Site oficial do escritor e jornalista José Nêumanne Pinto

Literatura


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Quando Cabrinha desligava o motor da luz

A lembrança mais nítida de minha infância no sertão é que os dias eram extremamente luminosos e as noites recebiam uma espessa cobertura de breu. O sol tinha uma luminosidade ofuscante num céu cujo azul pálido, desmaiado, quase transparente, nunca vi reproduzido em parte nenhuma do mundo. Era mais fácil conviver com o calor abrasador e a secura do ar que com aquele brilho humilhante. De noite, quando eu era menino, a cidade ainda não tinha eletricidade de hidrelétrica, a luz de Paulo Afonso, como se dizia. Foi uma grande conquista, talvez a maior de todas, a ventura de girar o interruptor e ver a lâmpada acender, mas ainda mais ter uma geladeira, uma vitrola ou um simples rádio elétrico funcionando a qualquer hora. Até então, tínhamos de nos contentar com o “motor da luz” – um gerador a Diesel que o maquinista Cabrinha acionava às 18 horas e desligava às21. O desligamento era precedido de três sinais: um apagão rápido, depois dois, três, antes de, enfim, vir a treva.

José de Anchieta Pinto, com o motorista Zé Campina, exibindo orgulhoso o “jandaia”, vulgo “gemecê”, caminhão Chevrolet 1958

Meu pai, Anchieta Pinto, era caminhoneiro e me lembro bem do orgulho com que se exibia ao se deixar fotografar na frente de um Chevrolet (dizia-se “gemecê”) , que ele chamava de Jandaia. Viajava muito para o “Sul” – Rio e São Paulo – e mamãe, Mundica Ferreira Pinto, ficava sozinha conosco: éramos quatro, depois cinco, depois seis, sete, afinal. Assim que Cabrinha acionava o motor, o pároco, o cônego Antônio Anacleto, também ligava o alto-falante da matriz de Jesus, Maria, José. A característica era a Ave Maria, de Gounod. Em seguida, com sua voz característica e gozada, o vigário recitava um trecho em homenagem à Virgem Maria. Afinal, era a Hora do Ângelus. Mas era também a hora do acerto de contas dele com a comunidade. Era algo mais ou menos assim: “Seis horas, hora do Ângelus, hora da Ave Maria, hora de todos nós rezarmos contritos a Deus e pedirmos a intercessão da mãe de Jesus Cristo, Nosso Senhor, para nos redimir de nossos pecados. Hora de você, Cabrinha, cabra safado, vir consertar a difusora da igreja, pois eu já lhe paguei pelo serviço que você não fez”

Na verdade, Cabrinha era apenas o maquinista: ligava e desligava o motor. Quem cuidava dele para evitar os blecautes, dos quais, confesso, não me lembro, era o gênio local da mecânica, Zéu Fernandes, um mago dos motores e proprietário do único automóvel do qual me lembro bem àquela época: a “fobica” de Zéu. Nele fiz meus primeiros passeios de carro na estrada poeirenta e esburacada ligando a Fazenda Rio do Peixe, onde nasci, e a cidadezinha de Belém do Arrojado, vulgo Uiraúna, a légua e meia, nove quilômetros de distância, como minha mãe registrou no “Álbum do Bebê”.

Zéu Fernandes, o mago da mecânica e dono do primeiro automóvel de Uiraúna, a “fobica”, posa ao lado do motor da luz, que o maquinista Cabrinha acionava diariamente em Uiraúna

