Site oficial do escritor e jornalista José Nêumanne Pinto

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No Blog do Nêumanne: Nascido para chefiar (texto e áudio).

Mauro Guimarães era um jornalista tão completo que morreu enquanto o ofício definha

Mauro Guimarães era pau pra toda obra em matéria de jornalismo. Devoto de Gutenberg, escrevia artigos sobre política com um estilo límpido e sem floreios. Seus textos críticos eram construídos argumento a argumento, informação sobre informação, palavra por palavra. Eram, sobretudo, caprichados. Caprichadíssimos. Escrevia como Ademir da Guia jogava: lento, calculista, sem firulas nem arroubos. Nada de sentimentalismos. Na medida, para não cansar nem seduzir o leitor com brilharecos ou citações desnecessárias.

Paulista de Jaboticabal, filho de seu Florindo, corretor de café, e de dona Maria, mestra-escola, começou muito cedo na profissão, carregando gravadores pesados da Rádio Paulista em dupla com um amigo que atravessou a vida inteira deste: João Batista Lemos. Não há memória de suas reportagens ou transmissões radiofônicas ou de televisão. Teve desde muito cedo aproveitado seu talento para liderar grupos e chefiar equipes. Como diretor de departamento, convivia no mesmo diapasão com os colegas e os patrões – Victor Costa, na Rádio Nacional e TV Paulista; Wallace Simonsen, na TV Excelsior de São Paulo; João Saad, na Rádio e depois na TV Bandeirantes; Roberto Marinho, na Rádio e depois na TV Globo; a Condessa Pereira Carneiro e seu genro, Maneco Brito, no Jornal do Brasil. Dirigiu, ainda, o jornalismo da TV Manchete, em São Paulo. E, nos anos 70, foi secretário de Comunicação do governo Abreu Sodré

A paixão pela crônica política, traduzida em artigos publicados nas páginas de Opinião dos jornais pelos quais passou, levou-o ao convívio amigo com poderosos gestores públicos. À mesa do restaurante do Four Seasons, no Hotel Othon, na Praça do Patriarca, em São Paulo, participou da conspiração tecida por Thales Ramalho e Roberto Gusmão para fazer de Tancredo Neves presidente da conciliação nacional no desmanche da ditadura, na eleição indireta do Colégio Eleitoral. Tancredo morreu antes de assumir, mas ele tinha acesso como poucos ao gabinete do sucessor, José Sarney.

Na época da consolidação empresarial da imprensa e dos meios eletrônicos de comunicação, poucos profissionais talentosos tinham como ele conhecimento de causa e respeito pela publicidade, pelo processo industrial e pela administração dos veículos. O toque dessa versatilidade tornou-o importante na consolidação empresarial da Rede Globo e na fixação da vocação pelo jornalismo da Bandeirantes. Dirigiu o Jornal do Brasil no ápice do prestígio do diário nas bancas e no mercado, ao lado de seu parceiro de todas as horas, Walter Fontoura.

Seu instinto de chefiar equipes e a amizade com titãs empresariais o aproximaram muito de Omar Fontana, da Sadia e Transbrasil. Com Mauro e Luis Salles na agência de publicidade dos irmãos, Alcides Tápias, da Febraban, e Rolim Amaro na TAM chegou a dar sua contribuição como executivo experimentado com o trato da notícia e da opinião.

Sem seu talento para chefiar nem organizar, segui-lhe a sombra carreira afora e, quando o negócio da comunicação começou a fraquejar, ele definhou, fiel a seu ofício até morrer em casa, em Santos, aos 80 anos, deixando Tereza Francisca, sua mulher da vida inteira, os filhos Marjan, Guilherme e Rodrigo e cinco netos. Tentarei viver de seu exemplo.

José Nêumanne Pinto

*Jornalista, poeta e escritor

Para ler no Blog do Nêumanne, Política, Estadão, clique no link abaixo:

http://politica.estadao.com.br/blogs/neumanne/nascido-para-chefiar/

Para ler o perfil de Mauro na coluna Mortes da Folha clique no link abaixo:

http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/02/1854655-mortes-jornalista-discreto-vagaroso-e-de-texto-perfeito.shtml

 

Para ler no Blog do Nêumanne, Política, Estadão, clique no link abaixo:

http://politica.estadao.com.br/blogs/neumanne/nascido-para-chefiar/

 


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No Blog do Nêumanne: De volta ao curral onde jaz meu umbigo

Lembranças do vaqueiro Eloi e seu patrão Chico, meu avô

O primeiro ponto de referência de minha vida foi a porteira do curral em frente à casa de meu avô materno, onde nasci. Afinal, foi lá que enterraram meu cordão umbilical. Desde muito cedo me contaram isso. Desde muito cedo me acostumei a tirar os paus que impediam a saída das reses e a entrada dos vaqueiros. Nunca tive um gibão, nunca uma perneira, nunca um bornal pra encher de farinha seca e pedaços de rapadura que amoleciam ao sol. O velho Chico Ferreira também não usava os trajes dos meeiros de confiança que apartavam seu gado vacum, levavam-no cedo para o pasto e, ao anoitecer, o traziam para ruminar no leito macio e quente de bosta de vaca. Ao que me lembre, meu avô, magro e míope, muito míope, usava camisas e calças de tecido rústico, sempre muito limpas, com cheiro de sabão de pedra, anis e goma de mandioca, usada para passá-las.

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Eu, gorducho, meio inseguro sobre coxas grossas e pernas bambas, acordava muito cedo para tomar meu café. Carregava com zelo um copo de vidro grosso no qual jorrava o leite gordo da teta que o dono ordenhava com calma, paciência e um amor que exalava por todos os seus poros. Ali era o pai de minha mãe, sua primogênita, o sogro de meu pai, seu sobrinho, ao mesmo tempo seu compadre, pois tinha sido padrinho de meu irmão um ano mais novo.

Foto de mamãe, meu tio Quincas e meu irmão Neudson na Fazenda Rio do Peixe, onde nasci.

Foto de mamãe, meu tio Quincas e meu irmão Neudson na Fazenda Rio do Peixe, onde nasci.

O líquido branco e morno já era despejado sobre o café, que dona Quinou Moreira, minha avó, havia feito na primeira hora, antes de a barra alumiar de rubro e o sol surgir luminoso, forte, quente e ameaçador. Quando meus pais se mudaram para a cidade, um vilarejo à época, o leite chegava em baldes e era fervido no fogão de lenha por minha mãe, Mundica, que o passava de tigela em tigela até atingir minha temperatura favorita, um pouquinho mais quente do que o leite mugido.

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Até seu Chico morrer, e eu tinha apenas 6 anos, contudo, meu desjejum era no curral, ao qual só tinha acesso depois de pisar o chão que ocultava os restos em decomposição de meu cordão umbilical. Isso era muito cedo e o dia se alongava, de forma preguiçosa e lenta, até que eu me juntava ao ancestral para a cerimônia mais esperada do dia. Sentávamo-nos os dois na calçada alta e esperávamos a chegada do rebanho. Ao som dos chocalhos, o sol desmaiava aos poucos, desmanchando-se em cor de sangue. Aquela longa conversa muda entre o velho e a criança se reproduz até hoje em minhas lembranças e em meus gostos.

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Às vezes, muito raramente, o ancião esticava o braço torrado da soleira na direção do ocidente e me mostrava nuvens carregadas ao perder de vista no horizonte:

– Veja, esse menino. Está chovendo em Souza. Pode ser que amanhã chegue por aqui. Estamos precisados.

Quando o dia morria, ouvíamos a voz da mulher, vinda da cozinha:

– Traga o menino pra dentro, seu Chico. É hora da ceia.

O idoso (e ele morreria tão cedo) sacava, então, sua peixeira e a amolava numa pedra, depois rapava uma rapadura que seus empregados traziam da Baixa Verde, sua propriedade no Rio Grande do Norte, onde nascera parte de sua prole, inclusive minha mãe. Despejava a rapadura rapada no prato fundo, acrescentava coalhada e soro. E os dois – o ancestral e parte de sua descendência – comíamos solenemente, em silêncio. Gostaria muito de um dia me lembrar da voz daquele homem tão íntimo de mim naquele tempo, mas ele foi e com ele levou a lembrança de seu timbre amável. Cruzava as pernas, sentava-me no colo e, antes de pitar um cigarro de palha, depositava a criança quieta no banco de madeira ao lado de uma mesa longa, à qual somente nós dois tomávamos assento. Minha avó comia na cozinha, de pé, ao lado do fogão, depois que os pratos dos homens estavam lavados, postos para a água escorrer logo ali ao lado.

Avós paternos Chico Ferreira e Quinô Pinto

Avós paternos Chico Ferreira e Quinô Pinto

Dormíamos em redes, ele no quarto com a mulher, eu na sala, insone pelo tique-taque do pêndulo do relógio de parede que dava os minutos e tocava as horas, contadas em algarismos romanos fora do padrão: quatro era IIII, não IV, como no império dos Césares se grafava. De onde algum desavisado teria tirado essa ideia de subverter o IV com que Marco Aurélio fazia suas contas na Antiguidade longínqua?

Quando chovia, contudo, eu dormia bem, embalado pelo ronco pesado de minha avó, as bátegas açoitando as telhas da casa antiga e o ranger dos armadores submetidos ao peso do velho se balançando para conciliar o sono. Uma vez, já adolescente, morto o avô, a avó surda e implicante ainda viva por um bom tempo, escrevi um poema sobre esta cena doméstica. É o único de todos os meus poemas que sei de cor. E tem o fecho mais comum, menos interessante, mas que me emociona até me levar aos prantos. O poema intitula-se “Na casa avoenga”. E termina com um verso súbito e impaciente: “eta emoção!” Só que o ritmo dos versos não lembra as noites de chuva e paz ou de ronco e vigília. Mas, sim, sempre, a chegada da boiada de volta ao curral, onde apodrece o cordão que me ligava ao ventre materno antes do parto complicado de que vim ao mundo.
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Não sei por que, vou morrer sem saber, talvez nasça de novo e ainda não aprenda por que, com mil e seiscentos diachos, como praguejava seu Chico Ferreira, me senti pessoalmente agredido pelos bondosos defensores dos animais, pelos burocratas do Estado do Ceará que, a poucos quilômetros do alpendre da casa onde minha mãe me pariu, proibiram a vaquejada. Um ministro do Supremo Tribunal Federal me fez a suprema desfeita de decepar um pedaço da infância, a lembrança afetuosa que tinha do pai de minha mãe, com os quais, ele e ela, compartilho feições bem parecidas. Senti-me um irmão distante de Aldo Rebelo quando ele escreveu, na mesma página onde rabisco linhas sobre política no Estadão velho de guerra e paz, um protesto assim lírico e manso como o meu contra a medida Segundo Aldo, esta matou o vaqueiro e o sertanejo, os heróis da saga da conquista dos ermos pelas patas das boiadas da Casa da Torre, dos Garcia d’Ávila, na Bahia.zn5

Lendo o noticiário posterior sobre o pretexto do conflito em torno da vaquejada, que teria ajudado a derrubar Marcelo Calero do Ministério da Cultura, que era contra, e da penada com que o presidente Temer a recolocou no altar da cultura popular, aproximei-me de novo de meu avô materno. E me senti de novo o bebê que Levina, filho de seu Natan, pesou na balança de pesar algodão de meus ancestrais e depois banhou pela primeira vez com sabonete Vale Quanto Pesa. Moradora de meu bisavô coronel, ela era mulher de Eloi, vaqueiro tresmalhado que chegou de Monte Santo, Bahia, onde o beato Conselheiro perdeu a vida para adentrar a lenda.

Ilustração de Marcos Pê

Ilustração de Marcos Pê

Quem sabe essa lembrança com gosto de leite recém-ordenhado no sertão do Rio do Peixe me consiga o perdão dos defensores dos animais, embora talvez seja impossível convencê-los de que, por mais que se esforcem, nunca cuidarão de uma rês ou uma rã tão bem como um vaqueiro do sertão. Seja como for, este idoso com o umbigo amarrado ao curral do avô sempre lhes será grato por terem eles permitido voltar à infância amputada por causa do episódio sem nexo nem razão da proibição da vaquejada. Tengo, lengo, tengo, lengo, tengo, ê boi.

José Nêumanne

José Nêumanne Pinto, poeta, escritor e jornalista, nasceu na Fazenda Rio do Peixe, em Uiraúna, Paraíba.

