrafa para vestir. Nessa época, o aspecto desleixado da namorada não perturbava José Eugênio, embora ele fosse o mais alinhado da turma. E também o mais bonito. E o partido (era essa a expressão que se usava então) mais disputado no colégio e nas rodas sociais que ambas as famílias freqüentavam. Seu sapato estava sempre impecavelmente lustrado. A roupa, bem passada. A pele, perfumada. Apreciava, é claro, o sucesso que fazia entre os brotos. Assim é que se chamavam as garotas naqueles anos. Fazia praça disso nos torneios esportivos colegiais, nos quais não chegava a ser um astro, porque não se destacava pela habilidade atlética, mas chamava a atenção pelo porte garboso.

Apesar das enormes diferenças de temperamento, o casamento foi comemorado como uma espécie de conquista mútua das famílias do noivo e da noiva. Os pais dele, proprietários de uma indústria de porte médio, fizeram questão de lhes financiar a lua-de-mel em Paris. Os pais dela, do mesmo nível social, cederam um apartamento para que começassem a vida sem pagar aluguel. Ela acabara de receber o diploma de Direito numa Faculdade tida como a melhor. Ela começava a bem-sucedida, não tanto financeiramente, mas na certa social, carreira de pedagoga.

Quando surgiram os primeiros sinais de que o casamento ruiria, Raquel mudou o comportamento. Passou a caprichar na maquiagem, mudou sutilmente o guarda-roupa, comprou camisolas mais sensuais para estimular a libido pouco entusiástica do amigo de infância que virou marido. Não era uma vida sexual das mais movimentadas, mas eles, que tinham um filho, terminaram gerando o segundo. Para ela, uma esperança de mantê-lo por perto. Que tivesse suas aventuras, porque os homens não são de ferro, graças a Deus, mas voltasse sempre para casa. Para ele, a prova definitiva de que aquele barco naufragaria inevitavelmente. Não haveria como mantê-lo à tona. O terceiro livro de Raquel foi lançado quando lhe nasceu a filha. José Eugênio, então, já havia saído de casa.

A VOZ DO MORTO

Hilda Hilst lamentava muito ter passado a vida inteira paparicando personagens. Que pena que este cadáver, esta vida imobilizada não tivesse surgido de um sopro dela. No entanto, o escribazinho filho da puta que o criou parece realmente fadado a repetir Ariano Suassuna, aquele escritor tirano que adorava torturar e até assassinar suas criaturas, desde que começou, ainda na infância, a engendrá-las, para horror dos parentes mais velhos. Imagine, caro leitor, o sofrimento de um ser, não se importa se real ou fictício, se gente ou figura de ficção, que por dever de ofício seja obrigado a tomar conhecimento das glórias e misérias do rival, daquele que sempre foi um obstáculo entre a dor e o prazer, entre a tristeza e a alegria, entre a angústia e a felicidade. É o que resta ao protagonista deste velório que virou romance. Ainda bem que o canalha não poderá continuar empulhando o leitor com excesso de particularidades sobre um tema paralelo de sua narrativa central e, quando sair desse sacrifício que impõe ao próprio protagonista, este filho da puta, este autor desnaturado vai ter de dedicar mais tempo, mais espaço à bela Zuca. Esta é a única razão pela qual este morto terá a lamentar, em definitivo, seu precoce desaparecimento.

O CAIS DO PORTO

Elsa era, então, uma adolescente pouco incomum, daquelas de rosto sardento e com muita acne.
A VOZ DO MORTO

Deo gratias! Até que enfim, algo agradável nesta narrativa. Prossiga, canalha!
O CAIS DO PORTO