Na primeira infância, já morando na “rua”, como se dizia, quando o eletricista cobrado pelo padre desligava a luz e a treva descia, com meu pai viajando, íamos tomar a fresca na calçada da Rua Nova e mamãe, que tinha estudado na Escola Normal de Cajazeiras, dizia de cor versos de Castro Alves. Até hoje posso citar de cor trechos do Navio Negreiro: “existe um povo que a bandeira empresta pra cobrir tanta infâmia e cobardia e deixa-a transformar-se nesta festa em manto impuro de bacante fria. Meu Deus, meu Deus! Mas que bandeira é esta que impudente na gávea tripudia? Auriverde pendão de minha terra, que a brisa do Brasil beija e balança, estandarte que a luz do sol encerra e as promessas divinas da esperança, tu, que após a guerra foste hasteada dos heróis na lança, antes te houvessem roto na batalha que servires a um povo de mortalha”. Lindo, não? E que ritmo maravilhoso! Atribuo meu ouvido de tuberculoso para a palavra a essas noites escuras em que a brisa não vinha, mas o calor era refrescado pelos alíseos do mar da Bahia nos ritmos dos versos de Antônio Frederico, que morreu tão moço, coitados de nós, que perdemos tanta poesia! Considero “que a brisa do Brasil beija e balança” o mais lindo verso da língua portuguesa, que me perdoem Camões e Pessoa! E até hoje acho que o baiano foi o maior poeta brasileiro de todos os tempos. Lembro-me também que mamãe dizia O livro e a América – “criado pelas grandezas, pra crescer, criar subir” etc. Não há espaço para citar o poema todo.Também teria de recorrer ao livro: não me lembro dele como do Navio Negreiro. Mas me recordo ainda bem que achava muito engraçado quando ela recitava: “lá brada César morrendo”. E a cena trágica do assassínio do imperador romano lembrada pelo poeta era substituída na minha memória infantil pelo louco Labrada, que era fanático por automóveis e andava a pé como se estivesse dirigindo um, reproduzindo com a boca, a língua e a garganta os ruídos do motor e torcendo os braços como se dirigisse ou passasse marcha. Labrada era o contínuo do cabaré de Cirilo Félix, que tocava na sua casa de putas um fole de oito baixos comandando um conjunto tosco intitulado Cirilo Félix e seus cabras da peste, uma evidente homenagem ao maior sanfoneiro de oito baixos da época, Abdias, líder de Abdias e seus cabras da peste. Sabia que uma puta se chamava Escurinha e era negra, claro. Mas esse não era um assunto para crianças.

Os sete filhos de Mundica Ferreira Pinto: José Nairton, José Noaldo, José Neudson, Nicéa Mary, Mundica Ferreira Pinto, José Nilton, José de Anchieta Filho e José Nêumanne

Ainda era um menino bobo quando papai resolveu aventurar-se nos negócios e abriu uma sorveteria num ponto na Rua do Comércio, defronte ao mercado. Era uma operação comercial obviamente ruinosa, pois papai nunca tinha feito um picolé na vida e não havia eletricidade permanente. Ele teve de importar um sorveteiro de Cajazeiras, Ezequias, e montar um conjunto de gerador e dínamo a Diesel para manter a consistência e a temperatura dos sorvetes. Meu tio Raimundo, médico formado em Recife, sugeriu o nome em homenagem a um lugar muito pouco frio, Alabama, o Estado sulista americano, e o nome pegou: Sorveteria Alabama. Mais do que dos sorvetes de Ezequias, que eram bons, mas não havia uma variação muito grande de sabores, talvez pela escassez de oferta de matéria-prima nas feiras de domingo, lembro-me da “radiola”, uma vitrola enorme que ficava no meio do salão. Miltinho cantava “cara de palhaço, pinta de palhaço” e eu achava engraçadíssimo porque “pinta”, para nós, era o órgão genital masculino, vulgo pênis. Havia também um long playing que o magnífico pianista e intérprete americano Nat King Cole gravou para o público latino-americano, cantando em espanhol e até em português. É um disco maravilhoso e desde sempre aquele negro simpático com chapeuzinho é meu cantor favorito.

Campina Grande, Paraíba. Foto de Ubiracy Vieira Veloso

Já estava em plena adolescência quando foi adicionado ao repertório da sorveteria (que, na era de Paulo Afonso, sob a direção de Nozinho, passou a se chamar Sorvelanches Canaã) o LP O inimitável, de Roberto Carlos – “de que vale tudo isso se você não está aqui?” Mas aí o negócio de sorvetes de meu pai já tinha derretido e eu me mudado para Campina Grande para estudar no Instituto Redentorista Santos Anjos. A inocência da infância ficou boiando no ar na companhia das mensagens sonoras que Peta lia antes dos sucessos musicais que tocava até o motor da luz ser desligado.