Imagens:
01. Ilustração de Marcos Pê
02. Recortes do vídeo da reportagem da TV Tambaú feita pelo jornalista José Vieira Neto sobre a vida do Jornalista e escritor José Nêumanne Pinto – 5 de maio de 2007.

 


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Na APL, falando de Chamie

Intervenção de José Nêumanne Pinto em reunião do Círculo de Leitura da Academia Paulista de Letras na noite da quinta-feira 26 de novembro de 2015

É uma honra para minha mulher, Isabel, e para mim atendermos a este convite do organizador deste Círculo de Leitura das quintas-feiras na Academia Paulista de Letras, Antônio Clementin, e compor esta mesa neste ilustre plenário ao lado dos acadêmicos Anna Maria Martins e Mafra Carbonieri, além da coordenadora das palestras, Raquel Naveira. Este estado de graça se amplia com o público seleto que veio para cá, no meio do qual peço vênia para destacar as presenças dos acadêmicos José de Souza Martins, lenda viva da sociologia brasileira, professor da USP e de Cambridge, e José Gregori, ex-ministro. Chamo a atenção de todos vocês para o fato de estarmos na Academia Paulista de Letras, à qual Mário Chamie, tema de nosso encontro, pertenceu, o que o honra e honra também a Academia pela dimensão da obra do grande poeta que o paulista de Cajobi foi.

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Vim para cá cioso da missão de falar de Paulicéia Desvairada, texto em prosa da última fase da obra de Chamie. Sou fá absurdo deste livro, mas já avisei tanto a Clementin quanto a Raquel, a Anna e a Mafra, que preferia falar mais genericamente do autor, com quem tive um convívio profícuo e proveitoso para lhes dar a oportunidade de conhecer alguns detalhes da vida e da escrita de Chamie. Ocorre que não sou crítico literário, mas repórter e cronista da vida política e tive a oportunidade rara de conviver, primeiro como fã e depois como amigo íntimo do poeta. Acompanhei a escritura do livro a ser debatido com a intimidade que eu tinha com Mário. Por isso mesmo, pedi licença a eles e agora peço a vocês para lhes dar algumas pinceladas que creio poderem ajudar na leitura crítica dele.
Para começar, venho lhes dizer que as duas pessoas das quais mais sinto falta ao tê-las perdido são meu pai e Mário Chamie. Este foi um intelectual que eu sempre respeitei muito e com quem tinha grande afinidade na discussão de temas estéticos, políticos e gerais. Conheci Mário em minha adolescência em Campina Grande, quando presidia o Cineclube Glauber Rocha. Nesta condição, fiz contato com cineclubistas de João Pessoa, capital de nosso Estado da Paraíba, onde Isabel e eu nascemos. Eles conviviam com a Geração Sanhauá de poetas que receberam a influência da Instauração Práxis, liderada por Mário – entre eles meu amigo Marcus Vinicius de Andrade, maestro, que ficou de vir aqui me ouvir, mas foi impedido por compromissos profissionais. Antes, contudo, de chegar a Mário mantive correspondência com um discípulo carioca dele, Armando Freitas Filho, cujo endereço me foi dado por Marcus. E estabeleci correspondência com Mário, eu em Campina Grande, um adolescente de 16 anos, e ele um poeta consagrado e maduro, morando em São Paulo e liderando um movimento poético de vanguarda. Só pra vocês terem idéia de como sou velhinho mesmo, ainda era o Mário de Lavra Lavra, no princípio de sua atuação conceituada na Poesia Práxis.
Então, quando travei contato com Mário por carta, ele me mandou Lavra Lavra e o livro todo me causou um impacto muito grande – em especial, o poema Arado. Peço licença para lê-lo para vocês

Arado

Ora, o início arar o que se ara. Áspero,
a lâmina fez seu corte exato. Revolve e limpa
o campo e seu lavrado. Na fome de seu aço
faz a fome do roçado. A pedra e o barro, a árvore
e a grama, o rio e a erva, a lâmina faz da terra a
sua receita: outra fêmea pronta para a seiva.

Este poema do Mário está, até hoje, presente em tudo que eu faço: nos meus artigos de jornal, nos meus poemas. Tudo que eu escrevo na vida tem a influência basal desse poema. Quando o li, o primeiro ímpeto foi escrever pro poeta. Armando Freitas me deu o endereço dele e, então, lhe escrevi. Uma ousadia de adolescente: eu só tinha dezesseis anos.

