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No Blog do Nêumanne: De volta ao curral onde jaz meu umbigo
Lembranças do vaqueiro Eloi e seu patrão Chico, meu avô
O primeiro ponto de referência de minha vida foi a porteira do curral em frente à casa de meu avô materno, onde nasci. Afinal, foi lá que enterraram meu cordão umbilical. Desde muito cedo me contaram isso. Desde muito cedo me acostumei a tirar os paus que impediam a saída das reses e a entrada dos vaqueiros. Nunca tive um gibão, nunca uma perneira, nunca um bornal pra encher de farinha seca e pedaços de rapadura que amoleciam ao sol. O velho Chico Ferreira também não usava os trajes dos meeiros de confiança que apartavam seu gado vacum, levavam-no cedo para o pasto e, ao anoitecer, o traziam para ruminar no leito macio e quente de bosta de vaca. Ao que me lembre, meu avô, magro e míope, muito míope, usava camisas e calças de tecido rústico, sempre muito limpas, com cheiro de sabão de pedra, anis e goma de mandioca, usada para passá-las.
Eu, gorducho, meio inseguro sobre coxas grossas e pernas bambas, acordava muito cedo para tomar meu café. Carregava com zelo um copo de vidro grosso no qual jorrava o leite gordo da teta que o dono ordenhava com calma, paciência e um amor que exalava por todos os seus poros. Ali era o pai de minha mãe, sua primogênita, o sogro de meu pai, seu sobrinho, ao mesmo tempo seu compadre, pois tinha sido padrinho de meu irmão um ano mais novo.
O líquido branco e morno já era despejado sobre o café, que dona Quinou Moreira, minha avó, havia feito na primeira hora, antes de a barra alumiar de rubro e o sol surgir luminoso, forte, quente e ameaçador. Quando meus pais se mudaram para a cidade, um vilarejo à época, o leite chegava em baldes e era fervido no fogão de lenha por minha mãe, Mundica, que o passava de tigela em tigela até atingir minha temperatura favorita, um pouquinho mais quente do que o leite mugido.
Até seu Chico morrer, e eu tinha apenas 6 anos, contudo, meu desjejum era no curral, ao qual só tinha acesso depois de pisar o chão que ocultava os restos em decomposição de meu cordão umbilical. Isso era muito cedo e o dia se alongava, de forma preguiçosa e lenta, até que eu me juntava ao ancestral para a cerimônia mais esperada do dia. Sentávamo-nos os dois na calçada alta e esperávamos a chegada do rebanho. Ao som dos chocalhos, o sol desmaiava aos poucos, desmanchando-se em cor de sangue. Aquela longa conversa muda entre o velho e a criança se reproduz até hoje em minhas lembranças e em meus gostos.
Às vezes, muito raramente, o ancião esticava o braço torrado da soleira na direção do ocidente e me mostrava nuvens carregadas ao perder de vista no horizonte:
– Veja, esse menino. Está chovendo em Souza. Pode ser que amanhã chegue por aqui. Estamos precisados.
Quando o dia morria, ouvíamos a voz da mulher, vinda da cozinha:
– Traga o menino pra dentro, seu Chico. É hora da ceia.
O idoso (e ele morreria tão cedo) sacava, então, sua peixeira e a amolava numa pedra, depois rapava uma rapadura que seus empregados traziam da Baixa Verde, sua propriedade no Rio Grande do Norte, onde nascera parte de sua prole, inclusive minha mãe. Despejava a rapadura rapada no prato fundo, acrescentava coalhada e soro. E os dois – o ancestral e parte de sua descendência – comíamos solenemente, em silêncio. Gostaria muito de um dia me lembrar da voz daquele homem tão íntimo de mim naquele tempo, mas ele foi e com ele levou a lembrança de seu timbre amável. Cruzava as pernas, sentava-me no colo e, antes de pitar um cigarro de palha, depositava a criança quieta no banco de madeira ao lado de uma mesa longa, à qual somente nós dois tomávamos assento. Minha avó comia na cozinha, de pé, ao lado do fogão, depois que os pratos dos homens estavam lavados, postos para a água escorrer logo ali ao lado.