Filha única, mas nada mimada, gostava de conviver com as amigas de sua idade, as colegas de classe, as filhas da amiga da avó, em cuja casa passava a maior parte do tempo, mais mesmo que no quarto amplo e confortável que tinha na casa paterna. Preferia o abrigo avoengo exatamente porque tinha a companhia das primas da mesma idade, um bando barulhento, alegre e alvoroçado que se reunia praticamente todos os dias para fazer verdadeiras expedições pelos baús repletos de roupas antigas muito limpas cheirando a naftalina, de misteriosos documentos e fotografias cuja antigüidade era denunciada pela tonalidade sépia do flagrante ou pelos estilos de cabelos e vestimentas usados pelos modelos. As fotografias mostravam uma gente estranha, embora familiar. A Zuca ficava horas com as primas tentando identificar quem era quem naqueles retratos. A própria avó. As tias. As bochechas coradas e o olhar brilhante e generoso do avô ilustre de quem todas elas só se lembravam do cheiro acre e forte do charuto que ele fumava com os amigos reunidos na biblioteca…

A VOZ DO MORTO

Ah, a biblioteca! Lombadas de livros alinhados nas estantes. Lombadas escuras, sombrias, misteriosas. Ah, o repositório das almas penadas, das vidas não vividas. Abrir as portas de madeira e vidro que escondiam aquele tesouro. Lembra-se do Tesouro da juventude? Você gozou na infância e na juventude aquele prazer inenarrável de folhear a coleção de capa dura, bebendo cada informação, se assombrando com cada aventura? Leu Os 12 trabalhos de Hércules, a adaptação do clássico grego por Monteiro Lobato, com caprichosas ilustrações, imagens que encantavam e puxavam pela imaginação antes do cinematógrafo?

O CAIS DO PORTO

Depois que o avô morreu, a biblioteca dele passou a ser o esconderijo favorito de Zuquinha e das primas. Elas costumavam abrir as portas de vidro que protegiam os volumes mais raros da coleção e os levavam cuidadosamente, como se fosse o sacrário empunhado pelo padre na procissão de Corpus Christi, sob o pálio, nas procissões. Em seguida, se sentavam sobre o tapete, com as pernas abertas e abriam o volume entre elas. Folheavam-no religiosamente contemplando a mancha negra das letras sobre o papel sem prestar atenção no que elas diziam. Era uma espécie de ritual de iniciação.

A VOZ DO MORTO

Perdão, leitor! Este cadáver, imobilizado pela paralisação do coração e pelo não funcionamento dos órgãos, todos eles, permite-se, pela primeira vez neste livro, ao prazer infinito de acompanhar, embora em breves cenas, a trajetória de um ser humano que significou uma graça, uma bênção na parte final de sua vida, aquilo que ele costumava chamar de um segundo tempo, quando, na verdade, não passava de uma prorrogação. Trata-se de um desvio da história toda da Patota dos sovacões solidários do recruta Pepé. Trata-se de algo certamente menos excitante e aparentemente até desconexo em relação ao que vinha sendo narrado. Mas é a pausa necessária para evitar que você desfaleça no ritmo vertiginoso dessa narrativa. E um momento de paz de cemitérios para um morto cuja exposição pública da própria vida e dos personagens dela não lhe tem sido até aqui permitido entre o falecimento propriamente dito e o sepultamento por vir.

O CAIS DO PORTO

No silêncio escuro, atro e úmido, no silêncio religioso e quase tumular daquela biblioteca, a menina Elsa sentia que tinha tudo de que precisava: paz e aventura, repouso e aventura, harmonia e confusão. Era como se a vida se resumisse àqueles momentos. Na adolescência, abandonou aquele refúgio, como um animal deixa a caverna para ir à caça. Foi à luta e deixou a biblioteca para trás, com os baús de roupas, fotos e papéis velhos e com as bonecas desengonçadas que mais amava. O engraçado é que quando encontrou João Miguel, por acaso, diante de um quadro numa exposição do pintor pop americano Roy Lichtenstein, ela estava em pleno revival dessas lembranças. A avó já morta, a casa habitada apenas por uma tia velha caduca. E ela se refugiava na biblioteca, como se nela encontrasse a calma que a vida adulta lhe tomara na infância.

