Nêumanne entrevista Isabel Lustosa – 2019 (11ª)
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Vimos a luz ao sair da caverna
e a ela não voltaremos,
prevê professora
Para historiadora Isabel Lustosa, coisas do Brasil, que são o cerne da nossa identidade, incluídos os valores de humanidade, estão sendo destruídas a golpes de tuítes
Pesquisadora titular da Casa de Rui Barbosa, Isabel Lustosa confessa estar assustada com a onda obscurantista que assola o Brasil hoje. “Gente dizendo que a terra é plana, gente querendo negar as teorias de Darwin, gente negando a eficácia das vacinas, gente querendo pôr Deus em tudo, Ele que, aliás, não precisa disso, porque já está em toda parte. Tendo a ver essa onda como um refluxo que mais adiante será superado”, vaticina. Na edição desta semana da série Nêumanne Entrevista, a doutora em Ciência Política constata também que a destruição da memória de mais de 200 anos de História do Brasil no incêndio do Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista, no Rio, “resulta da ignorância e do desprezo pelas universidades, pelos intelectuais e artistas, pelo conhecimento cultural e científico, que dão hoje o tom da sociedade brasileira”. Segundo a autora do livro Insultos Impressos , demonstrando o papel fundamental da imprensa em nossa luta pela independência, “dentro dessa visão obscurantista, as coisas do Brasil, aquelas que constituem o cerne da nossa identidade, incluídos nossos valores de humanidade, de povo alegre, conciliador e acolhedor, vão sendo destruídas a golpes de tuítes”.
Nascida em Sobral, Ceará, Isabel Lustosa é pesquisadora titular da Fundação Casa de Rui Barbosa, doutora em Ciência Política desde 1997 pelo antigo Iuperj, atual Iesp-Uerj, membro do Pen Club e sócia do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Nas pesquisas que estiveram na base de sua tese de doutorado, defendida em 1997, sob o título Insultos Impressos, demonstrou o papel fundamental da imprensa no processo de independência do Brasil e como ela se constituiu, então, numa esfera pública que deu lugar a embrionárias e imprevisíveis formas de competição política. Nos últimos 20 e anos, a imprensa e a vida política do período joanino e do Primeiro Reinado têm sido o principal tema de suas investigações. Ocupou a Cátedra Simón Bolívar (IHEAL) da Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3, na França (2010-2011) e foi titular da Cátedra Sérgio Buarque de Holanda/Maison des Sciences de l’Homme/Paris para o período 2012-2015, atuando como professora visitante da Universidade de Rennes-2. É autora, entre outros, de Insultos Impressos: a Guerra dos Jornalistas na Independência (Companhia das Letras, 2000), O Nascimento da Imprensa no Brasil (Jorge Zahar, 2003), As Trapaças da Sorte: Ensaios de História e Política Cultural (EDUFMG, 2004).
Nêumanne entrevista Isabel Lustosa
Nêumanne – A que conclusão a senhora chegou ao ser informada de que a polícia descobriu que o incêndio ominoso que destruiu o Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista, resultou de um curto-circuito num aparelho de ar–condicionado e que mais uma vez isso não conduzirá a nada que possa levar à punição de nenhum eventual responsável?
Isabel – O Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista, está abandonado há muitos anos. Os parcos recursos que a UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) recebe sempre foram insuficientes para a conservação e preservação do valiosíssimo acervo que se guardava ali, síntese de nossa história científica e também dos primórdios de nossa história política de nação independente. Isso sem falar da equipe diminuta de funcionários especializados. Cabe ao Estado brasileiro a preservação de seu patrimônio histórico, artístico e cultural. As dificuldades que sempre foram criadas para a concessão de verbas para a reforma das instalações do Museu Nacional simbolizavam a curta visão das autoridades sobre essa questão. Toda a comunidade acadêmica vem acompanhando há anos a luta de cientistas, antropólogos e museólogos que dedicaram sua vida ao Museu Nacional e viram naquele incêndio um sintoma trágico da realidade que o Brasil vive hoje.
N – Como historiadora, a senhora não se inquieta com a possibilidade de uma absoluta perda da memória nacional, depois de ver o Museu Nacional arder e continuar testemunhando as traças devorando os tesouros guardados na Biblioteca e no Arquivo Nacional e em praticamente todos os repositórios públicos de testemunhos históricos existentes no Brasil?
I – Como historiadora, cidadã e também como funcionária pública que trabalha há mais de 30 anos na área da cultura, participo e acompanho os esforços de funcionários e dirigentes dessas instituições no sentido de chamar a atenção da sociedade brasileira para os riscos que a falta de recursos para a guarda, conservação e preservação dos acervos representa. É dever do Estado preservar a memória do País, pois ela é a base sobre a qual as sociedades se reconstituem depois de processos dissolutores como guerras, epidemias, catástrofes e revoluções.