Dormíamos em redes, ele no quarto com a mulher, eu na sala, insone pelo tique-taque do pêndulo do relógio de parede que dava os minutos e tocava as horas, contadas em algarismos romanos fora do padrão: quatro era IIII, não IV, como no império dos Césares se grafava. De onde algum desavisado teria tirado essa ideia de subverter o IV com que Marco Aurélio fazia suas contas na Antiguidade longínqua?
Quando chovia, contudo, eu dormia bem, embalado pelo ronco pesado de minha avó, as bátegas açoitando as telhas da casa antiga e o ranger dos armadores submetidos ao peso do velho se balançando para conciliar o sono. Uma vez, já adolescente, morto o avô, a avó surda e implicante ainda viva por um bom tempo, escrevi um poema sobre esta cena doméstica. É o único de todos os meus poemas que sei de cor. E tem o fecho mais comum, menos interessante, mas que me emociona até me levar aos prantos. O poema intitula-se “Na casa avoenga”. E termina com um verso súbito e impaciente: “eta emoção!” Só que o ritmo dos versos não lembra as noites de chuva e paz ou de ronco e vigília. Mas, sim, sempre, a chegada da boiada de volta ao curral, onde apodrece o cordão que me ligava ao ventre materno antes do parto complicado de que vim ao mundo.
Não sei por que, vou morrer sem saber, talvez nasça de novo e ainda não aprenda por que, com mil e seiscentos diachos, como praguejava seu Chico Ferreira, me senti pessoalmente agredido pelos bondosos defensores dos animais, pelos burocratas do Estado do Ceará que, a poucos quilômetros do alpendre da casa onde minha mãe me pariu, proibiram a vaquejada. Um ministro do Supremo Tribunal Federal me fez a suprema desfeita de decepar um pedaço da infância, a lembrança afetuosa que tinha do pai de minha mãe, com os quais, ele e ela, compartilho feições bem parecidas. Senti-me um irmão distante de Aldo Rebelo quando ele escreveu, na mesma página onde rabisco linhas sobre política no Estadão velho de guerra e paz, um protesto assim lírico e manso como o meu contra a medida Segundo Aldo, esta matou o vaqueiro e o sertanejo, os heróis da saga da conquista dos ermos pelas patas das boiadas da Casa da Torre, dos Garcia d’Ávila, na Bahia.
Lendo o noticiário posterior sobre o pretexto do conflito em torno da vaquejada, que teria ajudado a derrubar Marcelo Calero do Ministério da Cultura, que era contra, e da penada com que o presidente Temer a recolocou no altar da cultura popular, aproximei-me de novo de meu avô materno. E me senti de novo o bebê que Levina, filho de seu Natan, pesou na balança de pesar algodão de meus ancestrais e depois banhou pela primeira vez com sabonete Vale Quanto Pesa. Moradora de meu bisavô coronel, ela era mulher de Eloi, vaqueiro tresmalhado que chegou de Monte Santo, Bahia, onde o beato Conselheiro perdeu a vida para adentrar a lenda.
Quem sabe essa lembrança com gosto de leite recém-ordenhado no sertão do Rio do Peixe me consiga o perdão dos defensores dos animais, embora talvez seja impossível convencê-los de que, por mais que se esforcem, nunca cuidarão de uma rês ou uma rã tão bem como um vaqueiro do sertão. Seja como for, este idoso com o umbigo amarrado ao curral do avô sempre lhes será grato por terem eles permitido voltar à infância amputada por causa do episódio sem nexo nem razão da proibição da vaquejada. Tengo, lengo, tengo, lengo, tengo, ê boi.
José Nêumanne
José Nêumanne Pinto, poeta, escritor e jornalista, nasceu na Fazenda Rio do Peixe, em Uiraúna, Paraíba.
Imagens: recortes do vídeo da reportagem da TV Tambaú feita pelo jornalista José Vieira Neto sobre a vida do Jornalista e escritor José Nêumanne Pinto – 5 de maio de 2007.