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A mesma chanchada, com outros canastrões

Na Revolução de 1930, dizia-se antigamente, a Paraíba entrou com o cadáver (de João Pessoa), Minas Gerais com as tropas e o Rio Grande do Sul ficou com o poder (Getúlio Vargas). Nesta peça teatral A Manha do Barão, o cadáver é gaúcho, mas não se trata de uma retaliação ou de uma vendetta tribal e, sim, da reencarnação da alma de Aparício Torelly, ou simplesmente Apporelly, o combativo humorista sulino que atazanou os espíritos autoritários no começo do século 20. É desta reencarnação de Apporelly que trata o texto teatral de Ipojuca Pontes, o não menos combativo jornalista, dramaturgo e cineasta paraibano, que vive há muito tempo no Rio de Janeiro. Para esta reencarnação ser adequada, e é, era preciso que corpo e cavalo de macumba tivessem algumas características comuns e afinidades notórias. E têm: Apporelly e Ipojuca se assemelham mais do que faria supor apenas levar em conta seus nomes fora do comum. Ambos desenvolveram, ao longo de sua vida, um instinto natural para auscultar a alma humana no que ela tem de mais sórdido e mais sublime. Esse instinto os leva a rejeitar o ridículo, tido por muitos como inevitável e por alguns até como lugar comum. Autor e tema recusam pratos feitos e gostam de entrar na cozinha para saber como são preparadas as refeições a serem servidas ao grande público: nesta metáfora culinária, o comunista Apporelly, que se comprazia em denunciar a estúpida nudez real, e o liberal Ipojuca, que adora rasgar desbotadas fantasias ideológicas, são comparáveis com agentes da vigilância sanitária que descobrem e combatem ratos fugidos do porão e escondidos entre panelas, abrigados no calorzinho da pasmaceira generalizada e da inércia dos fracos, que os fortes incentivam e financiam. No Brasil de Vargas, o Barão de Itararé, pseudônimo adotado como uma lembrança permanente das glórias falsas de uma batalha fictícia, era a consciência crítica do “puxassaquismo” oportunista, o rebenque em riste, pronto a expulsar os vendilhões da frente dos sepulcros caiados, territórios dos coros do “amém, sim, senhor”, expressão favorita do Brasil governado pelos donos dos cavalos amarrados no obelisco. No País de Lulinha da Silva, a pátria do “nunca antes”, onde o sono dos nababos, assegurado pelo financiamento público à privada financeira, não é perturbado pelo ronco da barriga dos pobres, que têm garantido proteína à mesa e um picadeiro mambembe de muito mico e pouco siso, Ipojuca brada no deserto. Sitiado pelos beneficiários da farra generalizada, que não se cansa de fustigar, queimado pelo sol tropicalista e apontado como se fosse o capeta para os que babam na barba divina de Marx e embebem de lágrimas o dólmã de seu profeta Fidel, o autor deste monólogo feliz faz bem em ressuscitar a manha e os aforismos do antecessor, reconstituindo para o leitor/espectador meio século da atribulada bagunça nacional. E o faz bem porque recupera a graça, a irreverência e o humor corrosivo do Barão num texto leve, fluído e de facílima assimilação, todo tecido nas tiradas do inimigo da “ditabranda” de Getúlio Vargas. À luz das mazelas atuais, em que o peixe da imoralidade pública é vendido na feira livre da falsa ética, Ipojuca convoca o fantasma do Barão para ele deixar claro que a chanchada de ontem é a mesma de hoje, só mudando os canastrões que, em vez do “amém, sim, senhor”, se louvam no “tá tudo dominado, companheiro”.
É ler e conferir.


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O brilho da ribalta, por trás do refletor