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Muito tempo depois, nos encontramos aqui em São Paulo e ele disse que guardou a carta que lhe escrevi e, então, ele teve a oportunidade de ver sua influência na minha obra quando nos reencontramos. Eu, adulto, ele mais adulto ainda (pra fazer um típico trocadilho do Mário, ele mais adúltero ainda). Aconteceu o seguinte: eu me apaixonei por Barcelona, escrevi 24 poemas sobre Gaudí e Barcelona e tive uma idéia de levar esses poemas para Francesc Petit, na intenção de que ele me conseguisse alguém que os vertesse para o catalão. Mas, para a minha surpresa, Petit, catalão, barcelonês, não falava nem escrevia em sua língua materna. Quem fazia isso era Inês, a mulher dele, brasileira de Catalão, Goiás. Então, pra vocês verem, sempre vivi realmente num circo, num parque de diversões de palavras e conceitos. Daí, o Petit me disse: “José, eu não entendo nada desse negócio de poesia, mas tem um amigo meu, o Mário Chamie, que sabe tudo. Pede pra ele fazer um parecerzinho pra mim de seus poemas. Mário demorou tanto pra fazer esse parecer, ou melhor, pra ler os meus poemas que eu escrevi um livro, Barcelona, Borborema, com 25 poemas sobre Barcelona e 25 poemas sobre Campina Grande, terra natal de Isabel e adotiva minha. Mário escreveu um posfácio consagrador quando aprontei o livro. Só então, percebe claramente que, vaidoso como ele eram fez isso porque observou todo o meu caminhar na poesia a partir desse poema dele, Arado.
Quando Mafra, Anna, Antônio Clementin e Raquel me falaram desta oportunidade de conversar com vocês, eu peguei um exemplar de uma belíssima edição comemorativa do centenário do lançamento num resgate maravilhoso feito pela FUNPEC-Editora, de professor Francisco moura Duarte, um craque da edição e amigo de Mário, lá de Ribeirão Preto. É uma edição caprichada. E agora mesmo, eu peguei a edição cuja capa é a cara do Mário. Pois ela não tem uma imagem, registra somente essas palavras: “Não resta dúvida de que Lavra lavra se tornará um marco na história da poesia brasileira. Atribuo-lhe grande importância. É uma realização. Finalmente chegamos à poética da nova concepção da poesia. Cada poema tem o mesmo tempo, uma linha de rigidez e de elasticidade . O leitor entra ali e gira como um manipulador da obra. As Geórgicas da era industrial. O autor desse texto é, ninguém mais, ninguém menos que Murilo Mendes e este grande poeta mineiro sabia da intimidade de Mário com Virgílio e em geral com a poesia clássica greco-romana.
A contracapa desta edição comemorativa é de outro gênio, maior até que Murilo, Gilberto Freyre. Por falta de tempo resumi o texto ainda maior do pernambucano, que foi colega de Mário no Conselho Nacional de Cultura. Eis o resumom que trouxe pra vocês: “A originalidade de Mário Chamie é plural. Não se repete. Tão diversa se apresenta. Nunca se banaliza. Seu verso incisivo é unicamente seu. Não apresenta parentesco com o de nenhum outro poeta. Através do Mário eu vim a conhecer o Abgar Renault, que escreveu uma coisa muito parecida sobre outro livro de Mário, A Quinta parede, muito posterior a Lavra Lavra. E Abgar escreveu o seguinte: “A Quinta parede oferece uma poesia sem antepassados nacionais ou estrangeiros. Não existe semente que a explique, é autônoma, é poesia absolutamente nova no universo poético brasileiro e, por igual, no conjunto estrangeiro de que tenho conhecimento.”
Quando Petit me reapresentou a Mário, fiquei bravo com este porque levou tempo demais para dar seu parecer. Depois eu o perdoei, até porque me deu tempo para escrever um livro. O livro foi editado, infelizmente não saiu como eu queria, porque eu preferia uma edição trilíngue, em português, castelhano e catalão. Mas saiu a edição é muito bonita com um trabalho gráfico de Petit sobre Barcelona e Campina Grande. E, aí, eu passei a freqüentar uma das coisas mais terríveis que já inventaram na história da humanidade, que era um ninho de cobras que se reuniam em torno da personalidade ímpar de Mário Chamie: Zé Rodrix, Evandro Ferreira, Humberto Mariotti, Aquiles Reis e o Magro, do MPB 4. Marcus Vinicius de Andrade, Marcos Rey e Cyro del Nero faziam parte dessa turma. Alguns deles, como ele, já viajaram sem volta. De todos Mário foi quem fez muita falta, como o faz meu pai, porque o poeta me parecia uma repetição mais velha de mim mesmo. Meu amigo Carlos Brickman costuma dizer que, na calada da noite, costumo ir ao Butantã instilar veneno na língua e o grande cuidado das pessoas que me cercam é evitar que eu morda a língua. Minha mulher, por exemplo, passa a noite com um olho aberto e outro fechado para evitar que isso aconteça. Ela adquiriu esse hábito com o pai, que é pistoleiro, e lhe ensinou a técnica de dormir fechando apenas um olho. Ela faz isso porque, se eu morder a língua, aí será morte instantânea. Mário teve uma grande virtude pra mim, que era ser temperamental, como muito bem disse Mafra, e, mais do que temperamental, ácido, corrosivo, impaciente e irreverente, como eu sou desde menino. Como dizia minha sábia avó paterna, dona Nanita, eu sou maluvido. Quem quiser saber o que significa pergunte a Isabel.
Acho que a grande fase do Mário é a fase final de sua vida, quando ele refinou sua impaciente irreverência. Apesar de também ser muito fã da fase inicial, da Instauração Práxis, acho mais importante a última, esta que se encerra com Pauliceia Dilacerada, A Palavra inscrita, Neonarrativas breves e longas… A respeito destes livros eu quero aqui contar uma intimidade pra vocês. Vou lhes fazer uma confidência: somente duas pessoas sabiam que um câncer havia condenado nosso poeta à morte, o que ocorreria dois anos depois da revelação feita pelo médico. Fomos Lina, a filha única dele, e eu. Neste período, um grupo de intelectuais, do qual nós fazíamos parte, freqüentava a Livraria da Vila, na Vila Madalena. Este mesmo grupo formou-se originalmente na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, na esquina da Avenida Paulista e da Rua Augusta, mudando-se depois para a Azteca, nas Perdizes. Esse grupo, do qual há pouco citei alguns nomes, divertia-se muito com os trocadilhos deles. Não sei se vocês conheceram essa faceta dele, muito provavelmente Anna Maria Martins se lembrará de pelo menos dois: “dos Mários o menor” (ele era bem baixinho) e “há Mários que vêm para o bem”.
Anna está me soprando aqui que ele detestava o concretismo. Pois é. Eu me lembrei muito do Mário quando assisti recentemente a uma das maiores canalhices, uma das maiores sabujices, que testemunhei alguém que se diz intelectual fazer na minha vida inteira. Isabel poderá lhes confirmar isso. No meio desta terrível crise moral, econômica e política, na qual o Brasil está afundado e a população inteira sofre com empresas fechando as portas e três mil trabalhadores perdendo o emprego todo dia, o poeta concretista Augusto de Campos foi ao Palácio do Planalto receber uma medalha e bajulou essas sra. Desdilma, aquela que, para nossa desdita, está sempre a se desdizer. No discurso de agradecimento, ele cometeu dois erros brutais mostrando desconhecimento da história e das instituições. Erros que José Gregóri, o mestre Cézar Benevides, que foi reitor da Universidade de Mato Grosso do Sul, e o grande José de Souza Martins, que deu aula em Cambridge, jamais aceitariam.
Primeiro, ele disse que Desdilma era uma heroína, à época da ditadura militar, por ter lutado pela democracia, fazendo, então, parte de seu panteão particular. O cara é um analfabeto. E mentiu. Na verdade, a guerrilheira Dilma Vana Rousseff Linhares lutou, sim, contra uma ditadura militar de direita, mas para implantar outra, de esquerda, não uma democracia. Isso já está plenamente estabelecido na historiografia por depoimentos mais confiáveis de seus antigos companheiros da luta armada. Fernando Gabeira tem escrito fartamente sobre isso. Franklin Martins, seu companheiro de guerrilha, partido e governo, reconheceu esta verdade elementar no depoimento ao documentário Utopia e Barbárie, que Sílvio Tendler dirigiu, teoricamente sobre a utopia ideológica, mas na prática óbvio material de propaganda da campanha de dona Desdilma em 2010. Embora na mesma ocasião, tenha dito outro absurdo quando garantiu que a ditadura durou menos graças á luta dele e de seus companheiros, como Dilma. Mentira! A barbárie autoritária, ao contrário, durou mais por causa da ação deles, por mais generosa e solidária que possa terem tentado ser. Esta é minha opinião. Quem não concorda tem todo o direito de discordar.
O segundo erro diz respeito aos dias de hoje. O poeta bajulou Desdilma, por uma insignificante honraria concedida por um governo agonizante, ao dizer que ela resiste bravamente a uma tentativa golpista de desalojá-la do poder. Na verdade, não há nenhum processo de impeachment aberto contra ela. E, se houver, é contemplado na Constituição e, portanto, faz parte do Estado Democrático de Direito. O imbecil nem sequer foi informado de que o primeiro presidente eleito pelo voto direto, quando a democracia ainda vivia sua fase infantil, digamos assim, Fernando Collor, foi impedido com a atuação do PT de Lula e do PDT brizolista em que Dilma militava. Collor, doido de pedra, foi substituído por Itamar Franco, tido como um “mineirinho” tolo, quando, na verdade, foi o responsável pela maior revolução social da História do Brasil, o Plano Real. Eu, que participei da derrubada de Collor, posso lhes garantir que impeachment não provoca nenhum trauma às instituições do Estado Democrático de Direito: naquela ocasião, tiramos um canalha, ladrão e louco do poder e o substituímos por um cara que entrou pela porta da frente na história do Brasil.
Ao ouvir, portanto, Augusto dizer tanta besteira, fazendo um discurso tão imbecil e tão calhorda, lembrei-me que Mário sempre me disse isso e eu dava um desconto sabendo da briga de juventude dele com os concretistas e de seu temperamento irado e parcial. Mas aquela nauseabunda solenidade palaciana mostrou que nosso poeta lembra mesmo a figura de Albert Camus pelo fato de ambos terem tido razão 30 anos antes de esta razão se configurar e se afirmar na História.
E sobre o Mário pesam algumas aleivosias, algumas calúnias, que se cristalizaram ao longo do tempo. Ao ser informada de que eu viria aqui lhes falar do velho amigo, uma amiga mais recente comentou em e-mail comigo: “pena que fosse malufista”. Malufista Mário nunca foi. Convivi com Mário dos meus 16 aos meus 64 anos e nunca ouvi dele qualquer elogio a Maluf. Por que esse engano prosperou? Por que essa calúnia é repetida incessantemente até por gente que não o conheceu? Vamos esclarecer: Mário foi secretário de Cultura da Prefeitura de São Paulo, escolhido por Reinaldo de Barros, nomeado pelo então governador Paulo Maluf. E, como secretário, foi o responsável por uma obra lapidar na gestão cultural paulistana: o Centro Cultural São Paulo. Não é uma obra monumental como o Theatro Municipal, mas uma obra para facilitar acesso do povo à produção cultural. Acusar Mário de malufista por causa disso seria equivalente a chamar Carlos Drummond de Andrade de fascista por ter trabalhado com Gustavo Capanema no Ministério da Educação do Estado Novo getulista. E certamente CDA não deixou de ser o grande poeta e o grande cara que sempre foi por causa desse trabalho.
A única coisa aproveitável daquela nojeira em palácio é que eu descobri que Desdilma não é disléxica como eu imaginava. Ela é concretista. No caso, com o perdão de quem aqui seja fã dela, é concretina.
Mas voltemos ao Mário. Seu humor corrosivo, com que detratava inimigos como os concretistas, se manifesta muito no que ele escreveu. Em Neonarrativas breves e longas há histórias imperdíveis que ele contava recorrentemente pra seus interlocutores. Por exemplo: voltando ao ódio que ele tinha pelos irmãos Campos. Eu não sei se alguém aqui já leu Neonarrativas. De qualquer maneira, peço licença para contar uma história protagonizada pelo irmão do Augusto, Haroldo. Mário era delegado em Olímpia, no interior de São Paulo e morava na delegacia. Durante alguns dias, foi obrigado a dividir a moradia com um roceiro preso por causa de uma desavença corriqueira com um vizinho de cerca ou de pasto. Pois ele contava, com a maior cara de pau do mundo – e repetiu em curtíssima narrativa impressa no livro (na certa para não perder muitas páginas com o desafeto) que teve pena do matuto e resolveu soltá-lo, mas, para isso, precisava de um pretexto. Pegou, então, um poema de Haroldo e lho deu para ler, prometendo-lhe liberdade imediata se o preso interpretasse o texto para ele. O homem, contava ele, desistiu antes de ler a metade. Preferia ficar preso. Então, essa história é uma história tipicamente do humor do Mário. Até no título: Doutor, prefiro a prisão.
Esta neonarrativa me lembra uma piada que eu fiz à época. Eu lhe contei que aprendi hebraico para ler o Gênesis no original, pois seria mais fácil do que ler a tradução do Haroldo.
No mesmo livro, há também uma história que ele nos contava com muita graça. Jorge Luís Borges tinha ganho a Bienal Latino-Americana de Literatura e, quando veio receber o prêmio, foi ciceroneado por Mário a pedido do Ciccillo Matarazzo. No almoço comemorativo no Fasano, no Conjunto Nacional, Ciccillo ficou muito entusiasmado ao receber um telefonema em que um assessor do general presidente da época agendando uma visita de Borges. Todos aplaudiram e este cochichou para Mário:
– Qué pasa?
Mário, então, lhe contou.
– Ah, que pena! No puedo. Mañana es el cumpleanos de mamacita – disse Borges, num fio de voz.
Tonitroante, repleta de palavrões, a voz de Ciccilo se impôs:
– Que merda! O presidente recebe o filho da puta e o cara não vai porque é aniversário da mamãezinha.
Ele conta também que ele foi encarregado de ciceronear em São Paulo o poeta italiano Giuseppe Ungaretti. Então, ele se dispôs a levar o mais rápido que podia ao diretor do Masp, Pietro Maria Bardi, patrício do visitante. Não conseguiu. Um não aceitava cumprimentar o outro.
– Aquele fascista, não.
E vice-versa.
A frase intitulada o causo.
É claro que o episódio com Haroldo não aconteceu. Contá-la foi uma sacanagem do Mário. Não sei se as outras aconteceram mesmo ou não. Para mim, não importa saber. Este tipo de prosa ao qual Mário se dedicou no fim da vida é muito borgiano. Acho que ele explorou uma vertente da literatura, que está se tornando uma grande escola literária a ser seguida neste século 21. Acho que os caminhos da produção literária no século 20 se bifurcaram. De um lado, Joyce é modelo para os experimentalistas dispostos a esgotar a linguagem, e foi neste lado que se engajou Chamie da Instauração Práxis. De outro, os borgianos que adotam o ilusionismo. Ao ler seus contos, fica difícil estabelecer ali o que é verdade e o que não é. É o caso do prosador idoso de Neonarrativas. E acho mais: Mário radicalizou além do Borges. Nós sabemos que tudo o que Borges escreveu era fantasia exagerando a realidade por conta de sua imensa cultura, muito difícil de ser acompanhada por gente comum, como vocês e eu. Quando alguém lê Mário não fica sabendo o que é verdade, o que é memória e o que é mentira ou simplesmente sacanagem dele. Não é ficção, não é documentário, não é crônica, não é reportagem, mas é tudo junto e misturado, como dizem os jovens hoje em dia.
E, por fim, o grande livro, que eu considero a obra principal do Mário é exatamente Pauliceia Dilacerada, que vocês estão discutindo aqui no Círculo de Leituras. Lavra Lavra é fundamental no meu fazer poética. Eu gosto muito de Caravana Contrária e até gostaria de lhes dizer alguma estrofe coisa deste livro fantástico, que Mário registrou em CD numa finíssima produção de nosso amigo comum Marcus Vinicius de Andrade. Mas acho Pauliceia Dilacerada uma obra-prima, a obra maior de Chamie.
A grande fixação do Mário era a palavra: ele era um feiticeiro da palavra. E o menino de Cajobi sempre foi encantado com São Paulo, com que se desencantaria ao perceber o que a obra dos engenheiros – Prestes Maia e Faria Lima – destruiu os sonhos modernistas de Mário de Andrade. Esse jogo de espelhos (a bênção, São Jorge Borges) em que Mário é Mário assim como Mário é Mário, acrescentado à ideia engenhosa do anagrama Máior para seu alter ego no livro. Mário Máior é uma sacada incrível de vaidade, talento e pose. Aliás, o alter ego se dividia, pois ele também se espelhava no outro Mário, que tanto admirou, apesar de ter conhecido, convivido e admirado mais Oswald, o outro Andrade modernista de São Paulo.
Ao escrever este livro, Mário encarnou Mário de Andrade. E assumiu a luta, o desespero e a angústia de Mário ao ver a cidade utópica modernista da Vila Quirial e dos Campos Elíseos ser destruída pela sanha dos engenheiros que deturparam o projeto do poeta na direção do Departamento de Cultura. De fato, foi absurdo. Eu amo muito São Paulo. Eu sou de Uiraúna, fui criado em Campina Grande, terra de Isabel, morei no Rio, sou Flamengo e Mangueira, mas já vivo aqui há 45 anos, tenho três filhos e um neto paulistanos e eu mesmo me considero paulistano, como o caipira de Cajobi que aqui homenageamos e o paulistano da Rua Aurora que ele encarnou no livro que comentamos. O texto é o registro da angústia de Mário e de Máior, do desmoronamento do sonho do modelo urbano que um teve e o outro viu ser destruído, como pode testemunhar Mafra Carbonieri, este outro caipira que adotou São Paulo, como Mário e como eu, que, vindo do sertão do Rio do Peixe, sou pau de arara.
Mas antes de chegar ao fim eu gostaria de fazer mais observações sobre a vida de Mário Chamie sem referências ao livro aqui comentado. Tenho um grande amigo italiano, Giovanni Ricciardi, tradutor para italiano de obras da literatura brasileira. Ele fez a que eu considero melhor entrevista que Mário Chamie deu na vida. E tenho uma ligação familiar com a Itália. Sou um sertanejo e tenho três netos lombardos. Muitos aqui, como Mafra, são descendentes de italiano, eu sou ascendente. Voltando ao Ricciardi, ele conta na entrevista coisas fundamentais para entender Mário e Pauliceia Dilacerada. Por exemplo: os pais de Mário quando chegaram da Síria falavam árabe e francês, não falavam português. Vieram para Cajobi e não encontraram a parente que pensavam que estava lá. Tiveram de se virar. Eram pessoas letradas e tiveram de plantar para comer. O próprio Mário, criança, arrastou cobra pros pés com a enxada, como se diz lá na terra de Isabel. Ele contou a Ricciardi que a mãe lia a Bíblia em francês. Ele não entendia nada pois usava o português com os amiguinhos de sua idade, mas sentia a cadência, o ritmo, a melodia das palavras da língua lida pela mãe. A língua de Rimbaud e de Voltaire, seus ancestrais literários. E ele incorporou essa cultura francesa. E incorporou também na intransigência seu orgulho de ser descendente de árabes. Isso está registrado num poema magnífico de Caravana Contrária:

Auto-estima

Sou Chamie, venho de Damasco.
Franco-egípcio
é meu passado.
Sírio sou helenizado.
Na intimidade, fazia um trocadilho vulgar: sou sírio, mas sou sério.

A respeito disso Aníbal Augusto Gama fez um poema muito bonito, tendo Mário como protagonista. O título é Encantador de serpentes do livro Herança Jacente. E há uma estrofe que reza:

Em Cajobi, escutou,
ao ângelus da tarde,
a mãe que lhe declamava,
em árabe, a história dos reis barbudos
que penduravam a harpa
nos salgueiros de uma escarpa.