Três vozes do povo pobre
Minha primeira reação ao ver o documentário A pessoa é para o que nasce foi a lembrança de uma constatação amarga feita por um amigo, Bráulio Tavares, a respeito das péssimas conseqüências para a formação de um intelectual da perigosa mistura de arrogância e ignorância nos anos de formação da juventude. Bráulio e eu nos conhecemos na adolescência, quando ele presidia o Cineclube de Campina Grande e eu, o Cineclube Glauber Rocha. Éramos, por isso, rivais. Nem por isso, deixamos de cometer os mesmos erros e fazer a mesma remissão autocrítica. Com a ajuda de um amigo comum (mais dele que meu, pois fora sócio do Cineclube de Campina Grande), Rômulo Azevedo, diretor de jornalismo da TV Paraíba, afiliada local da Rede Globo, garimpávamos certa tarde arquivos de imagens e sons para encontrar registros mínimos do talento inexcedível do grande repentista paraibano Dedé da Mulatinha. Leia mais…
Sacos de picolé e a sorveteria que derreteu
Sou jornalista e ficcionista. Vivo disso. Como profissional da comunicação, tenho plena noção das dificuldades de reconstituição de um fato recente, quanto mais da história – algo passado há anos, decênios, séculos. Mais do que isso: tenho experiência no ramo. Toda reportagem tem um pouco de fantasia – nem sempre por conta de alguma invencionice de quem escreve, quase sempre pelas falhas de memória de quem lhe conta o fato narrado. A memória é traiçoeira: nunca ninguém se lembra de um fato ocorrido em sua vida exatamente como ele foi vivido, pois normalmente a lembrança chega marcada por outros fatos e outras experiências do passado e, sobretudo, pela vivência do presente. A memória é um exercício de ficção, também: quando eu escrevia o romance O silêncio do delator – laureado pela Academia Brasileira de Letras com o prêmio Senador José Ermírio de Moraes, em 2005, como o melhor livro de 2004 -, tive uma experiência interessante neste sentido. Lembrava-me de uma cena com um tigre de papel da Esso no filme A chinesa, do francês Jean-Luc Godard (que havia visto no Cine Capitólio) e quando o revi em DVD, não a achei. Talvez a versão para DVD tenha excluído a cena, mas é mais provável que ela tenha sido acrescentada à minha lembrança da fita por outro tipo de visão que tive ao longo dos 40 anos que separavam o momento em que escrevia o livro do instante em que a assisti, nos anos 60 do século passado, na adolescência passada na minha amada cidade adotiva de Campina Grande.
É, portanto, com espírito compreensivo e até uma certa cumplicidade que tenho encontrado na leitura de textos desta revista a respeito do passado de minha cidade natal falhas factuais repetidas e repetitivas envolvendo uma pessoa muito amada por mim e fatos muito presentes nas minhas recordações. Como já observei em textos que escrevi e no discurso de minha posse na cadeira nº 01 (Augusto dos Anjos) na Academia Paraibana de Letras, o memorialista pode ser inventivo, mas o historiador tem o dever precípuo da exatidão na narrativa. Um pouco porque a ausência de meu pai nas histórias contadas de Uiraúna me incomoda, reconheço, mas mais ainda pelo amor à exatidão dos fatos que tem marcado minha vida de homem de imprensa, rádio e televisão, pedi à editora desta revista, Terezinha Vieira, espaço para fazer algumas correções que creio serem necessárias até em respeito aos autores que cometeram tais deslizes.
A primeira lacuna diz respeito à história do Uiraúna Tênis Clube. Na minha infância, os bailes na cidade eram realizados no salão esvaziado do curtume de Antônio Jacinto, na área central do comércio. Lembro-me também de haver comparecido a festas no galpão do Grupo Escolar Jovelina Gomes, à época que lá moravam dona Palmira, a diretora, e o marido dela, seu Militão. Quando meu pai, José de Anchieta Pinto, assumiu a presidência do clube, voltando de Campina Grande, tratou de reconstruir, no meio da ampla Rua Nova, sua sede própria, cujo teto havia desabado. O prédio que ele reconstruiu lá está de pé até hoje. Como resiste ao tempo a logomarca desenhada por José Adalberto Ribeiro, meu colega no Colégio Estadual da Prata, em Campina Grande.