A VOZ DO MORTO

Não dê um salto tão grande. Até chegar aí vai ser preciso revisitar a vida do traste, do indesejável, do empecilho, do muro que se ergueu para impedir que o futuro me sorrisse. De fato, não há como pular assim. É preciso ir passo a passo para o leitor não se perder no labirinto, ainda que os corredores sejam curvos e pareçam não ter fim. Não os labirintos de Borges, não a amarelinha jogada por Cortazar. Como dirá Bráulio Tavares, uma narrativa ao estilo “tire o fôlego do leitor”, à Jack Kerouac. Um romance beatnik.

O CAIS DO PORTO

Bonita, fresca, juvenil, Elsa, a adolescente de sardas e espinhas, com os livros na mão cruzava a calçada da avó quando foi pilhada pelo olhar inquieto do rapaz mais velho, bem vestido, que por ela passava.

– Foi amor à primeira vista – ele garantiu, a vida inteira, apesar dos percalços, dos mútuos enganos, das mentiras úteis.

– Ele estava saindo de casa. Eu fui a primeira que cruzei no caminho dele. Não resisti. Como ia resistir? Um homem bonito daqueles…

A VOZ DO MORTO

Também não precisa tripudiar. Está certo que o obstáculo para existir tem de ser construído. Mas é necessário fazer um pobre morto ser humilhado além da conta?

O CAIS DO PORTO

José Eugênio, o advogado bem-sucedido das multinacionais, a fonte permanente dos telejornais para assuntos técnicos de interesse geral, o manequim talhado para os ternos da moda, viu o futuro desenhado nos olhos gaiatos de Zuca. Previu os prazeres que encontraria em suas ancas. Percebeu a generosidade marota do sorriso dela. Sorriu-lhe com um ar que significava, simultaneamente, ambição, segurança e desejo. Elsa lhe sorriu de volta como se aquilo fizesse parte de um folguedo juvenil, como sorriria para um colega de classe, de sua idade, despertados os dois por um súbito desejo inconfessável, indescritível. José Eugênio era mais velho. E daí? O homem bonito que cruzou seu caminho era apenas um homem. E não lhe passou pela cabeça que ele poderia ser seu. Mas foi.

A VOZ DO MORTO

E como dói sabê-lo!


O CAIS DO PORTO

Ele anotou o endereço, guardou bem a hora, voltou ao local. Abordou a menina, levou-a ao cinema, namoraram. Foi um namoro tumultuado: os pais até que não se opunham tanto, mas a avó não suportava a hipótese de ver a bela e querida neta se envolvendo com um homem casado. Tentou impedir o inevitável. Não conseguiu, é claro.

ATRÁS DO MURO

Ah, os seios de Zuca! Seios fartos, generosos. auréolas infantis que se insinuam quase sem diferença de cor da pele clara…
A VOZ DO MORTO

Não, pelo amor de Deus! Isso não. É torturante demais que logo ela protagonize uma cena se sexo com ele. Lembre-se, seu autor de merda, da afirmação de Antônio Lobo Antunes, de que não há possibilidade de se escrever uma cena de sexo que não seja vulgar. O autor de Os cus de Judas, que era mui amigo de Jorge Amado, por exemplo, não apreciava sequer o decantado talento do autor baiano para narrar cenas sexuais. E justificava a completa abstinência de sexo em seus romances pelo fato de só ter lido, durante toda a vida, duas descrições bem-feitas de intercursos: uma, o de dois idosos em O amor nos tempos do cólera, de Gabriel García Márquez. Outra, num best-sellerque nem valeria a pena lembrar. Lembre-se disso pelo menos para poupar seu protagonista do ciúme inconfessável, mas incontido, ao ler a descrição de uma cena de sexo dela com o homem que o impediu de ser feliz com ela. Arre!