Aqui pra nós, que versos, hein, Anna!? Se eu alguma vez tivesse feito versos bonitos assim nem cumprimentaria vocês.
A partir disso aí também arranquei um poema muito bonito dele – A natureza da coisa, de Horizonte de esgrimas e peço licença a vocês pra ler um trecho aqui já com o tempo estourando.

Amor é a força viva da dor.
Mas a dor de amor
é a força viva do amor,
sombra que morre sem passar,
sol que nasce sem se por.

Eu escolhi este poema para não deixar passar a impressão de que Mário não era capaz de lirismo. Era, sim. Quando soube que eu vinha aqui lhes contar de Mário, o poeta mineiro Affonso Romano de Sant’Anna, grande exegeta de Drummond, me escreveu: “aqui pra nós, esse Mário era um cara complicado, não era?”. Respondi ao amigo: “Era, não. Mário não era complicado. Era assim como eu, simples. O que ele era – e eu também sou – é encrenqueiro. Ou, como se diz em inglês numa palavra mais exata, troublemaker”. Eu sou assim, procuro a confusão: se encontro um grupo em paz, procuro criar ali um dissenso, uma cizânia, como se dizia no tempo da ditadura militar. Mas sou lírico. E Mário também. Este poema mostra o grande lírico que ele foi. Como este outro que vou ler agora:

Vamos poetizar o poema

Vamos poetizar o poema
e perfumar sua flor
que por dentro
do poema
a flor isenta.

Coisa pétrea
ou coisa seca,
vamos perfumar
essa flor
na placenta do poema
que a penetra como luz
que por dentro
se arrebenta.

A luz do poema
é a voz
que o poema inventa.
Vamos poetizar
essa voz
que a luz do poema
engendra.

O Mário tinha uma mania. Quando ele fazia uma coisa muito bonita, ele a anotava com aquela letrinha bonitinha que ele tinha e lia pra mim. Depois, suspirava e completava: “isso está tão bonito que não pode ter sido escrito por mim”. De vez em quando, banco Mário – e está apu Isabel que não me deixa mentir – e digo o mesmo. Mas até hoje não consegui ainda fazer para ela os poemas lindos que ele escrevia, não é, Isabel?
Mesmo já tendo ultrapassado os 20 minutos a que prometi me limitar a Anna Maria Martins, eu gostaria de tomar mais um pouco de seu tempo para lhes falar de facetas do Mário que não podem esquecidas. Quando eu vinha pra cá, meu editor, José Mário Pereira, insistiu muito comigo para que eu lhes contasse que um querido amigo dele, José Guilherme Merquior, adorava Mário. Procurei e encontrei uma citação ainda do tempo de Práxis, que acho que tem de ser lida para que se tenha uma compreensão completa da obra e da personalidade do poeta de Cajobi. Escreveu Merquior:
“Em seus livros, a linguagem experimental em vez de se comprazer nos ensinamentos gratuitos, dá sempre a palavra ao objeto”.
Antes de terminar, eu gostaria de fazer um registro sobre a jumentice brasileira, que mais atormentou nosso poeta. Um grande amigo comum nosso, o etimologista catarinense Deonísio da Silva, escreveu um elogio fúnebre muito bonito para Mário. E dele eu tirei um episódio revoltante que os dois protagonizaram. “Certa vez me retirei de uma banca de concurso numa universidade porque estava tudo combinado entre quatro dos cinco membros para ele perder a única vaga em disputa. Por ter sido secretário de Cultura da prefeitura da capital à época em que Paulo Maluf governava o Estado, sequer tocaram nos livros e artigos que comprovavam seu curriculum vitae. O resultado é que meu gesto desconcertou tanto os outros membros que não aprovaram ninguém e foi feito novo concurso”. Essas bestas causaram grande dissabor a nosso Mário, mas também enorme prejuízo aos estudantes. Uma filha e uma sobrinha minhas estudaram com Mário na Escola Superior de Propaganda e Marketing em São Paulo e o endeusavam como professor. Era, disparado, o melhor de todos, conforme o julgavam todos os alunos que passaram por suas classes na escola.
E, para concluir de vez, aí sim, vou ler mostrar para vocês um resumo de Mário no livro que contém sua poesia completa, Objeto selvagem. A capa é típica do bom gosto visual do poeta, casado a vida inteira com Emilie, libanesa de origem e mestra-mor do design no Brasil. Com ela teve a filha única Lina, que, embora muito parecida fisicamente com a mãe, era toda Mário. Clarinetista, professora, virou cineasta e fez uma obra-prima de completa originalidade, Tônica Dominante, na qual não filmou um roteiro de ficção nem fez um documentário, mas um filme-poema, baseado em A fábula de Anfion, de João Cabral de Melo Neto, e no Madrigal melancólico, de Manuel Bandeira.
Viro o livro e leio o poema da contracapa que resume tudo o que aqui conversamos:

Objeto selvagem

No espaço do campo, passa o homem e sua miragem.
No espaço da cidade, dorme o homem em sua passagem.
No espaço da consciência, gera o vírus a sua voragem.
Por todos esses espaços, de surda força indomável,
passa o espaço da palavra com a sua selva sem margem.
Na selva dessa paisagem, no centro de sua arena,
age a força do poema, meu objeto selvagem.

Puta que o pariu, como é bonito, como é completo, como é tudo!


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Posse na APH: Discurso de José Nêumanne Pinto

Discurso de José Nêumanne Pinto

na posse na Cadeira nº 2 da Academia Paulista de História

em 1º de julho de 2015

Recentemente, Isabel, minha mulher, ou melhor, a mulher de minha vida, me convenceu a movimentar pessoalmente meu Twitter, que é administrado por Cláudia Cordeiro, viúva do grande poeta Alberto da Cunha Mello e minha web designer. Fui, então, instado a escrever um resumo do que me proponho na rede social em questão e também na minha vida. Liberdade é meu ofício, escrevi. Anteontem convidei o poeta Paulo Bomfim para esta cerimônia, por telefone, e lhe contei isso. E ele me disse: “Que belo título!” Eu, então, imediatamente resolvi começar esta prosa com vocês por essa frase que resume tudo: minha vida, minha profissão de fé, minha ideologia, minha missão como comunicador na imprensa, no rádio e na televisão… Mais ainda: o que me proponho a fazer nesta Casa. Nada procurarei fazer entre meus queridos confrades que não seja lutar pela liberdade, ou seja, contra qualquer tipo de arbítrio, censura ou agressão a este direito fundamental sem o qual homem nenhum merece a denominação de sapiens.

Ruy Martins Altenfelder (vice-presidente da APH), Paulo Casseb (presidente do Tri8bunal Militar do Estado de São Paulo) Gaudêncio Torquato (acadêmico da APH), Ney Prado (tesoureiro da APH), José Nêumanne Pinto e Luiz Gonzaga Bertelli (presidente da APH)

Ruy Martins Altenfelder (vice-presidente da APH), Paulo Casseb (presidente do Tri8bunal Militar do Estado de São Paulo) Gaudêncio Torquato (acadêmico da APH), Ney Prado (tesoureiro da APH), José Nêumanne Pinto e Luiz Gonzaga Bertelli (presidente da APH)

No entanto, liberdade só não basta. Na vida e nesta Casa preciso assumir outros compromissos e expressá-los logo de saída desta tribuna. Se a liberdade é meu ofício, amo a verdade. Casei-me com a História antes mesmo de contrair núpcias com Minha Isabelescência, historiadeusa da Vila Buarque, baronesa da Borborema e madonnella de Campina Grande. Na verdade, flerto com a História há muito tempo e, neste curto prazo que tenho de 64 anos de vida, já tive oportunidade de cruzar algumas vezes com ela. Era um adolescente de 17 anos quando ouvi num ônibus no Rio de Janeiro a transmissão da visita dos astronautas americanos, representando todo o gênero humano, à lua dos namorados. Lembro-me também da sensação de ver a história acontecendo diante dos meus olhos, em real time, como se diz nestes tempos de devoção à cibernética e à língua de Shakespeare, quando acompanhei a paralisação das linhas de montagem das fábricas de automóveis e as assembleias de metalúrgicos grevistas no ABC paulista. Ou quando acompanhei com emoção incontida o julgamento dos militares argentinos, ocasião em que também entrevistei meu maior ídolo literário, Jorge Luís Borges, em Buenos Aires. A queda da ditadura com a escolha de Tancredo Neves para presidir a Nova República foi outra ocasião destas. Assim como a fatalidade da morte do escolhido e sua substituição na presidência pelo inesperado José Sarney. A sensação de estar sendo observado pela irônica deusa Clio me acompanhou ainda ao longo da primeira eleição para o posto mais importante da política brasileira, em 1989, logo depois de ter visto pela televisão a queda do Muro de Berlim, que eu tinha atravessado antes, na Estação de Alexanderplatz.

Evidentemente, isso não faz de mim um historiador, mas me torna um atento espectador da História, com alguma participação nela. Participei da História, por exemplo, quando meu pai no jornalismo, J. B. Lemos, foi encarregado por seu amigo Marco Antônio Coelho, preso no Doi Codi, de divulgar um documento em que eram descritos e desenhados os instrumentos da tortura a que ele e seus companheiros de prisão eram submetidos. A imprensa ainda estava sob censura, quando o Jornal do Brasil publicou meu relato, ao mesmo tempo em que Ewaldo Dantas publicou o documento numa edição inteira do jornal da arquidiocese, O São Paulo, e Boris Casoy o noticiou na Folha de S.Paulo. A entrevista que fiz com Miguel Arraes, ganhando uma eleição para o governo de Pernambuco depois do exílio forçado pela ditadura, faz parte deste relicário de memórias de momentos iniciados pela emoção de que fui tomado ao ver na revista O Cruzeiro a foto de Getúlio Vargas morto com um lenço branco lhe segurando o queixo, numa coleção que meu pai guardava com zelo em minha casa, na infância do sertão. Como o pânico que senti ao acompanhar passo a passo pelo rádio no trânsito congestionado da Marginal do Tietê, que os bandeirantes paulistas usaram como via para penetrar sertões adentro, a constatação dos atentados contra as Torres Gêmeas em Nova York, enquanto pensava o que aproveitar da entrevista que eu vinha de fazer com Fernando Henrique Cardoso na biblioteca do Palácio da Alvorada.

José Nêumanne Pinto discursa na posse na APH

José Nêumanne Pinto discursa na posse na APH

O amante de Clio não morre de tédio, vocês sabem disso melhor do que eu. Mas não estou aqui para tratar do que vi ou ouvi na vida, mas para cumprir uma missão mais difícil do que registrar a história. Proponho-me a resgatá-la. Como, vocês me perguntarão. A explicação do que pretendo me força a fazer uma digressão. Há uma semana, a sra. Dilma Rousseff, reeleita no ano passado para cumprir mais quatro anos de mandato, louvou a mandioca como uma conquista brasileira. Não propriamente uma peculiaridade nossa, como a jabuticaba, mas algo que conquistamos para usufruto e gáudio da humanidade. Nascido ao lado de uma casa de farinha, como Gaudêncio Torquato, como eu testemunha do funcionamento de muitas bolandeiras no sertão de minhas origens, a mandioca nunca foi para nós um elemento estranho. Minha avó materna, dona Quinou, me alimentou nas férias que passava na casa dela, onde nasci, com tapiocas (tão saborosas quanto as feitas por Maria Betânia Pimentel de Castro, minha sogra, tem feito no café da manhã lá em casa por estes últimos dias) e beijus de sabor tão inesquecível quanto as madeleines de que fala Marcel Proust em À La Recherche du Temps Perdu. Ainda assim, nem essas minhas idiossincrasias nem meu afeto pelo simpático Aldo Rebelo, ministro de Dilma e grande incentivador do culto – e não tanto do cultivo – à mandioca, me permitem interpretar a constatação presidencial como algo a ser encarado como mais de que uma nova patacoada de sua verve insustentável. No discurso em homenagem à mandioca, à bola de folhas de bananeira e às mulheres sapiens, seja lá o que for isso, a presidente me alertou para a necessidade de travar o bom combate da recuperação das qualidades da língua que minha mãe me ensinou a falar e a escrever nas noites quentes do sertão antes que a flor inculta e bela do poeta Olavo Bilac se transforme num erva daninha estúpida e feia.