Foi também de meu pai a iniciativa pioneira de produzir sorvetes em nosso tórrido torrão tropical. Ele tinha possuído um armazém de víveres para flagelados na seca de 1958 e sempre nutriu uma paixonite por boléias de caminhão, ganhando a vida a transportar cargas de algodão e de mercadorias do sertão para o Sudeste e do Sudeste para o sertão. Do Rio trouxe nossa paixão comum pelo Clube de Regatas do Flamengo, quando Garcia; Tomires e Pavão; Jadir, Dequinha e Jordan: Joel, Duca, Evaristo, Dida e Zagalo foram tricampeões em 1955. E também meu apreço pela leitura, pois me abastececia com gibis do Bolinha, Luluzinha e Pimentinha e a revista Manchete Esportiva, que publicava as magníficas colunas de Nélson Rodrigues. Ao se aventurar pelo negócio de guloseimas frias, seu Anchieta teve de importar de Cajazeiras o sorveteiro Ezequias e instalar um conjunto de motor a Diesel e gerador de eletricidade, pois à época não nos havia chegado ainda a luz de Paulo Afonso. Por sugestão de um cunhado, o médico Raimundo Ferreira Pinto, deu ao estabelecimento, na Rua do Comércio, o nome de Sorveteria Alabama, homenageando o estado sulista americano.
Ali, numa vistosa “radiola”, ouvi Nat King Cole cantando em espanhol e Miltinho, de quem sou fã e amigo hoje, entoando “cara de palhaço, pinta de palhaço”. E eu morria de rir, pois “pinta” na gíria sertaneja denominava o órgão genital masculino – a letra me parecia, então, fescenina. Ali, com saudade de uma namoradinha que havia deixado em Campina Grande, Regina Coeli, mais tarde a mãe de meus filhos e avó de meus netos, ouvia, com emoção, o LP O Inimitável, repto de Roberto Carlos ao lançamento de Paulo Sérgio, intérprete que, com voz bem similar à do Rei, fez muito sucesso, mas morreu precocemente. Contava-se – não sei se é verdade, pois nunca testemunhei – que alguns matutos misturavam a água gelada servida num copo junto com o sorvete e a mexiam com a colherzinha na taça antes de tomar. Ou ainda que outros enchiam sacos de picolés e chegavam a seus sítios com o saco molhado cheio de palitos. Pode ser que tenha aparecido gente por lá com saco para encher de picolés, da mesma forma que minha mãe, Mundica, ouvia muitos pedidos de amigas para vender sorvetes que não fizessem mal à gripe nem piorassem resfriados. Mas duvido que meu pai permitisse a venda de sacos de picolé. Mas o certo é que seu negócio derreteu ao sol do sertão, menos pela falta de costume dos nativos em relação a sorvetes, fossem moles ou duros, mas muito mais pelas despesas com o grupo gerador, o empregado, etc. Quando chegou a luz de Paulo Afonso, Nozinho Barbosa abriu no lugar a Sorvelanches Canaã, muito citada neste espaço, erradamente tida como pioneira na arte dos doces gelados em nossa terra.
Outra paixão de meu pai era pela música: tocava pistom na banda de música de Jesus, Maria, José e nas orquestras de carnaval, sempre sob a regência de Dedé de Capitão, de cuja família era amigo – amizade de que me beneficiei, pois passava minhas férias em Campina Grande ora na casa de Expedito Gomes, ora na casa de Jaceme e Manoel Israel. Meu pai não tinha o talento de Constantino de Acácio para o trompete, mas se orgulhava da potência do próprio sopro, que fazia inflar e corar as bochechas quando o tocava. De sua vocação de empreendedor foram obtidos os recursos e de seu talento de gerente foram erguidas as paredes da sede onde até hoje a banda ensaia.
É assim que me lembro. E foi assim que ocorreu. Quem souber de mais pode acrescentar. Mas subtrair não, pois, se a memória é uma colcha de retalhos, a História só deve ser contada se o for com imparcialidade e exatidão.