ATRÁS DO MURO

Os seios de Elsa eram o que os romancistas românticos chamariam de opulentos. Fartos. Elsa nua à sua frente lembrava aquelas estátuas de deusas greco-romanas que simbolizavam a beleza pelos padrões da Antigüidade. Nada nela era acanhado. Tudo saltava à vista. A pele de alabastro. O volume dos seios. As ancas do desenho do bojo de um violão. O tufo de pêlos pubianos também se desenhava explícito sem aqueles cuidados que as mocinhas da geração dela tomavam para que não escapassem da calcinha do biquíni. Os grandes lábios se mostravam na vulva como se estivessem mandando um beijo estalado. Sólidas. Essa era a melhor definição para as coxas da Zuca. Sólidas, sim, nada discretas, mas certamente harmoniosas com o conjunto do corpo. O corpo daquela fêmea o enchia de um desejo que ele não conseguia controlar. Gostava de lhe acariciar as ancas, porque sabia, embora ela não confessasse, e ele nunca lhe houvesse perguntado, que aquela área de sua pele branca era muito erógena. Ele nunca havia antes conhecido uma mulher que reagisse com tanto prazer ao toque nas ancas. Mesmo sobre o tecido. Mas agora ele lhe tocava as ancas nuas. Os dois estavam nus na cama. E sua mão saiu das ancas para envolver as duas nádegas. E acariciá-las. Mais que isso: apertá-las, beliscá-las. Ela gemeu. Ele não sabia se de prazer, dor ou medo. Ou as três sensações ao mesmo tempo. O feremônio invadia as narinas do casal, acelerando o senso de urgência dos dois. Quando ele a penetrou, ela estava inteiramente lubrificada.

– Lindo! – ela disse. E, da forma como a pronunciou, não havia dúvida: a palavra não continha dor nem medo. Ela foi emitida embalada num invólucro em que só cabiam prazer e desejo.

Ele correspondeu ao desejo com estocadas lentas e profundas.

– Você está indo bem fundo. Muito dentro de mim.

A VOZ DO MORTO

Não, pelo amor de Deus, não ceda assim à vulgaridade. Seja elegante. Senhor narrador, atenda a meu póstumo desejo: não reproduza o que ela disse. Não. Recorra àquelas metáforas do cinema: a onda chegando à praia, o rio fluindo. Se for o caso, apele para as metáforas comuns: carrilhões de sinos, botões se abrindo em flor. Só não reproduza o que os casais costumam dizer na linguagem tatibitate do amor nessa hora profana, nessa hora secreta, neste instante sagrado. Profana sagração de todas as primaveras, invernos e verões.
ATRÁS DO MURO

Minutos depois, o desejo saciado, os dois conversavam sobre a bênção, a graça infinita que era terem chegado juntos ao orgasmo. Num uníssono de gemidos, gritos e sussurros, depois que suas estocadas lentas e fundas se tornavam mais rápidas, mas nem por isso mais superficiais. Ela se sentira invadir, primeiro por uma euforia infantil e, depois, por uma paz aguda e fina, que talvez só se encontrasse no fundo dos lagos mais profundos, que talvez só se encontrasse na morte. Numa pequena morte. Em todas as pequenas mortes que, somadas ao longo dos anos, produzissem o orgasmo definitivo, que é o da morte que não acaba, a morte, que, ao contrário da vida, não tem fim, é inifinita.