Na condição de ocupante da cadeira de Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Melo, antes ocupada por Epitácio Soares, meu companheiro de redação no Diário da Borborema, na Academia de Letras de Campina Grande, e da cadeira de Augusto dos Anjos, antes honrada por Altimar Pimentel, na Academia Paraibana de Letras, sempre combati o populismo gramatical. Certa feita, o professor Ivan Teixeira, da USP, me lembrou que o Conde Almeida Garrett também costumava submeter advérbios a flexões de gênero quando critiquei o ex-presidente Luiz Inácio da Silva por ter criado o neologismo “menas”. Respondi-lhe que certamente Lula não se inspirou em Garrett para fazê-lo. Irreverência à parte, mesmo não tendo legitimidade acadêmica para fazê-lo, sempre reconheci que o povo faz a língua e, se não a fizesse, ainda hoje falaríamos o latim vulgar das feiras medievais, não tendo chegado ao português de Luís de Camões pela via do galaico-português. Mas acho necessário manter a língua canônica (palavra que prefiro a erudita, que me parece meio esnobe) para preservar os tesouros culturais nela expressos. Acho que a posição populista de corrigir erros gramaticais em textos escritos é excludente, pois impede o acesso do povo mais humilde e iletrado aos tesouros literários que pertence a todos – e não apenas aos letrados.

Por isso, peço que me permitam citar o excelente artigo de minha colega Rosângela Bittar no Valor Econômico de hoje, que acabo de ler, para esclarecer não apenas meu combate contra a bastardização da última flor do Lácio, se me permitem neologismo talvez tão inválido quanto o “menas” do padim Lula, mas também para chegar ao ponto que preciso lhes esclarecer sobre o bom combate da salvação de nossa história. Rosângela cita outra colega, Dad Squarizi, que milita há muito tempo na imprensa brasiliense travando a inglória batalha de tentar manter a graça e a glória da língua de Eça de Queiroz e Machado de Assis. Em resumo, Squarizi lembra que o erro mais elementar é o de grafia, o mais frequente é o da sintaxe, mas o pior de todos, o mais terrível, como ela diz, é o da falta de lógica, que aleija o argumento, o pensamento, o conceito. É nesse erro que deseduca que mais a mulher que pretende ser mestra de uma “pátria educadora” incorre. Os jornais evitam repeti-los, mas o blog do Palácio do Planalto insiste em manter os discursos da presidente incólumes com todos os seus absurdos, as suas grosserias e os seus barbarismos. Não perderei tempo em citá-los, tão repetidos eles são nas alocuções dela.

Prefiro aproveitar o pouco tempo que me resta indo “direto ao assunto”, como sempre prometo em meus comentários na rádio Jovem Pan e na TV Gazeta, em cujos noticiários faço comentários. No meio daquilo que o primeiro editorial do Estado de S. Paulo de hoje define como Festival de Besteira que Assola o País, o Febeapá, de Stanislaw Ponte Preta, pseudônimo de Sérgio Porto, dona Dilma acaba de cometer nos Estados Unidos equívocos mais grosseiros e daninhos à História do que idiotices como impor presidenta no lugar de presidente o são. Stalin costumava retirar inimigos como Trótski da iconografia da revolução russa. Os nazistas de Hitler queimavam toda a produção cultural que contradissesse sua ideologia. A Inquisição católica estabeleceu um index proibitorum para vedar publicações que considerava heréticas. Lula recentemente adotou esse tipo de postura ao negar que me conhecia, tentando desqualificar meu livro O que sei de Lula, editado pela Topbooks em 2012. Com isso, ele quis impor a condição sine qua non de conviver com o tema a quem quiser escrever sobre qualquer personagem. Ou seja, o cubano Leonardo Padura, que entrevistei para o Roda Viva, da TV Cultura segunda-feira, não poderia estar fazendo o sucesso que faz com seu magnífico El hombre que amava los perros, sobre o assassinato de Trotski por Ramón Mercader a mando de Stalin, porque não conheceu nenhum deles e nasceu depois de 1940, quando ocorreu o crime em Coyoacán.

O que Dilma acaba de fazer na Casa Branca e na presença de Barack Obama, que nada tinha que ver com o peixe, é muito pior do que isso tudo. Dilma submete a história do País que preside à ignorância, à dislexia e à falta de escrúpulos, atribuída à esperteza política, que são apenas dela própria. Ela se atribui com a faixa presidencial o poder de reescrever nossa História. Atingida pela delação premiada, figura jurídica válida do Direito Penal depois de lei que ela mesma assinou, ela resolveu desqualificar o delator, misturando tempos, conceitos e significados semânticos. Sobre isso Rosângela Bittar, citando Dad Squarizi, escreveu definitivamente melhor do que eu mesmo o faria. Ainda assim, tentarei retomar o tema para pô-los a par do caminho que quero fazer até a conclusão.

Para isso, peço vênia para submetê-los ao sacrifício de ouvir um raciocínio, se é que se pode chamar isso por esse nobre nome, dela. Ela disse exatamente o seguinte: “Eu não respeito o delator, até porque eu estive presa na ditadura e sei o que é. Tentaram me transformar em uma delatora. Eu resisti bravamente”. No dia seguinte, diante de Obama na Casa Branca, ela avançou no terreno movediço da história mal contada para comparar o digno, nobre e corajoso trabalho dos agentes da Polícia Federal, do Ministério Público Federal e do juiz Sérgio Moro com “algo um tanto quanto Idade Média”. Anteontem ela citou Joaquim Silvério dos Reis, execrado dedo-duro da Inconfidência Mineira, como antes já havia negado ao próprio ministro da Fazenda, Joaquim Levi, a condição de Judas Iscariotes, o delator bíblico do Cristo. Ontem ela se queixou de “vazamentos seletivos”. Promoveu uma “mistureba” absurda e abjeta, uma espécie de Xis tudo podre em que contou a história errada em vernáculo mambembe: a ignorância a serviço da impunidade e do pior tipo de marketing político. Rosângela Bittar bateu pesado, ao escrever: “Dilma jogou na fogueira de São Pedro, dia 29 de junho, sua biografia de presa política e torturada. Confundiu-se e confundiu. Misturou torturador com procurador, delação por tortura com delação como instrumento de justiça para chegar ao crime e aos criminosos”. Como diria Nélson Rodrigues, “batata”. E eu ainda diria mais: a candidata a madre superiora nos “ensinou” que Tiradentes equivalia aos petroleiros ladrões, políticos corruptos e empreiteiros corruptores, que se refestelam no chiqueiro do “petróleo” julgado na Lava jato. Ou que, ao contrário, esses réus, entre os quais ela e o padim Lula de Caetés podem vir a ser incluídos, é que são comparáveis ao protomártir da independência do Brasil.

Se essa senhora tivesse o mínimo respeito pelo público que a elegeu e paga seu sustento e pela história do país que governa e governará por mais três anos e meio, ela teria também mais sensibilidade para não misturar os alcaguetes das quadrilhas de traficantes com delatores que não tiveram a “bravura” dela por não terem resistido às humilhações e à dor física da tortura. Pessoalmente, peço-lhes licença para dizer que duvido dessa “bravura” toda, não por pensar que ela possa ter delatado. O que sinceramente acho é que ela tinha pouco a delatar, pois não foi uma combatente de mão armada, como alguns companheiros de guerrilha, mas uma simples “vivandeira”, que varria, lavava a roupa, fazia a comida e atendia a outras necessidades dos combatentes com os quais compartilhava os “aparelhos” em que todos se escondiam. Mas isso pouco importa diante do fato que somente uma pessoa desprovida de qualquer humanidade pode atribuir ao delator torturado o protagonismo da delação sob tortura. O que quero dizer eu já disse com todas as letras no comentário que fiz no Jornal da Gazeta de ontem: essa senhora preside esta República sem ter a noção mínima de que execrar incondicionalmente qualquer delator equivale a justificar a ação do torturador e, em última análise, a tortura. Misturar queima de bruxas na Idade Média com processo jurídico com direito de defesa só por temer as consequências do que for delatado é tão fora da lei que o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal e ex-relator do mensalão Joaquim Barbosa considerou, como escreveu em seu Twitter, um “crime de responsabilidade”. Ele escreveu e aqui está dito.

Mas foge à alçada deste discurso. O que quero dizer nesta posse solene é que assumo o compromisso também solene de tentar manter a história nos trilhos lutando contra toda a máquina de propaganda que nosso Estado distorcido e assaltado tenta descarrilar sob o patrocínio de uma chefe de governo absolutamente destrambelhada. Gostaria de poder fazê-lo na cátedra. Mas não tenho vocação nem experiência para tanto. Sou filho de professora. Minha mãe, Mundica Ferreira Pinto, formou-se na Escola Normal de Cajazeiras, no sertão da Paraíba. Também o é minha mulher, Maria Isabel Pimentel de Castro Pinto, e ai de mim se não me lembrar de usar o Pimentel, de vez que é o sobrenome da sogra, a também mestre-escola Maria Betânia, que veio de Campina Grande para me ouvir. Isabel está fazendo doutorado em história econômica na USP sob orientação de José Jobson de Arruda, autor de compêndios de História que ela compulsou no ginásio. Isabel tem testemunhado momentos de encantamento assistindo às aulas de Jobson. Ela não é a única. Ele é famoso no Brasil inteiro por sua atuação em classe. Eu a invejo porque testemunha isso. E o invejo ainda mais por não saber ensinar. Então, está fora de questão e é fora de propósito que eu venha militar pelo resgate de nossa história numa sala de aula. Também não posso exercer o sacerdócio de minha amiga e agora confreira Alzira Lobo instruindo futuros doutores em História em cursos de pós-graduação. Falta-me o talento de argumentador de Gaudêncio Torquato, primo, amigo, colega e agora confrade. O que me resta, meu querido amigo Bertelli, meu caro Rui Altenfeder, prezado Sales Gaudêncio, é exercer a profissão de jornalista e comunicador, além de acadêmico, intelectual e poeta para carregar as metralhadoras verbais de Jobson, Isabel, Alzira, Sales e Gaudêncio, que me honrou ao discursar recebendo-me aqui, com a pólvora de meus tiros verbais disparados no jornal, no rádio e na televisão.

Aqui estou no lugar certo. E quando digo lugar certo me refiro à Academia e também a São Paulo. Não nasci aqui, mas aqui fui recebido como se filho fosse. Não foi a primeira vez que isso me ocorreu. Quando comecei em jornal na Rainha da Borborema, também fui adotado. Se vocês me permitem, posso apelar para outra digressão, contando-lhes que aportei neste Planalto de Piratininga no inverno de 1970. Então, morava no Rio de Janeiro e passava os fins de semana aqui. Num deles, conheci o poeta Eurícledes Formiga, por coincidência egresso do mesmo sertão do Rio do Peixe, um rio na verdade, mas sem peixe, pois nem água tem. Em memória dele beijo aqui as mãos da viúva, Anabel, xará de Anabel Lee, musa de Edgar Allen Poe, e de seus filhos Miguel e Quito, autor do projeto do título de Cidadão Paulistano, que a Câmara Municipal me concedeu em 2010. Formiga me levou a Cláudio Abramo na Folha de S.Paulo e fez de mim jornalista, que era o que eu queria ser. Mas não era tudo o que eu queria ser. Como Francesc Petit, brilhante publicitário, perseguiu a glória de ter a fama de seu patrício Joan Miró como pintor; como o maior jogador de futebol de todos os tempos, Pelé, que queria ser mesmo era compositor e cantor, eu ainda quero ser reconhecido como escritor, poeta, intelectual. Meu livro O silêncio do delator, título que hoje realiza o sonho institucional de nossa “presidenta”, ganhou o prêmio Senador José Ermírio de Moraes da Academia Brasileira de Letras, como melhor livro de 2004. Mas ainda quero mais. E vou perseguir esse objetivo aqui com vocês, lutando pelo resgate da história das mãos desse bando de abutres que devoram a poupança escassa de um povo pobre em nome de suas ilusões.