História de um poema inconformado
Numa manhã de sábado, Magdala e eu fomos despertados por um telefonema aflito da filha dela, Juliana, dando conta do súbito, inesperado e doloroso desaparecimento de um amigo: Milton, procurador da Fazenda, tinha 28 anos quando foi surpreendido em casa por um infarto violento e fulminante. Levantei-me tonto da cama e, ainda sem ter absorvido direito aquela notícia infausta para um casal recém-formado e em início de carreira profissional, diante da perspectiva de não mais morarem em cidades distantes, Andressa em Porto Velho e ele em Brasília, mas ambos em Caruaru, levantei-me e liguei o computador. Na primeira página do www.estadao.com.br destacava-se a foto do ginasta brasileiro Diogo Hipólito estatelando-se ao chão. Em outro lugar, no mesmo portal, brilhavam as medalhas douradas do fenômeno americano da natação, o super-recordista Michael Phelps. A estas imagens juntavam-se a de um zagueiro fazendo gol contra e a notícia da derrota do suíço Federer, que tinha sido o número 1 do mundo e estava perdendo o lugar para o espanhol Nadal. E foi assim que foi surgindo este poema, que incluí em meu discurso feito na cerimônia de posse na cadeira nº 01 (Augusto dos Anjos) da Academia Paraibana de Letras.
DO PÓDIO AO PÓ
«A vida é uma frase interrompida…»
Victor Hugo
O ginasta se projeta no ar
e se prostra ao solo;
o tenista empunha a raquete
e rebate a bola pra fora;
o ponteiro corta com força
e, bloqueado, faz o ponto contra;
o zagueiro desvia a pelota
e a vê morrer na própria rede;
o nadador bate a mão na borda
e sente o mundo a seus pés.O pódio premia o suor
e o pó é o troféu da derrota.
A existência é uma corrida de obstáculos
sem fita de chegada;
uma partida sem resultado;
uma Olimpíada sem medalha:
todos erram,
todos perdem a vida,
todos são iguais
perante o amor
e a morte.
O Silêncio do Delator (romance/fragmento)
(Capítulo 6, p 129-150)
6 – Ela Me Pertence
O CAIS DO PORTO
Quando a Zuca e João Miguel se encontraram, ninguém poderia apostar que ali estaria surgindo um sólido caso de amor. Dir-se-ia que foi uma conjunção de astros o que os aproximou e de uma forma tão indissolúvel que aos dois parecia que, sim, viviam um matrimônio regular entre si e não com seus parceiros fixos.
Seria uma ingenuidade classificar João Miguel de um marido fiel. Ao contrário. Ele vivia freqüentemente aventuras extraconjugais, mas elas tinham duas características básicas: 1 – as parceiras eram egressas de seu ambiente doméstico ou profissional; e 2 – ele tinha um cuidado obsessivo de evitar que Penélope fosse informada de seus casos.
Maledicentes diziam que João Miguel era covarde e acomodado até nisso: suas parceiras, por mais que se sentisse atraído por elas, por mais que a hipótese de vir um dia a se afastar delas fosse concreta, tinham a impressão de que foram elas que o escolheram e ele apenas as acolhera, sob inúmeras condições. Os horários dos encontros eram cuidadosamente marcados e eles só ocorriam se não interrompessem a rotina acadêmica e pessoal do protagonista.
Compungido, constrangido, usando o tom a que um médico recorreria para noticiar a um paciente que este seria portador de uma doença terminal, ele invariavelmente avisava, antes de se envolver em qualquer parceria afetiva ou meramente sexual:
– Eu sou casado, muito bem casado e não pretendo, de forma nenhuma, pôr fim à relação estável que tenho, nem sequer sair de casa.
Com o tempo, as parceiras se acostumavam com os horários draconianos, o constrangimento de não se cumprimentarem quando o encontravam com algum familiar e às vezes até com alguns conhecidos em comum.
A VOZ DO MORTO
Alto lá, sujeitinho. O retrato que você está traçando do morto aqui não é nada honroso. Chega a ser execrável. O perfeito cafajeste. Explorador de mocinhas incautas. Adúltero contumaz. E, sobretudo, hipócrita. Você já se perguntou por que as tais parceiras avulsas descritas na seção acima aceitavam uma relação que lhes era assim tão desfavorável? Afinal, este morto não era propriamente um galã que despertasse o desejo feminino pelos belos olhos, como seu amigo Marlon. Nem seu desempenho sexual era de qualidade tal que lhe permitisse gabar-se, como Charlie Chaplin, que se chamava nas rodas de amigos, aos quais contava vantagens, como qualquer peru vaidoso, de “máquina sexual”. De fato, sua vítima favorita era um sujeito meio ensimesmado e a maior parte das vezes silencioso na cama. E, ao contrário do que ficou parecendo na abertura infeliz deste capítulo, não era de ficar relatando suas aventuras de alcova aos amigos, mesmo aos mais íntimos, nem fazia propaganda de seus feitos sexuais para aumentar a relação das parceiras fora do casamento. Casamento, aliás, que sempre foi, do princípio ao fim, altamente satisfatório do ponto de vista do desempenho entre lençóis e fronhas. Em defesa do morto, que não pode erguer-se do caixão e protestar em altos brados ou lhe atracar os colarinhos para tomar satisfação ou ainda levá-lo, como, aliás, deveria, às barras dos tribunais, talvez seja o caso de explicar que este livro, que nunca se pretendeu um elogio fúnebre, pode tornar-se definitivamente um auto-de-fé, caso o morto não saia de seu silêncio forçado para delatar o delator.