É possível dizer de José Eduardo (Zuza) Homem de Melo que, mesmo tendo ele abandonado há muito tempo o contrabaixo, o instrumento nunca o deixou e até hoje o acompanha nas múltiplas atividades que exerceu e ainda exerce na área musical, sem mais percutir suas cordas. O contrabaixo é o responsável pela base rítmica sem a qual nenhuma execução musical consegue se manter harmônica: sem ele se instauraria o caos no universo de melodias, refrões e improvisos das bandas de jazz. Como chefe da mesa de som da TV Record na época dos grandes festivais e musicais; apresentador de um programa que se tornou ícone da programação da radiodifusão contemporânea no Brasil; produtor de festivais de jazz; crítico na imprensa; autor de ensaios sobre movimentos importantes da música popular brasileira; programador de temporadas de música em bares e restaurantes da moda; e organizador de trilhas sonoras para música ambiente, este paulistano simpático e de fala mansa se tornou uma figura capital para a compreensão e a melhor fruição do que se fez de musical no País.
Descendente de um clã de cafeicultores paulistas, herdeiro de um título de barão, contemporâneo da boêmia dos anos 40 e 50 na Paulicéia Desvairada, nosso protagonista não deixou dissipar nas nuvens de cigarro nem nos vapores etílicos das boates célebres de seu tempo de juventude os sons que produziu e, sobretudo, ouviu. Mas os incorporou e retransmitiu com tais empenho e competência que um amigo o apelidou de “o homem que tem música nas veias”, epíteto utilizado para intitular seu programa de sucesso no fim da tarde na rádio nos anos 70 e 80 do século passado e espécie de marca registrada com a qual passou a carimbar todos os trabalhos aos quais aporia sua assinatura de prestígio. A marca voltou agora na forma de título de livro, gênero no qual não é jejuno, pois já andou reunindo no formato depoimentos dos principais participantes da bossa nova e escreveu um compêndio muito interessante narrando fatos ocorridos nos bastidores dos festivais, que freqüentou como técnico de som. A diferença desta vez é que ele aparece com um coquetel de sabor original, uma fusão, para usar o jargão musical que domina. O livro que acaba de lançar mistura reminiscências de uma longa e profícua experiência de vida em torno de grandes astros do universo musical com ensaios para os quais contribuem anos de aprendizado na arte de tocar, ouvir, produzir e programar discos, espetáculos e outros eventos sonoros.
O leitor deste seu novo livro será apresentado aos mestres do jazz que povoaram a cena nova-iorquina nos anos 50. Como aluno de contrabaixo de Ray Brown, um dos maiores gênios do instrumento, Zuza viu, ouviu e às vezes até conviveu com os maiores instrumentistas e cantores daquele tempo. As lições que lhe trouxe esse aprendizado são ministradas de forma leve e agradável, num estilo que flui como prosa à beira do fogo, para o leitor interessado ou para o simples curioso. As aulas com Ray Brown e as conversas com marcos da música americana, como o trompetista Dizzy Gillespie, apenas para dar uma idéia de como são frondosas as fontes em que o autor do livro bebeu, servem de base (e aqui volta a metáfora do contrabaixo) para as análises minuciosas feitas pelo crítico dos temas que aborda. Estes podem ser as orquestras que animavam os espetáculos dos cassinos brasileiros, antes de o jogo de azar ser proibido no governo Dutra, aqui mesmo no Brasil, ou as vicissitudes dos líderes de banda na Alemanha nazista para conviver da maneira possível com a truculência dos esbirros de Hitler.
As lembranças e o conhecimento musical, acrescidos do estilo jornalístico vigoroso que privilegia os fatos importantes, servem também de apoio para o autor traçar o perfil de instrumentistas lendários, caso do chorão Jacob do Bandolim. Zuza resgata com carinho, mas sem pieguice nem protecionismo, a virtuosidade e os detalhes do comportamento do homem por trás do instrumento. Ao reproduzir cartas do músico para um amigo cantor, seu maior confidente, revela as dúvidas, anseios e aperreios de um ícone da música brasileira, cuja carreira foi prejudicada por uma série de tragédias pessoais, que ele lamenta num apurado estilo literário, inesperado, surpreendente até, num virtuose musical. Não escapam ao autor, que os repassa ao leitor, detalhes incômodos, caso da inveja que o perfilado sempre destilou do sucesso de um competidor, Valdir Azevedo, também marcado pela tragédia: este teve um dedo decepado por um cortador de grama.
Na qualidade de produtor de shows da TV Record, em seu auge, nos anos 60, Zuza teve na vida a oportunidade de trazer para o Brasil grandes nomes da canção internacional, artistas do quilate de Nat King Cole e Sammy Davis Jr. O relato dos bastidores da contratação destes intérpretes é um capítulo à parte na leitura instrutiva e divertida deste livro em que o ofício do autor passa a ser uma oportunidade para o leitor ter acesso ao brilho da ribalta, por trás do refletor, no negócio do entretenimento.


