Site oficial do escritor e jornalista José Nêumanne Pinto

Política 2011

Por que financiar Itaquerão e Abílio?

De direita ou de esquerda, no governo ou na oposição, gestores públicos sempre acham que votos lhes dão carta branca para destinar o dinheiro de todos para ajudar amigos e aliados

 

A Prefeitura de São Paulo encontrou uma maneira engenhosa de fazer o jogo de retaliação do presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), Ricardo Teixeira, comandante da organização da Copa do Mundo da Fifa no Brasil em 2014 e, com isso, ainda beneficiar o time de maior torcida na cidade, o Corinthians. O jeitinho paulistano de dar circo à massa é tirar um naco de pão de cada cidadão e ceder R$ 420 milhões em isenção de impostos (vulgo “benefícios fiscais”) para gerar renda suficiente para o alvinegro do Parque São Jorge se mudar para Itaquera, construir o estádio onde serão disputados os jogos do Mundial na maior cidade do País e agregar ao patrimônio imobiliário uma obra que não teve competência, ao longo de toda a sua existência, para erigir com recursos próprios. Danem-se São Paulo, Palmeiras e Santos, que construíram os seus sem ajuda pública!

O Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) financiará a associação entre as redes de supermercados Pão de Açúcar, brasileira, e Carrefour, francesa, com um aporte de dez vezes o dinheiro a ser gasto para construir o local onde poderá ser jogada a abertura do mais importante torneio de futebol do planeta. É dinheiro de impostos que poderia ser aplicado na construção de hospitais e escolas, manutenção de estradas, novos presídios para aliviar o inferno da população carcerária ou reforma de aeroportos para evitar o Caos Aéreo anunciado, mas será empregado para evitar que o grupo francês Casino assuma o controle acionário de supermercados brasileiros.

As duas decisões foram tomadas por instâncias diferentes do poder público e por gestores públicos com orientações políticas opostas. O prefeito Gilberto Kassab dedicou sua carreira inteira à pregação e à prática do liberalismo. A presidente Dilma Rousseff pegou em armas para substituir uma ditadura militar de direita por outra militante de esquerda. Mas, consideradas as diferenças de objetivo e valor, ambos têm idêntico vezo em relação aos recursos que seus fiscais cobram.

De esquerda ou de direita, no governo ou na oposição, os profissionais da política tendem a acreditar que recebem nas urnas carta branca para destinar dinheiro tirado do bolso de todos para objetivos que digam respeito a interesses pessoais, familiares, grupais ou partidários. Nós conhecemos as desculpas dadas pelos governos federal brasileiro e municipal paulistano para explicarem a injustificável destinação de recursos originados de todos para os bolsos de alguns – seja o time da massa, seja o proprietário das gôndolas. A palavra de ordem é arrecadar de todos para usufruto de poucos – amigos e aliados, é óbvio.

Bastidores Líderes
© Jornal da Tarde, terça-feira, 5 de julho de 2011, p. 2A.

Elogio ao sociólogo que virou tese

O poder só enobrece ao permitir que o vencedor reconheça o mérito do adversário a que sucede

 

Fernando Henrique Cardoso era um militante celebrado e respeitado cientista social quando entrou na vida pública como assessor direto do representante máximo da resistência civil à ditadura militar, Ulysses Guimarães, presidente nacional do MDB e, depois, do PMDB. Candidatou-se ao Senado por uma sublegenda, apoiado pelos metalúrgicos de São Bernardo do Campo, liderados por Luiz Inácio da Silva, o Lula. Aproveitou-se da renúncia de Franco Montoro, eleito governador de São Paulo, para ocupar a vaga deste no Senado. Consta que só não foi ministro de Fernando Collor de Mello porque o ranzinza Mário Covas, líder da dissidência que se tornou PSDB, não o permitiu. Um observador realista duvidaria de sua eleição até para a Câmara dos Deputados quando Collor caiu. Mas, tendo sido o principal artífice da tentativa de impedimento que deu em renúncia, e passado pela Chancelaria e pelo Ministério da Fazenda no mandato-tampão de Itamar Franco, do qual foi um dos articuladores mais notórios e importantes, venceu a eleição presidencial.