O CAIS DO PORTO
Talvez fosse um exagero definir como um mar de rosas a vida conjugal de Elsa, a Zuca, no dia em que ela se encontrou por acaso pela primeira vez com o protagonista desta ficção. O relacionamento tinha seus altos e baixos, como sói ocorrer com casamentos longevos, mas também não seria exato dizer que se tratava de um inferno. Nas aparências, que aliás nem sempre são enganosas, tudo fluía bem naquela casa.
José Eugênio a havia conhecido num momento difícil da vida dele. O primeiro casamento desabava sob o peso de incompatibilidades inconciliáveis de temperamento. Raquel, a primeira mulher, pedagoga de renome e reconhecido sucesso profissional, não era propriamente fanática por manter as aparências, o que José Eugênio considerava algo lamentável, quase até desprezível. Ao abrir a gaveta das meias e encontrá-las amontoadas, os pares descasados, misturadas com lenços e algumas cuecas, costumava se perguntar por que cargas d’água se havia casado com aquela mulher tão desleixada. Ela nem era propriamente um tipo de beleza de quem ele pudesse se vangloriar com os amigos no happy hour habitual das sextas-feiras. Eram amigos de infância, se conheciam desde um tempo que depois de um convívio mais prolongado nenhum dos dois conseguia mais se lembrar. Já eram amigos os pais. Costumavam se revezar na ida à escola. Os irmãos de ambas as famílias cresceram juntos. O namoro e o noivado de Raquel e José Eugênio pareciam fazer parte de uma rotina previamente programada.
Adolescente, Raquel já se destacava entre as amigas como a que menos se preocupava com a aparência, que não chamava a atenção dos rapazes. Deixava o cabelo crescer a ponto de ganhar o apelido, mais jocoso que carinhoso, de Rapunzel. Nem sempre sua blusa escolar estava bem passada. A maioria das vezes, ao contrário, parecia que ela a havia tirado de dentro de uma garrafa para vestir. Nessa época, o aspecto desleixado da namorada não perturbava José Eugênio, embora ele fosse o mais alinhado da turma. E também o mais bonito. E o partido (era essa a expressão que se usava então) mais disputado no colégio e nas rodas sociais que ambas as famílias freqüentavam. Seu sapato estava sempre impecavelmente lustrado. A roupa, bem passada. A pele, perfumada. Apreciava, é claro, o sucesso que fazia entre os brotos. Assim é que se chamavam as garotas naqueles anos. Fazia praça disso nos torneios esportivos colegiais, nos quais não chegava a ser um astro, porque não se destacava pela habilidade atlética, mas chamava a atenção pelo porte garboso.
Apesar das enormes diferenças de temperamento, o casamento foi comemorado como uma espécie de conquista mútua das famílias do noivo e da noiva. Os pais dele, proprietários de uma indústria de porte médio, fizeram questão de lhes financiar a lua-de-mel em Paris. Os pais dela, do mesmo nível social, cederam um apartamento para que começassem a vida sem pagar aluguel. Ela acabara de receber o diploma de Direito numa Faculdade tida como a melhor. Ela começava a bem-sucedida, não tanto financeiramente, mas na certa social, carreira de pedagoga.
