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Na Revista Uiraúna: “Nem santo nem conquistador, xilogravador”


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José Nêumanne

Abdoral e Socorro puseram no rebento um nome composto. Era costume no sertão aí pelos meados do século 20. E capricharam no contraste: o primeiro nome é Francisco, do santo italiano de Assis, o amigo dos animais, particularmente dos passarinhos, o símbolo da humildade e do desapego. Seria difícil encontrar um segundo que contrastasse com ele mais do que Ciro, o imperador persa, o grande guerreiro da antiguidade, o conquistador bíblico das cercanias da Babilônia. O sobrenome, Fernandes, consegue ser ao mesmo tempo comum e nobre. Fernandes todo mundo é no sertão do Rio do Peixe. Alguns assinam Vieira, outros se chamam Pinto, há quem se diga Queiroga. Mas, no fundo, todo mundo é Fernandes, o monsenhor Manoel Vieira, irrepreensível orador sacro, educador e político,  o bispo Dom Luiz Gonzaga Fernandes e o comerciante Francisco Euclides.

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Os Fernandes são, sob qualquer outra denominação, do mesmo clã a que pertence Ciro, como assim passou a ser conhecido, para gáudio de Socorro de Abdoral que, certamente, preferiu o prenome do iraniano de antanho ao destino de todo Chico nas nossas plagas: o bodegueiro Chico Queiroga, meu tio Pintinho, o farmacêutico Chiquinho de Alexandre Fernandes, Titico de seu Batista ou o quengo Chicó, protagonista da farsa de mestre Ariano, O auto da compadecida. Naquele tempo, o nome do santo ainda não havia sido adotado por nenhum papa, só tendo virado nobre quando o foi pelo argentino Bergoglio agorinha mesmo, tantos anos depois.

Mas, fosse qual fosse seu nome, Chico ou Ciro não é personagem de minha infância. Como o foi, aí sim, seu tio Chico de Maroca (taí um Chico na família de nosso personagem), tocador de instrumentos de corda. Ou ainda seus pais, que viveram na mesma Rua Nova, na qual cheguei a morar duas vezes – no começo dos anos 50, no mesmo lado da matriz de Jesus, Maria, José, e, no meio dos anos 60, na calçada oposta, na casa vizinha à de Primo Fernandes, de fulgurante inteligência, e a alguns metros da de “tio Xave”, Xavier, senhor da roda de conversas mais animada da cidade.

Só vim conhecer Ciro de Socorro de Abdoral no Rio de Janeiro quando os ditos anos rebeldes se extinguiam debaixo do fogo da guerrilha urbana e de um banho de sangue dos gorilas do regime. Mas ambos estávamos bem longe das balas perdidas da guerra suja nos sequestros e na perseguição da ditadura militar aos sequestradores. Foi uma apresentação por aproximação familiar. Minha prima Lourdinha (perdão, dona Lourdinha), que substituiu dona Palmira na direção do Grupo Escolar Jovelina Gomes, onde estudei, casou-se com Nonato Luciano, filho do fogueteiro Vitor e dona Zefa, e foram morar no subúrbio de Higienópolis, entre Cancela e Bonsucesso, na Zona Norte do Rio.

Ciro fez o trajeto da retirada oposto ao meu. Saí de Uiraúna para Campina Grande e de lá para São Sebastião do Rio de Janeiro antes de me instalar definitivamente, pelo menos até agora, nos pagos de São Paulo de Piratininga. O retirante Ciro pintava bois em paredes de açougue no distante bairro de Itaquera, gueto de nordestinos na Zona Leste paulistana. Morava numa pensão, engraçou-se da filha do dono, a doce Ritinha, enrabicharam, casaram-se e foram morar no Rio, onde criaram seus filhos Bruno e Milena, óbvia homenagem à noiva de Franz Kafka. Ocorre que Ritinha é prima de Nonato e Ciro e eu nos tornamos unha e carne nos convescotes do clã originário da Quixaba, distrito de Uiraúna, ora no apartamento de Lourdinha e Nonato, ora na casa de Ritinha e Ciro na Vila da Penha. Às vezes, o encontro também podia ser na casa de um primo dos Luciano, Joaquim, em Olaria.