A alavanca de Arquimedes que o levou de uma cadeira incerta no Congresso ao principal gabinete do Palácio do Planalto foi o Plano Real. Na chefia de Pedro Malan, Pérsio Arida, Edmar Bacha e Gustavo Franco, ele desistiu de pôr o ovo de Colombo de pé e, em vez disso, fritou uma suculenta omelete. Hoje tudo isso parece óbvio. Mas, à época, não o era. O confronto entre desenvolvimentistas e heterodoxos (mais tarde satanizados como “neoliberais”) atiçava o fogo que tecia a cortina de fumaça que impedia a visão do óbvio: a redenção do assalariado passava forçosamente pelo fim da febre inflacionária, causa da doença econômica que enriquecia os ricos e empobrecia os pobres com a perda do valor de compra da moeda. A familiaridade do professor Aloizio Mercadante Oliva com a teoria econômica não evitou que ele cometesse uma das mais célebres batatadas da política econômica no Brasil: garantiu a seu líder e candidato à Presidência Luiz Inácio Lula da Silva que a moeda forte era um estelionato eleitoral. E, no Ministério da Fazenda de Itamar, seu colega professor promoveu a maior revolução social da História do Brasil. Com isso, tornou-se o caso raro de sociólogo que virou tese e político que saiu do zero para o infinito num átimo.

Da mesma forma, contudo, que disparou do anonimato para a glória, mergulhou no ostracismo em idêntica velocidade com que escalou até o topo. Patrono da reeleição, instituto incomum e renegado na política brasileira, aposentou-se como o alvo preferencial dos adversários e a companhia mais indesejável dos companheiros de jornada. De posse do sucesso da estabilidade monetária, que antes rejeitavam, os petistas apedrejaram sua herança, dada como maldita, e com esse refrão Luiz Inácio Lula da Silva se elegeu duas vezes consecutivas e fez sucessora uma candidata improvável, tirada da cartola de mágico, Dilma Rousseff, provando, na prática, que na política, ao contrário do que reza o bom senso comum, nem sempre fatos se impõem a argumentos enganosos.

Se os fados são caprichosos com qualquer um, mostraram sê-lo mais no que se refere ao filho de general que se tornou figadal inimigo do regime militar e ao mero assessor que chegou ao posto que caciques como Ulysses Guimarães, Miguel Arraes e Leonel Brizola almejaram, mas nunca alcançaram. Agora, ao atingir, serelepe, o oitavo decênio de existência, viu-se subitamente reconhecido pela adversária da qual menos podia esperar um gesto amistoso. E esse inesperado reconhecimento foi lavrado em documento em papel timbrado da Presidência na elogiosa carta que Dilma Rousseff lhe enviou cumprimentando-o pela efeméride. No texto, reproduzido no site do ex-presidente e nos jornais, Dilma elogiou o “acadêmico inovador”, “político habilidoso” e “presidente que contribuiu decisivamente para a consolidação da estabilidade econômica”, jogando no lixo o discurso da “herança maldita”, repetido ad nauseam nos próprios palanques.

Dilma constatou que o antecessor apostou no “diálogo como força motriz da política” e “foi essencial para a consolidação da democracia brasileira”. E acrescentou: “Não escondo que nos últimos anos tivemos e mantemos opiniões diferentes, mas justamente por isso maior é a minha admiração por sua abertura ao confronto franco e respeitoso de ideias”. Os correligionários do elogiado comemoraram o fato como se fosse um triunfo eleitoral, esquecendo-se de que nunca nenhum deles teve humildade e tirocínio para reconhecer os feitos de Fernando Henrique como a adversária o fez.