Quando surgiram os primeiros sinais de que o casamento ruiria, Raquel mudou o comportamento. Passou a caprichar na maquiagem, mudou sutilmente o guarda-roupa, comprou camisolas mais sensuais para estimular a libido pouco entusiástica do amigo de infância que virou marido. Não era uma vida sexual das mais movimentadas, mas eles, que tinham um filho, terminaram gerando o segundo. Para ela, uma esperança de mantê-lo por perto. Que tivesse suas aventuras, porque os homens não são de ferro, graças a Deus, mas voltasse sempre para casa. Para ele, a prova definitiva de que aquele barco naufragaria inevitavelmente. Não haveria como mantê-lo à tona. O terceiro livro de Raquel foi lançado quando lhe nasceu a filha. José Eugênio, então, já havia saído de casa.
A VOZ DO MORTO
Hilda Hilst lamentava muito ter passado a vida inteira paparicando personagens. Que pena que este cadáver, esta vida imobilizada não tivesse surgido de um sopro dela. No entanto, o escribazinho filho da puta que o criou parece realmente fadado a repetir Ariano Suassuna, aquele escritor tirano que adorava torturar e até assassinar suas criaturas, desde que começou, ainda na infância, a engendrá-las, para horror dos parentes mais velhos. Imagine, caro leitor, o sofrimento de um ser, não se importa se real ou fictício, se gente ou figura de ficção, que por dever de ofício seja obrigado a tomar conhecimento das glórias e misérias do rival, daquele que sempre foi um obstáculo entre a dor e o prazer, entre a tristeza e a alegria, entre a angústia e a felicidade. É o que resta ao protagonista deste velório que virou romance. Ainda bem que o canalha não poderá continuar empulhando o leitor com excesso de particularidades sobre um tema paralelo de sua narrativa central e, quando sair desse sacrifício que impõe ao próprio protagonista, este filho da puta, este autor desnaturado vai ter de dedicar mais tempo, mais espaço à bela Zuca. Esta é a única razão pela qual este morto terá a lamentar, em definitivo, seu precoce desaparecimento.
O CAIS DO PORTO
Elsa era, então, uma adolescente pouco incomum, daquelas de rosto sardento e com muita acne.
A VOZ DO MORTO
Deo gratias! Até que enfim, algo agradável nesta narrativa. Prossiga, canalha!
O CAIS DO PORTO
Filha única, mas nada mimada, gostava de conviver com as amigas de sua idade, as colegas de classe, as filhas da amiga da avó, em cuja casa passava a maior parte do tempo, mais mesmo que no quarto amplo e confortável que tinha na casa paterna. Preferia o abrigo avoengo exatamente porque tinha a companhia das primas da mesma idade, um bando barulhento, alegre e alvoroçado que se reunia praticamente todos os dias para fazer verdadeiras expedições pelos baús repletos de roupas antigas muito limpas cheirando a naftalina, de misteriosos documentos e fotografias cuja antigüidade era denunciada pela tonalidade sépia do flagrante ou pelos estilos de cabelos e vestimentas usados pelos modelos. As fotografias mostravam uma gente estranha, embora familiar. A Zuca ficava horas com as primas tentando identificar quem era quem naqueles retratos. A própria avó. As tias. As bochechas coradas e o olhar brilhante e generoso do avô ilustre de quem todas elas só se lembravam do cheiro acre e forte do charuto que ele fumava com os amigos reunidos na biblioteca…
A VOZ DO MORTO
Ah, a biblioteca! Lombadas de livros alinhados nas estantes. Lombadas escuras, sombrias, misteriosas. Ah, o repositório das almas penadas, das vidas não vividas. Abrir as portas de madeira e vidro que escondiam aquele tesouro. Lembra-se do Tesouro da juventude? Você gozou na infância e na juventude aquele prazer inenarrável de folhear a coleção de capa dura, bebendo cada informação, se assombrando com cada aventura? Leu Os 12 trabalhos de Hércules, a adaptação do clássico grego por Monteiro Lobato, com caprichosas ilustrações, imagens que encantavam e puxavam pela imaginação antes do cinematógrafo?
O CAIS DO PORTO
Depois que o avô morreu, a biblioteca dele passou a ser o esconderijo favorito de Zuquinha e das primas. Elas costumavam abrir as portas de vidro que protegiam os volumes mais raros da coleção e os levavam cuidadosamente, como se fosse o sacrário empunhado pelo padre na procissão de Corpus Christi, sob o pálio, nas procissões. Em seguida, se sentavam sobre o tapete, com as pernas abertas e abriam o volume entre elas. Folheavam-no religiosamente contemplando a mancha negra das letras sobre o papel sem prestar atenção no que elas diziam. Era uma espécie de ritual de iniciação.