Professor José Jobson Arruda, professor do Departamento de História da USP, Isabel do Castro Pinto, doutoranda na USP, e José Nêumanne Pinto

Professor José Jobson Arruda, professor do Departamento de História da USP, Isabel do Castro Pinto, doutoranda na USP, e José Nêumanne Pinto

Quando sobrevoo São Paulo, vejo a obra de milhões de nordestinos que, como eu, participam da fundação desta cidade que nunca fica pronta. Meu sonho de lutar pela liberdade, amando a verdade e sendo amante da história, se realiza plenamente nesta pátria de republicanos e dos meus amados filhos Vladimir, Clarice e Cecília. Pedro, meu neto mais velho também nasceu em São Paulo, capital. Meus netos Stella, Anna e Giulio, nascidos em Milão, Itália e Nolan, em Genebra, Suíça, têm também a ascendência paulistana de suas mães. Não me refiro especificamente aos militares positivistas que depuseram o imperador precocemente envelhecido para levar ao poder um militar monarquista e enfermo, depois substituído por outro soldado alagoano com delírios de grandeza. Refiro-me aos mártires republicanos de 1932 Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo que lutaram praticamente desarmados para impor uma ordem constitucional que até hoje os poderosos que assomam ao poder tentam submeter aos próprios caprichos. Refiro-me à Universidade de São Paulo, verdadeira ágora educadora de uma pátria sem a mínima educação. O convívio com Isabel, que é a melhor coisa que experimentei na vida, mas infelizmente, por motivos pessoais e egoístas, não recomendo a nenhum de vocês, tem sido um exercício permanente de amor e admiração sobre o que ainda se produz de bom naquelas paredes rabiscadas por grafites nem sempre publicáveis. A pró-reitora Maria Arminda Arruda saberá muito melhor do que eu transmitir essa sensação de orgulho que minha amada mulher sente ao pertencer a essa grei. Refiro-me ainda aos colegas que construíram em mais de um século uma tradição de luta pela liberdade no jornal O Estado de S. Paulo, em cujas páginas aprendi a encontrar a resistência dos maquis lendo até versos dos Lusíadas ou receitas de acepipes que ninguém conseguirá provar – o que levou muitos leitores a reclamar.

Ser acadêmico é um título de nobreza do qual me orgulho. Mas me orgulha mais ainda ser de uma Academia Paulista de História, que foi de José Sebastião Witter e agora também é minha. Desde que conheço Isabel que aprendi a venerar figuras uspianas como Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Florestan Fernandes, Leôncio Martins Rodrigues, José Augusto Guilhon, Antônio Cândido, Celso Lafer e Fernando Henrique Cardoso. Conheci-os todos, com alguns deles convivi. Conheci também Witter, em quem Sérgio Buarque depositava justíssima confiança; Orgulha-me mais agora estar aqui sentado na cadeira dele, cumprindo meu plantão. Witter deixou sua marca na cultura paulista lutando pela preservação de sua memória no Arquivo do Estado. Ele não está mais entre nós, mas sua obra permanece, assim como seu exemplo.

Maria Betânia Pimentel de Castro, mãe de Isabel, José Nêumanne Pinto e Maria Isabel de Castro Pinto na posse na APH

Maria Betânia Pimentel de Castro, mãe de Isabel, José Nêumanne Pinto e Maria Isabel de Castro Pinto na posse na APH

Assim como o mestre de Moji das Cruzes dedicou a vida a evitar que documentos históricos fossem devorados pelas traças e, pior ainda, pela insensibilidade de nossos quase sempre vorazes homens e mulheres sapiens e públicos, espero dar minha contribuição à preservação dos fatos históricos verdadeiros. À sombra dele, ambos sentados na cadeira cujo patrono é Hermann Friedrich Julius Meili, travaremos aquilo que Saulo de Tarso, o homem que inventou o amor tal como o conhecemos hoje, chamava de “o bom combate” contra os insetos que fazem da mentira lucro podre. Não tenho os dons diplomáticos nem o amor pela moeda que nosso patrono tinha, mas espero dar uma contribuição, por mínima que seja, para que nossa História não seja distorcida e aparelhada para servir aos interesses de canalhas que usam o dom de iludir para se dar bem na vida e prejudicar a sobrevivência dos outros.

Como escreveu o citado professor Jobson no resumo de uma aula que deu e à qual Isabel compareceu, Clio “não registra apenas o tempo que passou na água que escorreu [passado], ou na água que escorre [presente], mas também  naquela que escorrerá [futuro], no fundo sua meta principal, ou seja, o julgamento da posteridade que garantirá a entronização dos fatos e feitos dignos de memória no panteão da História”. Portanto, estarei cumprindo uma missão dela se conseguir o que proponho.


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A Sustentável Leveza de Maria das Graças Targino

Contracapa do livro Ideias em retalhos: sem rodeios nem atalhos, da professora Maria das Graças Targino, que acaba de sair pela editora Halley, de Teresina, PI

Maria das Graças Targino é uma respeitável professora de Comunicação e os textos que compõem esta coletânea se sustentam sobre pilares do templo de sólida carreira acadêmica. Os campos de interesse devassados por seus olhos e analisados por seu cérebro são de uma variedade incrível: paisagens de viagens; tipos humanos cuja experiência de vida lhe chamou atenção; comentários nas redes sociais do computador; a própria vocação pela docência; e a cobrança da decência, entre outros. Mais do que a base do conhecimento, que aqui merece ser chamado de erudição, contudo, o fio condutor desta narrativa, que não é fictícia, mas documental, é tecido com elegância e leveza que denotam a delicadeza e a familiaridade com que a autora aborda o exercício da escrita. As imagens que ela reproduz com precisão e cores de retratista (e não é à toa que o fotógrafo Sebastião Salgado é um de seus ícones) e os conceitos que ela desfia ao longo do novelo são conduzidos de tal forma no navegar pelos mares de sua palavra que o leitor se enfronha (e aqui a palavra ganha força, porque definitivamente a leitura leva a uma intimidade de lençóis, fronhas e edredom sem contato físico, mas de uma conversa a meio tom e ao pé do fogo) e participa da condução do argumento como se fosse seu cúmplice. Temas batidos como a prostituição, controversos como a relação mãe-filho(a) ou duros de suportar como o envelhecimento físico ganham novos tons a partir de pinceladas únicas ou reiteradas. Este livro é um caleidoscópio de imagens, cores, pensamentos e emoções, mas também tem uma unidade singular, mal disfarçando a construção sólida, embora leve, de um perfil variegado, embora também de impressionante nitidez. Infelizmente para um fanático de futebol, como este seu leitor impenitente, Graça não se dignou olhar a bola branca rolar sobre o gramado verde. Se o fizesse, talvez lhe fosse dado perceber que, naquele jogo de tensões e relaxamentos, houve um craque cujo estilo se assemelha ao da escrita dela. E este foi um jogador que João Cabral de Melo Neto escalou como tema: Ademir da Guia, o Divino. Como o jeito do meia da Academia do futebol no Palmeiras, a escrita de Graça padece de uma falsa lerdeza: sem correr, sem perder o fôlego, ela chega sempre à palavra exata e atrás dela chegam outras que a completam. Se alguma vez, o poeta pernambucano, em cuja Recife a autora viveu sua adolescência, a tivesse lido, teria se lembrado do ritmo de suas frases ao descrever o jogo do ídolo improvável: “Ritmo morno, de andar na areia, / de água doente de alagados, / entorpecendo e então atando // o mais irrequieto adversário”. Ritmo ditado, escreveria Graça Targino, pelo destino da finitude do tempo infinito: “Se houvera tempo, talvez não carregássemos conosco o peso dos mortos”. Amém.

José Nêumanne Pinto

Jornalista, poeta e escritor


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Sexto capítulo do livro “Junho de 2013. A sociedade enfrenta o Estado”

Sexto capítulo do livro Junho de 2013. A sociedade enfrenta o Estado, organizado pelo cientista político Rubens Figueiredo, editado pela Summus e a ser lançado na terça 21 de outubro na Livraria Cultura do Conjunto Nacional

Capítulo VI – A multidão poderosa virou plebe ignara e tudo ficou como dantes na República de Abrantes

Não faltaram razões – ao contrário, até sobraram – para as multidões sem partidos nem bandeiras invadirem as ruas das cidades brasileiras para reclamar das mazelas de uma máquina pública que custa o sacrifício da cidadania em impostos escorchantes e presta serviços indigentes. Tudo começou com um mal entendido provocado pela crônica incompetência, pela distância abissal da cúpula dirigente em relação à massa e pela absoluta e absurda falta de sensibilidade política e, sobretudo, humana. Para definir neste capítulo a reação dos poderes constituídos da República aos protestos, convém partir de uma rápida digressão desses motivos.

O despertar do monstro

O estopim da bomba tinha que ver com uma das mais evidentes carências nas grandes cidades nacionais – a questão da mobilidade urbana. É absurdo o tempo gasto no deslocamento em condições de insalubridade e desconforto totais pelo trabalhador brasileiro para ir trabalhar e voltar para casa nas metrópoles nacionais. Em 2013, a rotina de pasmaceira que permitia aos gestores públicos estaduais e municipais tratarem o problema com desdém e ainda promoverem reajustes anuais das tarifas cobradas pelo serviço de transporte público foi quebrada por uma lambança do governo federal. Empenhada em empurrar o problema da inflação com a barriga, a presidente Dilma Rousseff pediu encarecidamente a governadores e prefeitos amigos ou adversários que adiassem os reajustes para o meio do ano. Eles o fizeram e deu no que deu: a mudança do calendário despertou o monstro da opinião pública, que deu o ar de sua graça.

capa_sociedadeContando com a velocidade, nunca antes empregada para esse fim, das redes sociais nos computadores, o Movimento Passe Livre (MPL) empunhou a bandeira absurda da tarifa zero (como se houvesse almoço grátis) e convocou a multidão para protestar contra o reajuste. O ambiente propício de insatisfação generalizada anabolizou o protesto monotemático e a reação atabalhoada de governantes desacostumados com movimentos a céu aberto terminaram por incentivar e multiplicar os protestos. Sem ter idéia da dimensão da explosão social nem saber como debelar o que lhe parecia uma sucessão de focos de incêndio, a elite civil política no exercício de mandatos, que antes lhes pareciam apenas possibilidades honoríficas de amealhar fortunas em comissões de obras públicas, meteu os pés pelas mãos e jogou gasolina nas fogueiras de rua imaginando que assim pudesse apagá-las. Quanta estupidez! Contando com a assessoria tida como genial do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, os gestores municipais e estaduais, entre os quais alguns adversários do Partido dos Trabalhadores (PT), tentaram acalmar as massas adiando os reajustes anunciados para as calendas gregas.

Todos contra tudo

Da mesma forma como o adiamento dos reajustes nunca poderia ser a solução definitiva para o risco inflacionário, seu cancelamento não aquietou as massas como imaginavam que aconteceria os alienados dirigentes políticos municipais, estaduais e federais. A concessão apenas acicatou o monstro acordado. Já que estava nas ruas mesmo e que tinha conseguido amenizar a fúria truculenta do aparelho policial, a opinião pública resolveu pôr para fora todas as queixas que sempre teve dos métodos nefastos adotados pela representação política e pela gestão pública. A batalha contra o custo exagerado do transporte mal gerido se transformou, então, numa guerra de frentes generalizadas. Virou um combate sem quartel de todos contra tudo.

Até junho de 2013 o Brasil vivia uma esquizofrenia muito esquisita. Quanto mais o Estado retribuía a generosidade dos contribuintes em recordes mensalmente superados de arrecadação do Fisco mais os responsáveis por essa perversidade eram aprovados, reeleitos, aclamados e prestigiados por suas vítimas. Era uma relação masoquista de amor incondicional por todos os agentes que lhes causavam toda a sua dor. Aí, de repente, numa reação instintiva, mas ainda inconsciente, a essa incongruência, as multidões ocuparam as ruas para expressar sua insatisfação difusa, mas ruidosa, com os motivos óbvios de suas queixas: a péssima gestão pública, em geral. Foi contra ela que genericamente se reuniram, gritaram, empunharam faixas e enfrentaram a polícia os manifestantes de junho. Por todos os bons motivos. As mães sem creches para seus bebês, os pais sem boas escolas públicas para seus filhos, os trabalhadores com seus salários corroídos pelas ratazanas inflacionárias, os pobres assaltados nas ruas pelos bandidos e tratados pela polícia como se fossem seus assaltantes, os doentes nas filas intermináveis para as consultas médicas, os pacientes na espera interminável dos corredores de prontos socorros por uma mera maca – todos se deram as mãos ao identificarem o inimigo comum.