A VOZ DO MORTO

Talvez seja preciso tornar público o grato reconhecimento deste cadáver pela imensa consideração que, ao contrário do que vinha acontecendo até aqui neste texto, o autor teve de narrar a cena sexual que acaba de ser narrada. Não que ela tenha sido um primor de bom gosto. Certamente, ela está muito distante da discrição alcançada por García Márquez no intercurso de idosos em O amor nos tempos do cólera. Dificilmente ela terá atingido o nível literário da cena em que, segundo Lobo Antunes, Jackie Collins se superou num best-seller que não teria como chamar a atenção se não fosse a tal cena de sexo entre seus personagens de romance barato. Seria o cúmulo da pretensão imaginar que o autor de Os cus de Judas incluísse o que acima acaba de ser narrado entre as exceções à lei dele, segundo a qual todas as cenas de amor carnal na literatura não passam de subliteratura vulgar, com intuitos popularescos, apostando no ponto abaixo da cintura que todo leitor tem no cérebro. Mais absurdo que isso seria o autor imaginar que Lobo Antunes pudesse enfim, ao se deparar com o terceiro exemplo de trepada bem narrada, abrir mão de sua decisão inamovível de jamais reproduzir uma num de seus magníficos textos de ficção. Mas se isso tudo é verdade e nem mesmo uma tentativa bajulatória de evitar que o autor continue agredindo este protagonista imóvel e indefeso poderá negá-lo, é preciso destacar a extrema gentileza, o fino cavalheirismo, com que o autor destas mal traçadas linhas deixou de definir o protagonista masculino da citada cena. Terá sido o advogado de empresas José Eugênio, em plena vigência de seu matrimônio com Elsa? Ou não, ou terá sido João Miguel, que agora está morto e não tem mais como usufruir das magnificências do amor carnal da mulher com a qual ele se dispunha a partilhar seu futuro, futuro que acabou com a morte e se confunde agora com o vazio do infinito que a grande morte, soma de todas as pequenas, traz? O leitor mais cínico dirá que havia um entusiasmo na cena que ela não poderia reproduzir algo que tivesse ocorrido sobre um legítimo tálamo conjugal. Contra tal cinismo convém argumentar que era Elsa quase uma menina quando juntou sua sorte à de José Eugênio, recém-separado de Raquel. E nos primeiros anos de matrimônio, a vida sexual costuma ser mais que satisfatória, entusiástica. Como não há uma definição precisa sobre qual foi o período do tempo em que se deu o abraço dos dois corpos nus e aquele orgasmo que, certamente, se repetiria, uma vez que não é possível que tanto ardor narrado se tenha resumido a apenas uma tentativa com êxito, não é possível definir, de forma isenta, se o ponto de vista masculino da cena narrada foi de José Eugênio, João Miguel ou ainda Abelardo, o respeitado neurocirurgião com quem a Zuca tivera um rápido affair de três meses apenas.

O CAIS DO PORTO

Elsa precisava saber se ela ainda era uma mulher desejável. Os dois filhos ainda eram pequenos, precisavam de sua atenção quase absoluta, quando ela se viu forçada a dividi-la com uma descoberta que a atingira como uma avalanche que desabara sobre ela. José Eugênio não a desejava mais como antes. O ímpeto diminuíra muito. As colegas médicas, reunidas no consultório do hospital, já lhe haviam informado que era assim mesmo. Com o tempo, com a criação dos filhos, com o convívio permanente, repetitivo e rotineiro, o desinteresse sexual diminuía. Mas o de José Eugênio diminuiu rápido demais e se tornou quase inexistente. Talvez pudesse ser o consumo exagerado de cocaína. O marido era cada vez mais dependente. Os desafios profissionais seriam um bom pretexto: por mais próspero e bem-sucedido que ele fosse, mais ele se sentia desafiado a enriquecer ainda mais.

Até que um dia algo mais perigoso chegou a seu conhecimento: José Eugênio tinha uma amante, aquele tipo de mulher que Jorge Amado chamava de “teúda e manteúda” nos romances do ciclo do cacau.

– Eu só não entendo é por que ele se casou comigo. Afinal, ela já era amante dele no primeiro casamento. Raquel sabia – contou Elsa à maior amiga, desde a infância, uma prima.

O primeiro impulso foi sair de casa, se instalar num flat com o casal de filhos ainda pequenos, se desdobrando entre o novo lar e o setor de oncologia do hospital, que ela dirigia. A forte decisão durou pouco. Flores, jóias e presentes com que ele a assediou a levaram de volta para casa. Nem se importou de ter de expulsar pessoalmente a amante, não mais aquela, mas a décima, ou décima quinta depois dela. José Eugênio, tão avaro em lhe dar prazeres carnais antes da sepração, foi sempre um mulherengo inveterado e, ao que parece, o consumo excessivo de cocaína havia varrido de sua memória e de suas preocupações quaisquer resquícios de escrúpulos.