A VOZ DO MORTO
Perdão, leitor! Este cadáver, imobilizado pela paralisação do coração e pelo não funcionamento dos órgãos, todos eles, permite-se, pela primeira vez neste livro, ao prazer infinito de acompanhar, embora em breves cenas, a trajetória de um ser humano que significou uma graça, uma bênção na parte final de sua vida, aquilo que ele costumava chamar de um segundo tempo, quando, na verdade, não passava de uma prorrogação. Trata-se de um desvio da história toda da Patota dos sovacões solidários do recruta Pepé. Trata-se de algo certamente menos excitante e aparentemente até desconexo em relação ao que vinha sendo narrado. Mas é a pausa necessária para evitar que você desfaleça no ritmo vertiginoso dessa narrativa. E um momento de paz de cemitérios para um morto cuja exposição pública da própria vida e dos personagens dela não lhe tem sido até aqui permitido entre o falecimento propriamente dito e o sepultamento por vir.
O CAIS DO PORTO
No silêncio escuro, atro e úmido, no silêncio religioso e quase tumular daquela biblioteca, a menina Elsa sentia que tinha tudo de que precisava: paz e aventura, repouso e aventura, harmonia e confusão. Era como se a vida se resumisse àqueles momentos. Na adolescência, abandonou aquele refúgio, como um animal deixa a caverna para ir à caça. Foi à luta e deixou a biblioteca para trás, com os baús de roupas, fotos e papéis velhos e com as bonecas desengonçadas que mais amava. O engraçado é que quando encontrou João Miguel, por acaso, diante de um quadro numa exposição do pintor pop americano Roy Lichtenstein, ela estava em pleno revival dessas lembranças. A avó já morta, a casa habitada apenas por uma tia velha caduca. E ela se refugiava na biblioteca, como se nela encontrasse a calma que a vida adulta lhe tomara na infância.
A VOZ DO MORTO
Não dê um salto tão grande. Até chegar aí vai ser preciso revisitar a vida do traste, do indesejável, do empecilho, do muro que se ergueu para impedir que o futuro me sorrisse. De fato, não há como pular assim. É preciso ir passo a passo para o leitor não se perder no labirinto, ainda que os corredores sejam curvos e pareçam não ter fim. Não os labirintos de Borges, não a amarelinha jogada por Cortazar. Como dirá Bráulio Tavares, uma narrativa ao estilo “tire o fôlego do leitor”, à Jack Kerouac. Um romance beatnik.
O CAIS DO PORTO
Bonita, fresca, juvenil, Elsa, a adolescente de sardas e espinhas, com os livros na mão cruzava a calçada da avó quando foi pilhada pelo olhar inquieto do rapaz mais velho, bem vestido, que por ela passava.
– Foi amor à primeira vista – ele garantiu, a vida inteira, apesar dos percalços, dos mútuos enganos, das mentiras úteis.
– Ele estava saindo de casa. Eu fui a primeira que cruzei no caminho dele. Não resisti. Como ia resistir? Um homem bonito daqueles…
A VOZ DO MORTO
Também não precisa tripudiar. Está certo que o obstáculo para existir tem de ser construído. Mas é necessário fazer um pobre morto ser humilhado além da conta?
O CAIS DO PORTO
José Eugênio, o advogado bem-sucedido das multinacionais, a fonte permanente dos telejornais para assuntos técnicos de interesse geral, o manequim talhado para os ternos da moda, viu o futuro desenhado nos olhos gaiatos de Zuca. Previu os prazeres que encontraria em suas ancas. Percebeu a generosidade marota do sorriso dela. Sorriu-lhe com um ar que significava, simultaneamente, ambição, segurança e desejo. Elsa lhe sorriu de volta como se aquilo fizesse parte de um folguedo juvenil, como sorriria para um colega de classe, de sua idade, despertados os dois por um súbito desejo inconfessável, indescritível. José Eugênio era mais velho. E daí? O homem bonito que cruzou seu caminho era apenas um homem. E não lhe passou pela cabeça que ele poderia ser seu. Mas foi.
A VOZ DO MORTO
E como dói sabê-lo!