N – O que, a seu ver, explica o fato de uma das organizações acadêmicas mais respeitadas do mundo, que é o caso da USP, ser capaz de protagonizar um vexame da dimensão absurda de fechar para abrir de novo só Deus sabe quando as portas do Museu da Independência, no Ipiranga, com os rebocos das paredes desabando sobre a cabeça desprevenida dos frequentadores?
I – Não conheço as razões da USP para o fechamento do Museu do Ipiranga. Quero crer que sejam as mesmas que têm causado os danos ao patrimônio nacional: falta de investimento dos governos estaduais que fazem escolhas que não dão prioridade à educação e à cultura.
N – Que consequências terríveis a senhora prevê para a realização dessa hecatombe que seria a destruição gradativa de tudo o que lembre a experiência pregressa de uma sociedade cada vez mais iletrada e abandonada, como o é a brasileira de hoje e desde sempre?
I – Como disse no começo, eu e vários colegas que assistimos pela televisão, de diversos pontos do País, às chamas lamberem o Museu Nacional, com apenas uma solitária e ridícula mangueira de água para debelar o fogaréu, tivemos o sentimento de que aquilo tinha um propósito. Aquela tragédia, que destruía a memória de mais de 200 anos de História do Brasil, estava dentro do espírito medíocre que tomou conta do País. A ignorância e o desprezo pelas universidades, pelos intelectuais e artistas, pelo conhecimento cultural e científico dão hoje o tom da sociedade brasileira. E, dentro dessa visão obscurantista, as coisas do Brasil, aquelas que constituem o cerne da nossa identidade, incluídos nossos valores de humanidade, de povo alegre, conciliador e acolhedor, vão sendo destruídas a golpes de tuítes.
N – Qual é o destino deste país, que, segundo Stefan Zweig, seria o do futuro, mas cujo símbolo mais trágico que temos do engano dessa profecia foi outro incêndio, provocado uma vez mais por um curto–circuito, o que carbonizou os alojamentos do Centro de Treinamento do Flamengo na Vargem Grande, matando dez meninos, que o clube usa como falso slogan publicitário – “craque se faz em casa” –, mas abandona os sobreviventes ao deus-dará?
I – O destino trágico de um país em que sua elite despreza seu povo. Que o vê como mercadoria descartável e que por isso pode ser abrigado de qualquer maneira, num contêiner, ao lado de uma barragem condenada, numa favela tornada ainda mais inabitável pela violência policial. Elite que não percebe que seu destino está irremediavelmente ligado ao desse mesmo povo e que, quanto mais miserável ele for, mais ela será desprezada lá fora. Quem leu O Recurso do Método, de Alejo Carpentier, lembra-se da imediata queda de prestígio do antigo ditador latino-americano que vivia em Paris no momento em que fotos de soldados de seu país chutando as cabeças decapitadas de suas vítimas apareceram na imprensa de lá. Não importa quão luxuoso seja o hotel em que você se hospede, você será sempre identificado como alguém que veio daquele país em que a polícia executou de uma vez e com requintes de crueldade 13 pessoas, entre adultos e adolescentes, numa casa de favela.
N – A senhora acha que seria capaz de entender e explicar o fato de o arrombamento da represa de rejeitos minerais da Samarco em Mariana não ter servido de referência para evitar o mesmo acontecimento três anos depois em Brumadinho, e hoje, ao se completar o segundo mês da tragédia, a empresa Vale, que anuncia providências que não toma em anúncios na TV, ser responsável por mais um trágico êxodo, agora em Barão de Cocais?
I – A Vale S.A. é a responsável por essas duas tragédias brasileiras, que tendem a se repetir em outros lugares, como já anunciado. O lucro dos acionistas acima de tudo, em detrimento da segurança e da qualidade das instalações – nas quais não foram feitos os investimentos necessários para que o lucro ainda fosse maior -, junto com a certeza da impunidade, pois nada acontecera com a Vale depois de Mariana, estimulam atitudes criminosas como essa que tendem a destruir outras cidades e outros rios brasileiros.
N – Existe alguma saída para a tragédia educacional brasileira, registrada nos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) da ONU, que não seja a iniciativa de destruir o que foi feito antes, repetindo o mesmo erro pelo avesso, e adiando por mais sabe-se lá quantas gerações a restauração de um ensino público que já foi, no mínimo, decente e hoje parece apenas afundar sob o mais completo caos, adotando métodos insanos e disparatados de um louco que se pretende guru e guia num país que já teve entre seus mestres Anísio Teixeira e Zeferino Vaz?