Quando voltaram a coabitar, o sexo se tornou uma obrigação semanal esporádica dos sábados à tarde. Ela, ainda uma mulher desejável. Seu colega mais brilhante, seu único confidente do sexo masculino passou a ser o cais em que jogou seu massame. Foi um caso rápido, que sucumbiu à vergonha de ela se encontrar com a mulher do amante, também colega de escola, e de este ser flagrado pela cônjuge. Foi um caso rápido, porque ela estava disposta a tudo para ficar com ele, mas Abelardo morria de medo de um dia serem flagrados e a mulher, Heloísa, ficar sabendo. Mas o caso só foi rápido porque ela lhe deu a chance de pular fora sem remorso e ele não a desperdiçou. Foi um caso rápido porque ela nem sabia, pensava que não, mas estava apaixonada por ele (ou começava a se descobrir apaixonada por si mesmo) e ele só queria uma aventura e tinha certeza de que ela, também, só queria uma aventura. Mas passou a se preocupar quando começou a sentir indícios que, bem, não era assim. Talvez ela tivesse outras expectativas em relação aos dois.

A VOZ DO MORTO

Sim. É preciso reconhecer que esta história precisava dar uma respirada. Essa história de revolução política e sexo, drogas e rock and roll podia cansar o leitor. Então, um pouco de romance daria o repouso da carga pesada e ainda poderia ligar novamente o interruptor do interesse do leitor.

A VEZ DO LOUCO

E Dylan girando na vitrola sem parar: “ela tem tudo de que precisa”

A VOZ DO MORTO

De fato, nada lhe falta naquele casamento. Um marido bem-sucedido profissionalmente, próspero economicamente, respeitado socialmente. Dois filhos saudáveis, belos, esportistas, limpos, caretas. Um lar burguês sólido, diria, meio com asco, meio com inveja, um esquerdista de bar dos anos 60. Ela tinha tudo de que precisava. Teria amor? Afinal, a canção de Lennon e Mc Cartney garantia que tudo que alguém pode precisar é amor. De certa forma, uma versão nova daquele versículo da epístola de São Paulo aos coríntios, não é? Ih, desculpe, que escorregão: esse lugar comum é de doer, não é? Melhor prosseguir, hein?

A VEZ DO LOUCO

E Dylan girando na vitrola sem parar: “ela é uma artista, ela não olha pra trás”.

A VOZ DO MORTO

Sim. É isso mesmo. Se fosse possível definir a alma humana, que é invariavelmente tão complexa e variada, que é sempre tão surpreendente, numa característica, numa frase, talvez esse verso de Dylan traçasse o melhor retrato dessa mulher: a Zuca não olha para trás, se interessa apenas pelo presente. Para ela, o que passou só importa na medida em que o dia atual, a vida que passa, é uma conquista do que antes ocorreu. Zuca não coleciona ocorrências, mas acontecimentos. Ao contrário de Penélope, a agora viúva (e Elsa não é), ela não se esconde no passado com medo do futuro. Mas procura ficar permanentemente atualizada. Também não lê horóscopos, não consulta tarô, não crê em videntes. Pois acha que o futuro é e será sempre uma surpresa. E ela não quer perder a graça do inesperado, do inusitado, do que está por vir.

A VEZ DO LOUCO

E Dylan girando na vitrola sem parar: “Ela tem tudo de que precisa, ela é uma artista, ela não olha para trás. Ela pode apagar o escuro da noite e pintar o dia de preto.”

A VOZ DO MORTO

Pintar o dia de preto, que belo verso do sr. Zimmerman, hein? No entanto, injusto na definição de Elsa. Elsa ilumina a noite, sim, porque é um ser eminentemente solar. Funciona assim como uma espécie de lanterna a iluminar os recantos escuros e soturnos dos sótãos recônditos das pessoas que convivem com ela: a avó, os pais, as primas, o marido, os filhos, os amantes. Mesmo às vezes sem perceber, essas pessoas tiveram baús abertos, teias de aranha espanadas e cantos escuros iluminados pela presença de seu sorriso discreto, por um gesto quase imperceptível de carinho, pela alusão a um livro lido, um filme visto, uma canção ouvida.

A VEZ DO LOUCO

E Dylan girando na vitrola sem parar: “ela nunca tropeça, ela não tem lugar para cair. Ela nunca tropeça, ela não tem lugar para cair”.