O oportuno reconhecimento, antecipando o registro histórico desapaixonado que resgatará o papel do acadêmico no exercício da Presidência, está obviamente acima das querelas do cotidiano do poder e da política. Embora tenha sido divulgado dias depois da ida de Lula a Brasília, onde ele foi buscar lã e saiu tosquiado no episódio que terminou com a defenestração de dois protegidos do ex-presidente, Antônio Palocci e Luiz Sérgio, o documento não deve ser reduzido a um movimento do minueto da relação entre padrinho e afilhada. Demonstrando que até pode ter perdido o pelo, mas nunca a manha, o lobo de Garanhuns arreganhou os dentes, exigindo da companheirada fidelidade à sucessora que elegeu, dando a entender que não saiu da sintonia da presidente.

De qualquer maneira, Dilma saiu bem na foto ao perceber que o poder, mesmo quando conquistado com as notórias falsificações do marketing político, permite a quem o conquista tornar-se maior ao reconhecer o mérito alheio. Com isso, mesmo que essa não tenha sido sua intenção, ministrou uma lição a seu professor, que perdeu uma oportunidade de se mostrar à altura da veneração popular que conquistou, e a seus opositores, incapazes de perceber o óbvio até quando este vem se manifestar ao alcance do nariz.

Bastidores Líderes
© O Estado de S. Paulo, quarta-feira, 22 de junho de 2011, p. A2.

Aceitar erros não inclui, mas exclui

É um erro imaginar que o ensino correto da norma canônica do português prejudica o brasileiro pobre e iletrado. E um crime não permitir seu acesso à beleza e riqueza da literatura já disponível

 

O ministro da Educação, Fernando Haddad, deu enorme contribuição à discussão aberta recentemente após a aquisição e distribuição por sua pasta do compêndio Por uma vida melhor, de Heloísa Ramos, ao distinguir os dois maiores assassinos do século 20 – Hitler de Stalin – pelo amor à leitura. De acordo com Sua Excelência, o tirano austríaco sacrificava suas vítimas sem antes disso ler suas obras, enquanto o cruel georgiano só mandava executá-los após ler seus livros. É notório o amor do comunista pela leitura e não se tem notícia de que o nazista tenha devotado à mesma prática idêntico apreço, embora se possa afirmar, sem sombra de dúvidas, que o principal responsável pela ascensão do petista a seu posto de destaque não aprecia ler e disso faz praça. Embora seja difícil encontrar qualquer conexão da lógica aristotélica ou tomista entre a devoção bibliófila e a admissão de agressões à língua canônica em manuais escolares financiados pelo poder público, urge constatar que o subconsciente do burocrata com pretensões políticas fê-lo revelar o que inspira a abjeção à gramática no caso em tela.
Não procedem as tentativas de atribuir aos defensores dos cânones gramaticais quaisquer vezos elitistas. O gramático e acadêmico Evanildo Bechara, que os apoiou explicitamente em entrevista nas páginas amarelas da revista Veja, nunca pretendeu com seus argumentos negar a qualquer brasileiro pobre e semiletrado a condição de lusófono. Mais do que elitista a pretensão de usar corriqueiramente na fala um vernáculo canônico seria ridícula.

O mesmo não se pode dizer dos pregadores do populismo linguístico que pretendem misturar alhos com bugalhos submetendo o idioma escrito à língua oral. A língua é um instrumento de comunicação e, portanto, não apenas utilizado, mas também fabricado nas práticas sociais. Se os modos de falar não se alterassem com os tempos e costumes, estaríamos até hoje falando o latim clássico com suas declinações em que o general Júlio César escrevia. Nossa língua são nossas imperfeições.

Quem luta pela adoção de cânones gramaticais nos textos didáticos não o faz por vontade de excluir os iletrados do convívio social, mas, sim, para permitir o acesso dos desvalidos ao rico acervo produzido ao longo de séculos pela língua fundada por Luís de Camões e moldada por Vieira, Pessoa e tantos outros gênios. Os pseudopopulistas que usam argumentos demagógicos para contaminar a norma culta com a fala chula é que são excludentes, de vez que sua ação resultaria em vedar ao semi-alfabetizado as obras já escritas e impressas no português canônico. Como lembrou Haddad, coisa de Hitler e Stalin.
Bastidores Líderes
© Jornal da Tarde, terça-feira, 7 de junho de 2011, p. 2A.