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A peleja do trio pé de serra contra o forró eletrônico

O paraibano Antônio Barros é um ídolo da música regional junina no Nordeste: compôs mais de 600 canções, muitas das quais foram sucessos absolutos de intérpetes como Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, Jackson do Pandeiro, Trio Nordestino, Três do Nordeste e Ney Matogrosso (Homem com agá). Mas isso não evitou que protagonizasse um episódio no mínimo contraditório para um artista de sua importância: foi contratado para abrir o show cuja atração principal era a banda Cascavel, da qual ele, sua parceira e mulher Cecéu e a filha dos dois, a cantora Maíra, nunca ouviram falar. No entanto, a cidade de Aroeiras, no interior da Paraíba, estava em polvorosa com a chegada da banda e ele recebeu o cachê e instruções rigorosas para deixar o palco assim que a banda chegasse. Ao fazê-lo, testemunhou o frenesi histérico com que a atração principal da noite foi recebida por seu público. O fato marcante registrou a transição do forró de pé de serra, cultuado por ele e outros grandes artistas, como Santanna Cantador, Flávio José, Nando Cordel, Dominguinhos e outros, para o forró eletrônico, produzido no Ceará.

Chico César e Richard Galliano

Pinto do Acordeon

Dominguinhos e Richard Galliano no Parque do Povo

Capitaneadas por um empresário pra lá de bem-sucedido residente em Fortaleza, bandas com instrumentos eletrificados e nomes semelhantes, formadas por instrumentistas anônimos, todos funcionários do mesmo patrão, dominam a programação musical das emissoras de rádio e televisão e reinam absolutas nos palcos do interior do Nordeste nas festas juninas. Manoel Gurgel, o imperador do forró cearense, se dá ao luxo de propor parcerias aos grandes compositores regionais, numa tentativa de cooptá-los, da mesma forma como faz com programadores de emissoras de AM e FM em praticamente todas as cidades dos nove Estados nordestinos. Mas pelo menos nisso ele ainda não obteve êxito.
Ao contrário, os representantes da música regional junina autêntica no Nordeste começam a reagir contra a invasão do forró eletrônico. E acabam de encontrar um aliado absolutamente inesperado… na Suíça. Tudo começou em Patos, no sertão e no meio do mapa da Paraíba, cidade onde se diz que se pode fritar ovos no cimento da calçada, tão quente se faz presente o sol por lá. Pierre Landolt, herdeiro de um grupo multinacional de índústrias farmacêuticas, se instalou em sua zona rural, onde estabeleceu uma fazenda para criar bovinos, ovinos e caprinos. Com os peões instalados em sua propriedade, ele aprendeu a amar os trios de forró de pé de serra formados por sanfona, zabumba e triângulo. E os apresentou a seu amigo cineasta Bernard Robert-Charrue, que, ciceroneado pelo casal de dançarinos de forró Rilávia Cardoso e Ajalmar Maia, fez o longa metragem Paraíba, meu amor, cujo título foi inspirado na canção homônima de Chico César, nascido um pouco além de Patos, em Catolé do Rocha, nas proximidades de Brejo do Cruz, berço de Zé Ramalho.

Chico César e Aleijadinho de Pombal

O cineasta suíço registrou em imagens coloridas o inesperado encontro do acordeonista de jazz francês Richard Galliano, elevado ao panteão dos maiores instrumentistas da Europa, com o sanfoneiro pernambucano Dominguinhos, herdeiro reconhecido pelo Rei do Baião e herói do europeu. O duelo entre o jazzista e o forrozeiro se deu no palco principal do lugar onde se realiza o que se chama “o maior São João do Mundo”: o Parque do Povo, em Campina Grande. O francês também acompanhou Chico César na canção-título e contracenou com dois sanfoneiros paraibanos, Pinto do Acordeon, que mora em João Pessoa, e Aleijadinho de Pombal, cidade que fica entre Patos e Catolé do Rocha.
Concluído o preito cinematográfico ao forró autêntico, em plena temporada de resistência contra o forró eletrônico de Manoel Gurgel, o resultado foi apresentado em Karlsruhe, na Alemanha. E com tal êxito que está sendo prevista ainda este ano uma “noite do forró”, no Festival de Jazz de Montreux, na Suíça, com os protagonistas do documentário. Um dia depois de o filme ter sido lançado no Cine Bangüê, no Espaço Cultural José Lins do Rego, em João Pessoa, todos estes artistas populares se reuniram com mais 50 forrozeiros na estréia do filme no auditório da Federação das Indústrias da Paraíba (Fiep), em Campina Grande. Para lá acorreram Flávio José, apontado por Dominguinhos como seu herdeiro; o patriarca Antônio Barros com suas Cecéu e Maíra; Santanna Cantador, natural de Juazeiro de Padre Cícero e com um timbre muito semelhante ao de Gonzaga; e outros astros do forró de pé de serra, para os quais a vulgaridade do duplo sentido pornográfico das “bandas” eletrônicas (como a Calcinha Preta) não é somente uma questão de decência, mas de sobrevivência.