Isso transcorreu ao longo de 1969 e em metade de 1970, quando me mudei para São Paulo. Então, Ciro era diretor de arte numa agência de publicidade. Não era um nababo, mas tinha uma vidinha boa de classe média baixa, com emprego, salário e férias. Eu estava em São Paulo, repórter da Folha, quando Ciro jogou tudo para o ar e resolveu viver de xilogravura. É uma história extraordinária: de origem popular, numa família de artesãos, Ciro era um desenhista sofisticado fazendo de croquis e arte final e escolhendo tipologia de anúncios quando conheceu Zé Altino, artista plástico da geração de Antônio Dias e da turma de Raul Córdula e Chico Pereira, meus amigos de adolescência no planalto e na praia. Não me lembro mais como Ciro chegou a Altino. Sei é que este lhe ensinou a arte e as manhas da xilogravura, modalidade de desenho escavado na madeira que ao contato com a tinta preta chega ao papel modulando figuras de heróis, aventureiros, São Jorge e seu dragão, cangaceiros, quengas, quengos e santos.

O antigo pintor de boi de paredes de açougue interrompeu uma boa carreira de publicitário para fazer capa de folheto de cordel e outras xilogravuras que vendia no Campo de São Cristóvão. João Eudes Fernandes (olha aí o sobrenome de novo), meu colega de classe no grupo escolar, saxofonista do primeiríssimo time, como Zé de Milta e Tiquinho (mais um Francisco) de Xôta, me punha a par das novidades. Quando secretário de redação do Jornal do Brasil, eu costumava ir comer queijo da Serra de Estrela no Adegão Português no Campo de São Cristóvão, pertinho do pavilhão onde Ciro vendia suas xilos. Mas, de fato, nunca nos encontramos na feira dos nordestinos lá. Na folga tomava chope e comia tremoços no Bar Brasil, vulgo Alemão, na Lapa, pertinho da casa do artista, muitas vezes na companhia de Zé do Norte, que registrou Muié Rendeira como música sua, e de Zé Ramalho, de cujos shows em começo de carreira Ciro desenhava os cartazes. Mas foi Eudinho de Amâncio quem me contou que Ciro estava apertado de finanças e não sabia a quem procurar.

Contratei-o como free lancer no Jornal do Brasil, mas meu chefe, o sofisticadíssimo designer mineiro Murilinho Felisberto, achava o estilo de meu conterrâneo muito sombrio e pouco sutil para um jornal chique como era o nosso. Murilinho largou o JB e o jornalismo e foi sentar praça na DPZ como diretor de arte da agência publicitária de Duailibi, Petit e Zaragoza. Eu assumi o lugar dele e, como chefe de Redação, impus Ciro como ilustrador. Mas logo voltei para São Paulo e Ciro voltou a depender das vendas diretas na feira. Adotou o pseudônimo artístico de Ciro de Uiraúna, vive modestamente nas proximidades do Campo de Santana no centro do Rio de Janeiro e não tem por que se arrepender, a não ser do ponto de vista financeiro, de haver abandonado a publicidade por opção e, depois, o jornalismo por livre e espontânea pressão.

Ciro de Uiraúna, que carrega nossa cidade na assinatura de artista, é o maior xilogravador do Brasil, sem favor nenhum, sem medo de exagero. Um touro dele defende o vestíbulo de meu apartamento em Santa Cecília. E um bando de cangaceiros vigia atrás do sofá na sala principal. Muita gente boa que entende do negócio melhor do que eu concorda com minha avaliação. E quem duvidar pode ir à feira de São Cristóvão para apreciar e, se possível comprar, um Dom Quixote altaneiro, uma Dulcinéia faceira, que, como Eva no pecado original, e, de resto, todas as mulheres que Ciro desenha, é a cara de Ritinha, aquela sertanejinha macia que ele conheceu em Itaquera.

Jornalista, poeta e escritor, natural de Uiraúna, José Nêumanne é editorialista e articulista de O Estado de S. Paulo e comentarista na TV GAZETA e na Rádio Jovem Pan.

 Texto publicado na Revista Uiraúna de 2013, celebrando os 60 anos de emancipação do município, em 1953, onde Nêumanne nasceu, em 1951.

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