Chutar o balde da ética e pisar na jaca da gestão

Cidadãos com cargo de mando em democracias não devem usufruir o benefício da dúvida

 

Vão muito além das licenciosidades com a regência verbal cometidas no texto da professora Heloísa Ramos no compêndio Por uma Vida Melhor os desafios enfrentados pela “última flor do Lácio, inculta e bela” mercê da novilíngua implantada pelos militantes do Partido dos Trabalhadores (PT) no poder. Ainda não deu para perceber direito, mas o recente escândalo do recorde de velocidade de enriquecimento pessoal e desempenho empresarial que derrubou Antônio Palocci da chefia da Casa Civil exigiu um esforço criativo extraordinário para definir em palavras, ou expressões, e explicar com base em conceitos republicanos nos textos o êxito de Sua Excelência como consultor. Não há verbos disponíveis para dar cabo da frequência com que o ex-poderoso varão foi acusado à exaustão de repetir práticas inconvenientes. Nem adjetivos que possam sintetizar o eterno retorno dele, que certamente embatucaria Heráclito de Éfeso, ao mesmo local do, digamos, “descuido”.

O doutor foi guerrilheiro, mas não há notícia de memoráveis feitos militares em sua juventude. Mais notoriedade ganhou quando foi acusado pelo ex-assessor Rogério Buratti de ter recebido propina mensal de R$ 50 mil da empresa Leão&Leão em troca de favorecimento da mesma em licitações em sua primeira gestão na prefeitura de Ribeirão Preto, de 1992 a 1996. Médico sanitarista de ofício, destacou-se na República como fiador do compromisso do candidato do PT à Presidência da República pela quarta vez consecutiva, em 2002, Luiz Inácio Lula da Silva, com a estabilidade financeira e o rigor fiscal. Guindado à cúpula da campanha vitoriosa e, depois, feito todo-poderoso ministro da Economia no primeiro mandato presidencial do ex-líder metalúrgico, foi apontado como um dos frequentadores de uma mansão alugada para promover festas e outras atividades estranhas à gestão econômica. Negou sua presença, mas caiu no descrédito quando ela foi atestada pelo caseiro Francenildo Santos Costa. A acusação de ilícito aposentou o verbo reincidir para definir o feito. O prefixo re, usado para denotar repetição, já não se adequava à tentativa de desqualificar o depoimento da testemunha, crime contra o mais sagrado direito da cidadania, a igualdade. A cruel lambança valeu-lhe cargo e poder, mas não lhe custou pena alguma.

Os antigos romanos, dos quais os modernos petistas apreciam além da conta o conceito conveniente de que a dúvida sempre beneficia o réu, no caso destes apenas os réus companheiros (aos adversários eles reservam o agravamento da suspeita para a culpa), diziam há 2 mil anos que “errar é humano, mas perseverar no erro é diabólico”. Não passou pela cabeça privilegiada dos varões de Plutarco que uma pessoa honrada viesse a cometer o terceiro erro consecutivo, não por acreditarem no primado da virtude sobre a tentação do pecado, mas por se sentirem protegidos pela instituição sagrada da res publica (coisa pública). De patrício nenhum se admitia que fosse mais diabólico do que o próprio diabo ao se negar a preferir o erro ao acerto mais de uma vez.

Os súditos de Júlio César, de cuja mulher se exigia que parecesse honesta, não bastando sê-lo, não tiveram premonição nem imaginação suficientes para prover os costumes políticos de um brocardo próprio para os maiorais da República lulopetista. Estes reivindicam o benefício da dúvida sem a contrapartida da obrigação de exalar virtude, além de praticá-la, para que ninguém ponha reparo em suas atitudes. A Luís de Camões, fundador da língua que o pregador padre Antônio Vieira ajudou a tornar pátria, com o reconhecimento do poeta Fernando Pessoa, também faltou imaginação para forjar na fornalha do galaico-lusitano um verbo que admitisse o terceiro erro seguido, o pós-reincidir. Já que, convenhamos, não seria bastante usar o prefixo que designa a terceira vez no neologismo tri-incidir, de vez que esse mostrengo esgotaria suas forças retóricas na esponja que o PT, Lula, Dilma e o mercado ansioso pelas portas que o sanitarista lhes abre dando acesso aos subterrâneos palacianos passaram nos três escândalos por ele protagonizados.