Os alvos de seu ódio eram a corrupção que consumia a maior parte do dinheiro arrecadado dos impostos deixando-os sem segurança, educação, saúde, sem nada. E eles gritaram. O que os impedia antes de gritar, há-de se perguntar? A covardia conjunta, a passividade congênita, os séculos de dominação política, as esmolas dadas com o próprio dinheiro por demagogos sem vergonha ou a ignorância de quem sofre, mas é incapaz de reconhecer o causador de sua desgraça? Não dá para saber. Talvez nunca dê. Talvez a resposta seja uma, nenhuma delas ou todas. Acrescentadas à ocasião. Enfim, com a ligeireza do computador se tornou possível contornar uma barreira irremediável: as muralhas ideológicas e partidárias que só permitem enxergar o erro na seara do adversário. Ou ainda a contumácia da cegueira coletiva do rebanho que caminha rumo ao abismo por estar habituado a seguir seu pastor.

A ignorância da inexperiência

A primeira reação dos alvos das manifestações foi de estupefação. No caso da presidente Dilma Rousseff, a perplexidade pode ser explicada tanto pela incompetência absurda de seu serviço de inteligência, que ela viria depois a expor publicamente no ridículo episódio da indignação contra a “espionagem” americana quanto pela ignorância da inexperiência. A presidente que foi eleita de saída sem nunca ter sido sequer síndica de prédio teve na própria biografia uma explicação até razoável para seu mutismo quando soube da presença das multidões nas ruas e da evolução das manifestações.

Seu “espírito santo de orelha”, Padim Lula de Garanhuns, também não foi um conselheiro de muita utilidade ao deixar escapar duas linhas de explicação sobre o inesperado. A primeira delas, adotada com sofreguidão por alguns acólitos antes que percebessem a oportunidade de fazer do limão dos protestos a limonada da demagogia, foi a de que se tratava de uma manifestação da direita que sempre hostilizou a governança petista e foi para a rua lamentar os privilégios perdidos. O velho preconceito às avessas dos populistas contra a classe média inspirou a patacoada. A segunda, embora não mais sensata, foi, pelo menos, mais esperta: o povo reclamou nas ruas porque sua vida melhorou e ele quer mais. Esta, pelo menos, tem como pressuposto uma observação inteligente de como as multidões se comportam. De fato, à medida que conquistam algumas coisas logo passam a exigir mais. Como dizia minha avó, lá no sertão do Rio do Peixe, se você der a mão, lá vêm eles puxando seu braço. Filha de coronel da Guarda Nacional dos tempos de antanho, ele antecipou a constatação dos neocoronelistas petelhos em tempo de monstro da opinião pública despertando e rugindo na rua.

O marketing do “querem mais”

Quando sentiu a força existente na explicação do “querem mais”, a equipe de marqueteiros da República petista alinhavou um discurso que a presidente poderia chamar de seu. E, apesar do atraso, ela recorreu ao velho truque de seu antecessor, patrono, padrinho e paraninfo Luiz Inácio Lula da Silva: convocou rede de televisão e partiu para a cara-dura explícita, técnica aprendida do velho inimigo que virou parceiro, Paulo Maluf, o filhote da ditadura militar, que ela combateu de armas na mão.

No horário nobre, adotando seu velho estilo “balança, mas não cai”, adotado nos carnavais de Recife pelos bonecos de Olinda, a chefe do governo, demonstrando insegurança e falta de convicção, leu um texto preparado pelo mago do marketing político, o baiano João Santana, o Patinhas do grupo Bendegó de música popular. No palanque eletrônico, embora sem o talento de comunicador do ex-chefe, agora no papel de Richelieu, por sobra de esperteza e falta de conhecimento para ser Maquiavel, ela mostrou que se dispunha a aceitar como definitivo o velho mote popular do “me engana que eu gosto”.

Dilma, que seria candidata à reeleição um ano e meio depois, respondeu aos recados que clamavam contra um dos maiores males da República por ela comandada, a corrupção, prometeu mandar para o Congresso uma lei que passasse a considerar a malversação dos recursos públicos “crime hediondo”. A promessa era de uma pseudo-ingenuidade e de uma hipocrisia capazes de fazer corar frade de pedra. Pois quem a fez já tinha readmitido na Esplanada de seu Ministério antigos colaboradores defenestrados de seus gabinetes por denúncias de “malfeitorias” explicitas. Seu ministro do Trabalho, Carlos Lupi, por exemplo, substituído por um dissidente do Partido Democrático Trabalhista (PDT), Brizola Neto, descendente direto do fundador da sigla, voltaria a pontificar na pasta com seus homens de confiança, que, como manda a lógica, logo passaram a ser investigados pela Polícia Federal (PF) pelos mesmos delitos denunciados anteriormente. Tudo isso para manter a sigla no palanque de outubro de 2014. O cinismo retórico é de tal dimensão que o ministro nomeado pelo presidente pedetista, Manoel Dias, prometeu fazer um “pente-fino” nas acusações contra seus auxiliares num “mutirão”, em tudo por tudo lembrando a palavra “faxina” usada pela “gerentona” em 2012.

Outros detalhes passaram despercebidos na proposta de Sua Excelência. A primeira de todas é que o maior rigor da lei não depende do texto proposto pelo Poder Executivo, que a criaria, mas do Legislativo, que a debateria e aprovaria, ou não. Começou, com isso, uma guerra suja entre o governo que propunha e o Congresso que fatalmente seria acusado de recusar sua proposta. No período de Termidor (período da Revolução Francesa em que rolaram na guilhotana as cabeças de radicais como Robespierre), em que a fúria das ruas desaguaria, como, de hábito, ocorre em todo lugar e quaisquer períodos da História da humanidade, tudo que parecia sólido se desmancharia em troca de farpas e outros hábitos deletérios da política cortesã brasileira.

Voto se ganha com saliva

Além disso, a classificação de sequestro como “crime hediondo” não impediu que a modalidade criminosa continuasse prosperando no Brasil de Dilma e nos Estados governados por opositores, como o tucano Geraldo Alckmin em São Paulo e aliados, como Sérgio Cabral no Rio. É evidente que não se combate um delito com saliva. Isso, na verdade, nunca importou nem a Dilma nem aos parlamentares que a apoiam ou se opõem a seu governo. Afinal de contas, é com saliva que se ganha voto. Sempre foi.

A questão da corrupção, contudo, não proporcionou ao governo contestado nas ruas seu momento máximo de prestidigitação. O leit motiv inicial dos protestos – as tarifas dos transportes públicos – motivou mais um lance da demagogia marqueteira palaciana com o anúncio de miragens para resolver o que passou a ser chamado de “mobilidade urbana”, expressão que substituiu outra, mais plebeia e menos charmosa, a do “transporte coletivo de massa”. Os grandes protestos começaram reclamando do aumento da tarifa dos ônibus metropolitanos, outro produto da malandragem federal ajudada pelos lances de oportunismo rastaquera praticados por petistas, aliados e oposicionistas, tucanos ou não, nos âmbitos das grandes cidades e dos Estados. Pressionada pela possibilidade de uma explosão inflacionária no começo do ano, dona Dilma apelou para governadores e prefeitos para adiarem os anúncios de reajustes de tarifas de transportes para depois. Foi mais uma manifestação de amadorismo de gestão a dar com os burros n’água. Os dados da realidade são simples e cruéis: o transporte público urbano brasileiro é ruim, muito ruim, trágico para seus usuários e paradisíaco para as gestões públicas e seus associados empresários concessionários. Mas “nunca antes na História deste País”, como diria o Painho Lula de Caetés, ninguém havia reclamado dessa associação perversa entre Estado e capitalismo selvagem na fixação de tarifas pagas pelos pobres para ajudar a sustentar empresas habituadas a agir em cartéis, denominação benevolente para suas práticas mafiosas. O calendário era favorável e o a efeméride dissolvia na indiferença geral reajustes aparentemente modestos que resultavam em obrigações escorchantes para os passageiros de ônibus em péssimo estado de conservação e que oferecem à clientela desconforto e risco. Benesses concedidas em férias, os decretos fixando novos preços se dissolviam na desmobilização das férias de início do ano e passavam batidos. Se Dilma foi incauta, os gestores estaduais e municipais misturaram indiferença, insensibilidade e ânimo bajulatório ao aceitarem a proposta da gestora-mor de empurrar o aumento inevitável para o meio do ano evitando assim o desconforto da inflação naquele momento. Governadores e prefeitos – como o oposicionista Alckmin, do maior Estado da Federação, e o petista Haddad, do município mais rico e populoso – não resistiram à oportunidade de prestar um servicinho à guardiã dos cofres da poupança nacional e a acompanharam no salto ao abismo da popularidade descendente. Foi um deus-nos-acuda.

A gargalhada de Talleyrand na tumba

Grupelhos radicais, agitando bandeiras irrealistas de “tarifa zero”, assomaram à cena e, mobilizando as massas em redes sociais, ganharam a imerecida fama de condutores do processo de queixas mais espetacular da História do Brasil. O Movimento do Passe Livre – teve seus dias de fama no junho em que o gigante do Hino Nacional teria despertado de seu berço esplêndido. Seus líderes saíram do merecido anonimato para uma fama breve e condizente com os tempos de celebridades febris, céleres e fugazes da era da informação e da tecnologia. A fama dessa gente despreparada teve seu momento de glória quando os líderes juvenis deram ao patriarca de São Bernardo a oportunidade de procurar Dilma e Haddad para aconselhar o óbvio: que cancelassem imediatamente o aumento. Prefeitos e governadores, entre os quais Alckmin, atenderam à profecia do profeta de Vila Euclides. E Charles Maurice de Talleyrand-Périgord, o original, não só se mexeu: também gargalhou na tumba.

Governadores e prefeitos, sob o olhar divertido de Lulinha da Silva, que, como sempre, nada sabia, nada via e nada ouvia, deram duas contribuições para que o movimento contra tarifas virasse um espetacular protesto nacional generalizado contra as piores mazelas do Estado brasileiro: a corrupção, a inflação e a péssima gestão pública, principalmente no que concerne a setores prioritários – saúde, educação e segurança pública. Primeiro, mandaram a polícia despreparada açular as multidões com spray de pimenta, bombas de efeito moral e balaços de borracha. Foi o que bastou para voltarem aos meios de comunicação as imagens da luta dos estudantes e, depois, dos operários e da classe média contra a ditadura militar nos anos 60 e 70 do século XX. Passeata dos 100 mil. Comícios pelas diretas já. Os jornais e revistas, as emissoras de rádio e televisão, as redes sociais e a mídia ninja passaram a brilhar chamando mais gente para a rua.

Depois, os gestores da má gestão pública aceitaram, praticamente sem condições, atender às reivindicações da garotada frenética do MPL, provocando aquela sensação de vitória que só poderia dar em mais engajamento em hordas e a euforia que torna a covardia coragem com a adesão entusiástica das multidões. Mais gente passou a enfrentar mais policiais despreparados, destreinados e sem comando e os encarregados dos negócios públicos mandavam bater quando era para negociar e tentavam negociar quando tinham de reprimir.

Em 24 de junho, a presidente recebeu as lideranças do MPL e as projetou no palco do debate político nacional. Marcelo Hotimsky, um dos líderes do MLP recebidos por ela, considerou a “Presidência despreparada para o debate”. Disse o rapaz: “A gente viu a Presidência completamente despreparada. Eles não mostraram nenhuma pauta completa para modificar a situação do transporte no país, que é de fato muito precária. Eles mostraram uma incapacidade muito grande de entender a pauta do momento, falaram que vão estudar e abriram este canal de diálogo que a gente considera importante sim”. Foi um diagnóstico irreverente e certeiro.

Mas, ancorada na malandragem explícita do marketing político do Palácio, dona Dilma tinha mais cartas na manga da blusa. A mais inteligente e mais cínica de todas foi a cartada genial com que ela vendeu para a multidão enfurecida a solução mágica para o problema insolúvel da indigente saúde pública nacional. Filas de um ano e meio para consultas urgentes, pacientes morrendo nas portas de hospitais, ambulâncias paradas por falta de macas, usadas em corredores para a paciente espera da morte pelos doentes, falta de gaze, de médicos, de enfermeiros, de tudo. Tudo parecia o fim para quem desconhecia o alcance da ignorância e da falta de escrúpulos de um governo que, constituído para acabar com tudo o que está aí, nunca moveu uma pedra para fazê-lo. A solução mirabolante para o problema insolúvel – o tal programa Mais Médicos – nasceu de uma observação canalha do inferno dantesco vigente. Tudo parece muito simples, mas, na verdade, exige observação, insensibilidade e uma dose cavalar de crueldade. Quem leva um ano e meio para receber um cliente? A presidente? O senador? O deputado federal? O deputado estadual? O vereador? O ministro da Saúde? O secretário? O governador? O prefeito? Nada disso! O médico. Eureca, bingo, PT saudações. Nunca ninguém tinha partido de algo tão brutal e tão óbvio ao mesmo tempo. E a estratégia do governo de Dilma apontou o dedo para os médicos sem nunca tê-lo desviado para ninguém mais. Embora isso tenha sido feito com avanços e recuos, idéias luminosas e erros espetaculares, que uma operação de marketing dessas proporções poderia propiciar.