Bernard Robert-Charrau, ladeado

por Ajalmar Maia e Rilávia Cardoso

O filme de Charrue não tem a qualidade do documentário de Wim Wenders sobre o resgate da música tradicional cubana graças ao espetáculo produzido pelo guitarrista americano Ry Cooder, Buena Vista Social Club. Mas pode ser que ele venha a se tornar no ponto de partida para o resgate da mesma autenticidade que o autor da trilha sonora de Paris, Texas evitou que se perdesse no Caribe, impedindo que o forró de pé de serra seja sepultado no sertão pelo comercialismo urbano das bandas de Manoel Gurgel.


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“O poeta do incômodo brilho da jaça”

Pedro Galvão não é poeta de se abrigar nos confortos da lisonja e na passividade da contemplação: seu verso, longo ou curto, nervoso ou ritmado, um tanto apocalíptico, um tanto fotográfico, mais garimpa a jaça que o brilho geométrico e ofuscante do diamante lapidado. Na condição de fazedor de poemas, diz-se amador, embora pareça mais sê-lo no exercício profissional competente, e como tal reconhecido em Belém, São Paulo, Rio e Bahia, de publicitário. Este é pago para tecer loas, vender produtos, cativar ilusões. Aquele paga para berrar a insignificância da vida, o legado inexorável da morte, a podridão em que o belo fenece, o mau cheiro das cloacas onde a lama desliza, espessa e mole, a metáfora da qual não dá para fugir, a imagem na qual tudo se decompõe. O executivo da propaganda busca nas horas úteis do dia a fagulha do gênio que ilumina na alma do comprador o desejo do consumo do bem, do serviço ou da idéia, particular e genérica, da iniciativa, do empenho e do engenho. Este é permanente: almoça e janta, se barbeia e sai, ama e rejeita, abraça e trai. O amador bissexto, não: este, em vez de se erguer, cai e chafurda na vida o que ela tem de sórdido e sublime, o paladar refinado dos melhores vinhos e as fezes pútridas em que toda a gastronomia se consome. O vendedor de slogans, frases, lemas e palpites se compraz na ordem e se realiza no gozo do fátuo que se torna essencial: o supérfluo que vira salário, o suor do rosto do salafrário. O comprador do inútil e inconsútil desprazer de se desfazer em bolhas de ar recorre à desordem, recolhe os retalhos, tritura o lixo orgânico que se dissolve no ar, por ser sólido e vulgar, sangra o infinito, arranha a dor das mãos vazias. Mãos presas à bateia na qual vale mais a areia que a pepita, mais paga a saga que o peso do raro minério vão bamburrado. Pernas cambaleantes sobre o precipício afundam na areia movediça ou simplesmente se deixam suspender no ar do último andar do último edifício, a margem de todo precipício.
Pedro Galvão é um poeta incômodo e incomodado, lida com as palavras como se elas fossem a ponta rombuda do bisturi cego ou a lâmina enferrujada do canivete que a velha prostituta da piada de salão guardou para dar à jovem clientela na velhice. No vôo de Sérgio Galvão, “todo o insuportável problema de viver”. Da mesma forma, a garça urbana, sem graça e feia, pobretã, na água suja da praça, mendiga e pesca a própria desgraça, como os outros pedintes bebuns da mesma praça, o mesmo cansaço da entrega da carcaça, “já sem vôo de vôo” e a companhia solícita e solitária do cão vagabundo correndo, fugindo da praça.
Como o profissional competente da comunicação burila lemas e encontra palavras-de-ordem para conduzir o consumidor entre as prateleiras, fazendo-o deter-se num bem, num serviço ou numa missão entre tantas embalagens, o poeta impenitente e intrometido atravessa a vida vã com a ponta fina e fria de seu punhal e o corte anguloso de sua visão penetrante. “A noite é longa e longa a madrugada” é o verso final de seu poema sobre o fogaréu nas ruas de Paris em novembro de 2005. Ele captura o invisível e revela o indizível no fecho de Dona Santa no cemitério de Viseu: “Ele esperou a filha envelhecer / e viveu dentro dela até morrer”. Ou exibe seu despudor fulgurante numa baladinha brega cantando a temeridade de ser feliz: “Vai, balada, me acompanha / e sem medo da pieguice / diz-lhe: amor de minha estranha / e tão poética vísce-/ra: – Amor do meu coração”. Sim, a poesia de Pedro Galvão é víscera, entranha e músculo. É isso e mais: o relato da volta do outro Pedro, o velho, o pai, indo para casa pelas ruas e becos de Belém, sua Belém paraoara; a recepção no céu ao colega Vinicius com todos “mijando em comum numa festa de espuma”; a constatação simples, despojada, despudorada de que “esta mulher, viva em meus braços, é poesia”; e mais, muito mais, pode crer, aposte, não desista.
Bissexto é uma ode à jaça onde brilha o diamante de uma obra primorosa como é “Vitória, em silêncio”, na qual a impotência humana diante dos mistérios da doença da musa viva e imóvel em seu leito definitivo se expressa numa linha desesperada e sintética, capaz de resumir a comunicação sigilosa e imponderável entre o humano e o divino, aliás, a oração: “Então falo com Deus. E Deus não fala”. Este soneto monolítico, esta reza indignada, este sacrifício à beira do tálamo é o resumo de Bissexto e da obra poética de Pedro Galvão: a revolta diante da necessidade e da impossibilidade do milagre imprevisto.