I – É dever do Estado dar educação gratuita e de qualidade a toda a população. Os impostos recolhidos deviam ser prioritariamente destinados à educação e à saúde. O projeto de Anísio Teixeira para o Rio de Janeiro no governo Pedro Ernesto foi o da democratização do ensino, disseminando escolas públicas de forma planejada por vários pontos da cidade. Ao mesmo tempo que investia na formação de professores qualificados com a criação do Instituto de Educação. A base do progresso de um país é o acesso ao conhecimento distribuído da forma mais democrática possível. Assim se revelam os talentos e as capacidades em todas as camadas da população, independentemente de raça, cor, religião ou credo político.
N – Qual, a seu ver, será o destino de instituições veneráveis, como a Casa de Rui Barbosa, relegadas ao esquecimento, enquanto o marketing sem freios impõe à juventude desorientada obras faraônicas e vazias até no sentido de sua denominação, como o Museu do Amanhã?
I – Não sou contra iniciativas como o Museu do Amanhã. Ele apela para esferas do conhecimento por meio do uso de recursos modernos que talvez não fossem acessíveis de outra maneira. Instituições como a Casa de Rui Barbosa têm outra natureza. Ela se destina à preservação da memória política e cultural brasileira num determinado período e considerando determinados aspectos. É bastante específica, como muitas outras, aliás. Não está esquecida, ao contrário. É visitada o tempo todo por pesquisadores nacionais e estrangeiros que se dedicam a estudos cujas fontes e autores se concentram ali. É preciso ter consciência de que nem tudo precisa ser constantemente midiatizado. O conhecimento nasce e progride discretamente, a partir de estudos e pesquisas que vão resultar mais tarde em obras importantes para o fortalecimento da nossa cultura.
N – O que será do legado de nossos gênios da raça, como Gilberto Freyre, Machado de Assis, José Bonifácio de Andrada e Silva, César Lattes, Castro Alves e Mário de Andrade, entre outros, que ainda torne possível a sobrevivência da decência e da criatividade nesse universo de grosseria e exaltação da ignorância presente nas fake news e no insulto e baixo calão generalizados?
I – A onda obscurantista é realmente assustadora. Gente dizendo que a terra é plana, gente querendo negar as teorias de Darwin, gente negando a eficácia das vacinas, gente querendo pôr Deus em tudo, Ele que, aliás, não precisa disso, porque já está em toda parte. Tendo a ver essa onda como um refluxo que mais adiante será superado. O que construíram os nossos maiores é a expressão de uma história, de uma cultura, de formadores étnicos que estão consolidados e que resistirão. Serão resgatados pelos filhos desse mesmos que estão aí vomitando certezas odiosas. Porque não seria natural, depois que saímos da caverna e vimos a luz do lado de fora, voltarmos a ela.
N – Que instinto ou ímpeto a mantém estudando, pesquisando, refletindo e debatendo nesta algaravia de ódio, desesperança e desleixo numa cultura que afunda em dislexia, ganância e egocentrismo?
– Nasci numa numerosa família cearense, cujos pais eram pequenos intelectuais católicos. Uma das últimas lembranças que tenho de meu pai é de quando ele leu para mim A Última Corrida de Touros em Salvaterra, pois guardava ainda a ensebada Seleta de Carlos de Laet que usara na escola primária. Assim cresci ouvindo O Navio Negreiro, de Castro Alves, Meus Oito Anos, de Casimiro de Abreu, I-Juca Pirama, de Gonçalves Dias. De vez em quando papai cantarolava a Canção do Expedicionário. Também, por serem católicos praticantes, nossos pais nos educaram com o sentido da caridade, do amor ao próximo, do respeito aos mais velhos e da piedade para com os que sofrem. Também devemos muito a meu irmão mais velho, o falecido jornalista Lustosa da Costa, sempre nos indicando leituras e nos comprando livros, sendo ele mesmo dono de uma biblioteca maravilhosa, onde a gente podia ler toda A Comédia Humana, de Balzac, quase tudo de Machado e Eça, e muito mais, além de alguns clássicos das ciências sociais brasileiras. Enfim, além do prazer que me dá sempre a aquisição de um novo conhecimento, posso atribuir esse ímpeto a um patrimônio cultural e afetivo construído ao longo de uma vida e a uma determinada forma de viver no mundo. Creio que são essas coisas reunidas que me estimulam a seguir lendo, estudando, pesquisando e compartilhando esse conhecimento com quem por ele se interessar. Felizmente, ainda tem muita gente com essa disposição.
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https://www.youtube.com/watch?v=GUVmaiz9s38
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http://tvbrasil.ebc.com.br/conexaorobertodavila/episodio/isabel-lustosa-e-isabel-stilwell
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