Direto de Cuba para as brenhas

Os médicos brasileiros não querem ir para o sertão nem para a periferia das metrópoles. Dizem que é uma questão de amor à própria vida, mas, na verdade, é zelitismo. Vamos, então, desenterrar uma velha iniciativa não levada à prática pelo governo anterior: trazer médicos de Cuba para os brasileiros pobres consultarem. Lula havia tentado, mas não teve clima para trazer profissionais da cura tratando-os como escravos em território nacional remunerando, a peso de ouro, seus capitães de mato, os tiranetes da família Castro. O ministro Alexandre Padilha, candidato do PT ao governo de São Paulo, única joia que ainda faltava em sua coroa, recheou a empada com o acréscimo de pessoas de jaleco importadas da crise européia, principalmente Portugal e Espanha. Não caiu bem. Logo vieram os idiotas da objetividade para lembrar que a medicina cubana é indigente e que a princesa Isabel havia abolido a escravidão em território brasileiro. Mas, mesmo vaiada no Estádio Mané Garrincha, na abertura da Copa das Confederações, Dilma é craque de bola e driblou os opositores. Fingiu que iria pela direita, voltou para a esquerda e arrematou: gol de Padilha, gol de Dilma, gol de Fidel e Raul. O único empecilho de monta para a entrada dos caribenhos em nossas brenhas foi resolvido com uma canetada: os paramédicos fantasiados não precisaram mais se submeter ao exame de revalidação de seus diplomas, o Revalida.

Tudo foi pensado para punir os médicos tupiniquins: aumentar o curso de Medicina em dois anos e forçá-los a trabalhar sob remuneração vil por conta do falido Sistema Único de Saúde (SUS) foi a pérola que brilhou na ostra. O governo recuou e os médicos nacionais, incentivados por seus conselhos corporativistas, foram receber os escravos de jaleco vindos de Cuba com xingamentos no aeroporto. Racistas. Elitistas. Interesseiros. E a classe médica entrou no exército de “porcos” da oposição. Enquanto isso, o doutor Padilha, um ilustre Zé Ninguém, ganhou manchetes diárias e tornou viável o sonho de Lulinha de fazê-lo pretendente a ocupar o bastião que ainda se mantinha em poder dos inimigos de vôo curto e bico comprido no Palácio dos Bandeirantes. Em marketing, Lula, dez; tucanos, zero.

Prometida a reforma que ninguém pediu

O marqueteiro-mor João Santana também não deixa a chefe decepcionar o padrinho. Nunca, em nenhuma manifestação de rua, o povo pediu reforma política. Mas a “presidenta” insistiu tanto que o povo a queria que conseguiu, mesmo despencando nas pesquisas de opinião pública, aprovação da multidão para a ideia genérica fazendo praça de um projeto preparado para manter o PT no poder pela eternidade dos séculos, amém, modificando a legislação eleitoral para beneficiá-lo. De um texto alinhavado pelo deputado Henrique Fontana (PT-PE), foram copiadas as premissas básicas: financiamento público de campanha para o cidadão-contribuinte financiar palanques e programas milionários em rádio e TV dos governistas; voto em lista para preencher as bancadas majoritárias com pessoas de confiança dos comandantes do partido; e mais o brilhareco falso de miçangas sem valor: extinção do voto secreto nos parlamentos e das suplências sem votos no Senado Federal. Isso sem contar, é claro, com outras medidas a serem acrescentadas ao longo do tempo como soi acontecer com as árvores de Natal das Medidas Provisórias (MPs) que entram em votação.

Não se pense, contudo, que, enquanto Dilma evoluía na avenida, os macacos velhos do Congresso ficaram esperando ver a banda dela passar. O presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), prometeu uma “agenda positiva”, que resultou no atendimento direto a uma das reivindicações da rua, a extinção do Projeto de Emenda Constitucional (PEC) 37, que, em teoria, e só em teoria, tirava poder do amado Ministério Público (MP) em benefício da odiada polícia. Outras “lanas caprinas” foram apresentadas para tirar o povaréu da rua: engessamento do Orçamento para dar mais recursos (mas não necessariamente gestão mais eficiente) à saúde e educação e distribuição igualitária dos royalties do pré-sal, que nem sequer foi tirado da terra. Enquanto isso, ninguém lamentou o feito mais espetacular dos governos Lula e Dilma: a decadência semifalimentar da Petrobras, aquela que foi criada sob o lema otimista do “petróleo é nosso”.

No meio do lufa-lufa da disputa entre Congresso e Dilma para concluir quem, afinal, mais engana o povo e mais amado por isso é, foram registradas duas das mais óbvias evidências de que a vaga de indignação popular de todos contra tudo havia escoado pelos esgotos povoados pelos ratos mais oportunistas e covardes da História do Brasil. Em votação secreta, é claro, a Câmara dos Deputados, sob protesto (não diga!) de seu presidente, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), fundou uma sucursal no presídio da Papuda e criou a ocupação esdrúxula de parlamentar-presidiário, mantendo em plenário o mandato do coleguinha Natan Donadon (ex-PMDB-RO). E, depois, Senado e Câmara se puseram em combate para ver que projeto se candidataria ao lugar inédito de lei criada para não valer neste País em que há leis que vingam e outras, não. Os deputados aprovaram a votação secreta universal em todos os parlamentos, simplesmente impossível de acontecer. E os senadores contrapõem seu projeto de autoria deles que limita a proibição de sigilo às votações exclusivas para cassação de mandatos de congressistas. Ah, sim!

Tudo isso é óbvio. Mas só em setembro é que ficou claro que as multidões que foram unívocas para reclamar não tinham soluções unânimes para os problemas que afligiam a todos. Em junho, com o povo na rua, Dilma viu sua popularidade despencar 24 pontos ladeira abaixo em um mês, 30 ao todo desde o recorde de novembro de 2012. Os 30 pontos para os quais caiu eram um pouco mais do que os 28 de Lula em plena efervescência da denúncia do escândalo do mensalão pelo ex-aliado Roberto Jefferson, presidente nacional do PTB. Mas João Santana previu que fatos novos (o ex-prefeito do Rio César Maia os chamaria mais adequadamente de “factóides”) recuperariam lenta, mas consistentemente, a popularidade e também a preferência no voto para a reeleição. Em setembro os índices voltaram a subir. Apenas sete pontos, mas o suficiente para ela recuperar a condição de favorita à reeleição em outubro de 2014.

No sábado 7 de setembro veio a prova do começo da temporada que os marxistas de antanho chamariam de Termidor: as multidões não encheram as arquibancadas das paradas comemorativas com protestos as ruas, que passaram a ser ocupadas pelos sindicalistas empenhados em conseguir mais privilégios e rendas e, sobretudo, pela canalha miúda dos anarquistas sem bandeira, os black blocs, os anonymous, etc. Subprodutos indesejáveis das belas manifestações de cara limpa, os usuários de máscara para esconder os rostos mobilizaram oportunistas festivos de vários naipes e encurralaram os gestores públicos em sua costumeira posição dividida entre a covardia da inércia e a demagogia da disputa do voto. O inefável baiano Caetano enrolou uma camiseta na cara para simbolizar a absurda posição política correta de gente que, como o personagem de Gerson na propaganda do cigarro Vila Rica, pregou: “é preciso tirar vantagem em tudo”. E produziu o símbolo da contradição: como se manifestar pelo voto aberto e contra a queda da máscara dos vândalos baderneiros.

Beijos na barra da toga

E a contradição ganhou foros de jurisprudência na incoerência de um ministro nomeado por Dilma para o Supremo Tribunal Federal (STF) numa sessão do histórico julgamento do mensalão, no qual o Judiciário fingiu que, pela primeira vez, optaria pela justiça para todos desistindo do denominador comum da lerdeza para amparar quem beije a barra da toga. Ao tomar posse no órgão máximo do poder que julga, o advogado carioca Luís Roberto Barroso bajulou a multidão poderosa, ao definir “como algo positivo (…) essa manifestação pacífica, energia criativa e construtiva que está vindo das ruas, da sociedade brasileira, (que) certamente fará muito bem a esta população”. E, depois, ao ser convocado a manter decisão de colegiado do qual não fazia parte, que negou aos réus do governo petista o direito de não ser igual ao cidadão comum, fez-se de desentendido e fustigou a plebe ignara: “Não julgamos para a multidão, julgamos pessoas”.

Este mesmo mantra justificou o sexto e último voto a favor da discussão dos chamados embargos infringentes, voto dado pelo decano do Supremo, o paulista de Tatuí Celso de Mello. O último juiz a votar, que deu o mais pesado voto contra os “quadrilheiros” do mensalão, foi prolixo ao citar uma miríade de argumentos de outros juristas a favor de sua tese. Destaque-se de seu “sermão da montanha”, como o voto foi apelidado por causa da enxúndia, o principal motivo de sua decisão: “O dever de proteção das liberdades fundamentais dos réus, de qualquer réu, representa encargo constitucional de que este Supremo não pode demitir-se, mesmo que o clamor popular se manifeste contrariamente, sob pena de frustração de conquistas que culminaram, após séculos de lutas e reivindicações do próprio povo, na consagração de que o processo penal traduz instrumento garantidor de que a reação do Estado à prática criminosa jamais poderá constituir reação instintiva, arbitrária, injusta e racional”.

Não se tratam de “meras tecnicalidades jurídicas”, como o próprio Mello lembrou em seu voto, pobre de inspiração e recheado de justificativas prtévias. Nem, evidentemente, é o caso de “Roma locuta, causa finita” (Roma falou, a causa acabou), é claro. Pois o processo prosseguiu e, citando o mesmo decano, não houve julgamento de mérito. Aceitar discutir embargos não significa concordar com seu mérito, ou seja, a extinção de penas que não alterem a condenação, mas podem, por revisão da aceitação da “formação de quadrilha” ou prescrição de algumas, evitar o desconforto de uma prisão fechada para ex-maiorais da República.

Trata-se, contudo, de uma marcha à ré na confirmação histórica do mesmo STF, com composição diferente da que deu a vitória à aceitação de embargos, de que, ao contrário do que imaginam os políticos instalados nos Poderes republicanos, eles não têm direitos especiais para delinqüir em delitos como o famigerado “caixa 2” de campanha. A cúpula do Poder Judiciário, por seis (Ricardo Lewandowski, Luiz Antônio Dias Toffoli, Rosa Weber, Teori Zavascki, Luís Roberto Barroso e Celso de Mello) a cinco (Joaquim Barbosa, Luís Fux, Carmen Lúcia, Gilmar Mendes e Marco Aurélio Mello), decidiu pela lerdeza e contra a justiça, pela prorrogação quase indefinida da defesa, ou seja, pela impunidade.

Se a multidão, que se apaixonou pelo STF em boa medida por causa da decepção generalizada causada pela atuação dos outros Poderes da República, mudou de ânimo por causa desse recuo, não foi por culpa dela, mas pela evidente rejeição dos ministros à aproximação empreendida no julgamento anterior. O Judiciário é que se afastou do povo e se manteve próximo do poder, demonstrando condescedência com clientes de seus alfaiates, seus restaurantes, seus clubes e convivas no clima de congraçamento social da elite dirigente civil em Brasília. Em nome da insistência da defesa, estabeleceu-se a desigualdade dos direitos da cidadania, restituindo o velho conceito de que no Brasil o braço pesado da lei só atinge os três pés: pobres, pretos e prostitutas. Embora tenha mantido a bela retórica do pleno direito de defesa para alguns e o consolo dos adjetivos pesados contra os réus para amansar o gigante que voltou a dormir, não em berço esplêndido, mas em catre mísero, restou ao órgão máximo do Judiciário adotar um lema bem menos simpático: “Quem pode mais chora menos”.

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