A VOZ DO MORTO

É claro que ela tropeça. Mas, de fato, a sensação de quem convive com ela é de que não há na Terra lugar para acolher seu baque. Como reza a letra de She belongs to me:She’s nobody’s child, the law cant’t touch her at all / “de ninguém ela é criança: a lei não a alcança”. Não é engraçado?

A VEZ DO LOUCO

E Dylan girando na vitrola sem parar: “Ela usa um anel egípcio que brilha quando ela fala. Ela usa um anel egípcio que brilha quando ela fala. Ela é uma colecionadora hipnótica, você é uma Antigüidade em movimento.”

A VOZ DO MORTO

Bingo! Gol! O poeta Dylan, que manda comprar um trompete para ela no Dia das Bruxas e uma bateria no Natal (não é engraçado?), cumpre, então, o destino dos poetas, a antena da raça, segundo Ezra Pound. Uma vez, você se deve lembrar muito bem, o poeta José Paulo Paes definiu poesia, numa conversa particular com você, como sendo a capacidade que um ser humano tem de, ao expressar um sentimento próprio, vivido ou não, traduzir de uma forma incomparável o sentimento que outra pessoa, ou seja o leitor, tem. Captar os sinais ou antecipar-se a eles – eis o destino da antena do gênero.

O CAIS DO PORTO

A primeira vez que se viram foi numa exposição do artista americano Roy Lichtenstein.

A VOZ DO MORTO

Não lhe parece estranho que, como o disco de vinil, a revolução socialista, os hippies, o amor, o sorriso e a flor e outras modas de sua geração, também a arte pop tenha desaparecido? Não lhe parece instigante que Andy Warhol tenha virado peça de museu – não importa se o retrato de Marilyn Monroe ou o falo de um amante anônimo (terá Lou Reed sido realmente amante de Warhol?). Na verdade, no século 21 a maior contribuição de Warhol não parece ser das artes plásticas, mas da sociologia. As enquetes dos telejornais e os reality shows tornam cada vez mais próxima de se realizar a profecia dele de que um dia todos serão famosos pelo menos por quinze minutos. Ou teriam sido cinco?

O CAIS DO PORTO

Elsa não sabia se tinha feito bem quando disse a Abelardo que o melhor a fazer, se tinham de continuar trabalhando juntos, e juntos com Heloísa, também médica, era deixarem de se encontrar furtivamente, acabar o caso ali mesmo. E ela não sabia se tinha feito bem porque, algum tempo depois, na cama com João Miguel, confessou que ela daria tudo na vida para ouvir dele:

– Não, meu bem. O que é isso? Vamos continuar. Tolice.

Qual o quê! Ele aceitou a proposta imediatamente, como faria qualquer macho que já tivesse provado o gosto secreto da fêmea ao lado e fosse mimoseado com a oportunosa ensancha de pular fora de um relacionamento que não nascera mesmo para ser sólido e perene, pelo menos do ponto de vista dele.

E se foi.

Elsa ficou inconsolável. Mas como poderia ficar chorando pelos cantos com os filhos andando pela casa, com o marido chegando do trabalho? Por mais desligado que ele fosse – e ele era -, um dia perceberia. Conseguiu o pretexto de passar o tempo do luto fora e não o perdeu. Viajou para fora do país para fazer uma palestra num congresso sobre novas técnicas de combate ao câncer. Chorou a viagem inteira, silenciosamente, envergonhada com o vexame. Nada a constrangia mais do que o pranto acompanhado. Sentia-se nua no avião lotado de desconhecidos.

João Miguel estava na mesma cidade e na mesma ocasião também para atender a compromisso profissional.

A VOZ DO MORTO

Na verdade, esses congressos acadêmicos podem ser definidos com mais exatidão como oportunidades de turismo que propriamente como compromissos profissionais. Hahaha!

O CAIS DO PORTO

Ela estava diante do quadro Step-on-can with leg, de Roy Lichtenstein. Um quadro em dois movimentos como uma seqüência de cinema ou uma tira de quadrinhos de jornal. Primeiro movimento: um pé feminino, um sapato com lacinho sobre o peito do pé, um balde florido. Segundo movimento: abre-se a tampa do balde.