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O percurso cúmplice de viver

A contista Rachel de Queiroz é contundente como o que, sutil e cortante qual gume de faca para picar fumo nas feiras livres do interior do Ceará. Ela descreve a vida sem disfarce, sem dourar a pílula, com a impressionante frieza de um assassino profissional. Seus personagens são doces e perversos, agem com a cabeça ou com os bofes, chutam lata e atazanam sempre, não deixando o próximo em paz nem quando desencarnam, pois voltam sempre à vida, depois de mortos, só para azucrinar os acomodados. A prosa curta da romancista é escorreita e crua, sem subterfúgios nem tergiversações: adjetivos são dispensados sem cerimônia, prevalecendo a força dos substantivos comuns, enfileirados com argúcia e sensibilidade.
Os nomes próprios emergem de suas narrativas de impacto, que estalam na cabeça do leitor como bombinhas juninas, cada qual com sua missão sintática própria. Nada ali é gratuito ou demasiado – tudo tem função e lugar. Por mais fantástico que o conto possa parecer, ele ecoa familiar à atenção atada, infatigável, do leitor. Mesmo no minúsculo habitante da galáxia distante, recebendo a visita de curiosos gigantes terráqueos é possível encontrar a reação verossímil sem, porém, perda alguma da graça da surpresa, sem a qual a ficção, por melhor que fosse, se dissolveria. A narradora nunca se precipita, mas também não se atrasa à expectativa do leitor. Escritura e leitura andam lado a lado, como se passeassem de mãos dadas domingo no parque. Em cada frase que lhe surge, o leitor parece tropeçar no olho gaiato da autora, que se diverte, saltitante à sua frente, conduzindo-o por um labirinto que vai se iluminando à medida que ambos descortinam cada passagem do texto.
A narradora não tem piedade do soldado ferido que se arrasta, solitário, no terreno inimigo, mas também não se diverte, sadicamente, com a ingenuidade da adolescente que excita a imaginação de um batalhão. Nem se gaba de seus múltiplos dotes, seja ao manter o leitor preso na armadilha de um texto que galopa pelo tempo, contando a saga de uma mansão, teto de várias gerações de uma família, seja ao segurá-lo por um fio na reprodução do depoimento na delegacia de um rotineiro caso de preconceito e agressão. Nos dedos de Rachel, uma corriqueira partida de sinuca ganha os contornos épicos de uma batalha de vida e de morte, com seus laivos de glória e de perdimento.
Ei, você aí, do lado de fora da página, prepare-se para um percurso cúmplice e solitário sem os paparicos da lógica fácil da prosa de lantejoulas. A mão que o conduzirá por este labirinto nunca o guiará, mas lhe indicará todos os indícios de que viver é uma tarefa inútil, sórdida e sublime, merecedora de ser fruída com humildade, serenidade e inteligência. Vá, pois!

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