– Chutando o balde – traduziu ele, com a nítida intenção de puxar conversa, mas fingindo cochichar para si mesmo.

Abriu-se um sorriso no rosto de Elsa. Um sorriso tímido, mas luminoso. Sorriam mais os olhos que os lábios. Lábios pintados discretamente, ele observou. Bela boca. Queixo bem desenhado. Olhos brilhantes, promissores., Canalha, ele pensou, num impulso autocrítico.

A VOZ DO MORTO

Na verdade, Lichtenstein pode ser a exceção dos artistas pop que sobreviverão nos próximos 100, 200 anos. Qualidade, precisão, uso pleno e econômico dos recursos plásticos.

O CAIS DO PORTO

Seu primeiro impulso foi não dar o segundo passo, depois do comentário. Na verdade, não era sua intenção conhecer ninguém, conversar com ninguém, encontrar ninguém. Ela fora à exposição para se esconder do marido, dos filhos, das primas, dos amigos, de todos. Ela só queria estar só por um tempo.

Mas a voz lhe soou cálida, familiar. Não resistiu a responder. Conversaram como se fossem amigos de infância. Uma sensação que ele, que nunca antes havia abordado uma desconhecida daquele jeito, e ela, que também era muito reservada, jamais tinham experimentado.

A VOZ DO MORTO

Foi como abrir a porta que dá para a varanda de sua casa e encontrar o mar no lugar do jardim. Ela não percebeu isso. Ela nunca percebeu isso. Elsa tem um tal senso de proporção, um espírito tão pragmático que ela nunca foi capaz de perceber completamente qual o impulso que moviam as pessoas de seu convívio em sua direção. Não é bem modéstia. É uma espécie de hiper-realismo nada narcísico.

A VEZ DO LOUCO

E Dylan girando na vitrola sem parar: “Acene pra ela no domingo e a cumprimente quando seu aniversário chegar”.
A VOZ DO MORTO

Elsa era uma pessoa sempre surpreendente. Encontrá-la mais uma vez era como se fosse encontrá-la pela primeira vez. Sua chegada provocava uma sensação de frescor. Como abrir uma porta e entrar uma lufada de ar. Como abrir uma janela e tropeçar num raio de sol. Nesse ponto de vista, todo dia era aniversário dela. Pois ela era a metáfora carnal da vida. E a vida faz aniversário todo dia. Dizer que ela me pertence, como Dylan no título da canção que a retrata, mais que isso a flagra, era um excesso de pretensão, um excesso de ambição. Elsa não pertence a ninguém, nem a si mesma, nem aos filhos ou ao lar, que quis abandonar, mas nunca mais quis, quer ou vai querer abandonar. Como a vida, de que é a melhor metáfora disponível, Elsa não tem dono, não tem hora nem lugar. Elsa nunca é nunca. Elsa é sempre mais.

O CAIS DO PORTO

Os dois riram muito diante do quadro The engagement ring. Nele o pintor registra um quadrinho da heroína Winnie Winkle, de Branner, no qual ela diz: “Não… não é um anel de noivado. É?”

– Cuidado, mocinha: saiba que a diferença entre amor e humor é apenas uma sílaba.

– Ah, é?

– Sabia não?

A VOZ DO MORTO

Não. Infelizmente não era. Mas esta história terá de ser contada depois. Bem depois. Capítulos à frente.

O CAIS DO PORTO

Agora é hora de registrar que, a milhares de quilômetros longe dali, Penélope contava a uma classe de alunos indiferentes (e certamente ignorantes) como os gregos resistiram no desfiladeiro de Termópilas.

Enquanto longe dali, anoitecia.

Ou melhor:

Anoitecemos

como Penélope

© O silêncio do delator. São Paulo: A Girafa Editora, 2005, p.129-150

Leia a coletânea do Estação: O SILÊNCIO DO DELATOR, FORTUNA CRÍTICA


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