Pois, por incrível que pareça, depois de passar quatro anos no doce exílio da Câmara dos Deputados, período em que os conselhos que deu aos barões dos balcões multiplicaram seu patrimônio por 20, o ex-prefeito e ex-czar da economia, temperado na cúpula da eleição vencida, tetraincidiu. Nem os delírios das noites de tempestade ou a saudade da pátria na Goa distante fariam o soldado caolho imaginar a possibilidade de alguém cair tantas vezes e depois mais vezes ainda ser içado de volta à tona.

O vernáculo tem sofrido com os abusos que lhe têm sido impostos pelos lulopetistas e com o esforço de guias geniais dos povos que repetem o mesmo engano para torná-lo um triunfo sobre a opressão da exaustiva necessidade de acertar. Mas muito mais do que a murcha flor latina, aqui se violentam os bons costumes republicanos, renegados e triturados na prática política da barganha amoral e interesseira. Pior do que violar a gramática é chutar o balde da ética e pisar na jaca das boas práticas de gestão.

A saída de Palocci da chefia da Casa Civil evita a corresponsabilidade de Dilma, ao contrário do que imaginava o nefelibata Cândido Vaccarezza, ao renegar o óbvio de que a informação transmitida a ela das suspeitas sobre o importante assessor a tornaria refém do que contra ele se provasse cada dia que passasse a mais como subordinado dela. À presidente da República cabe exercer o poder delegado pelo povo de maneira soberana, mas com a inevitável contrapartida da onerosa responsabilidade partilhada. O desgaste político do protagonista do escândalo fê-la adotar a antiga prática de que qualquer suspeito deve ser afastado de seu posto de mando até provar a própria inocência nos delitos de que é acusado, inversão do conceito do benefício da dúvida que restitui ao cidadão o poder de seu voto.

Bastidores Líderes
© O Estado de S. Paulo, quarta-feira, 8 de junho de 2011, p. A2.

Leis demais: nenhuma lei

Nos EUA há legais e fora da lei: no Brasil excesso de normas permite a alguns ficarem acima delas

 

Há um paralelo que não pode ser omitido entre a prisão do diretor do Fundo Monetário Internacional (FMI), em Nova York, e a crise deflagrada em pleno centro do poder republicano no Planalto Central do Brasil pela constatação de que o patrimônio da empresa de assessoria do chefe da Casa Civil cresceu 20 vezes nos quatro anos em que hibernou entre dois ministérios.

Nos Estados Unidos dos pais fundadores da Revolução Americana de 1776, o favorito à eleição presidencial da França, em cujas mãos repousavam as esperanças da retirada do Primeiro Mundo da crise, Dominique Strauss-Kahn, foi preso ao tomar o avião que o levaria para fora do país, sob a acusação de tentativa de estupro da camareira de um hotel. No Brasil contemporâneo, o governo a que Antônio Palocci serve faz o possível e o impossível para evitar que este se explique sobre delito que jura que ele não cometeu e do qual é acusado pela oposição, que, por sua vez, não consegue definir qual poderá ter sido a norma legal que teria sido atropelada. Logo, o figurão petista corre o risco de perder posto e poder por sua fragilização política, mas não passa pela cabeça de ninguém que algum dia ele venha a responder por qualquer um dos crimes de que foi acusado, de vez que estes não foram tipificados. No Estado Democrático de Direito ao norte do Rio Grande, iguais perante a lei, cidadãos dividem-se em legais e fora da lei. Na República petê-lulista, assim como nas modalidades de antes, os nativos distinguem-se entre condenados a cumprir a lei e os que ficam acima da ordem que eles próprios impõem.

O policial que frustrou a ascensão do futuroso político e gestor providencial do capitalismo de nossos tempos não pensou um segundo que fosse no currículo brilhante do detido nem nas dificuldades que os países industrializados mergulhados na crise passarão a ter com a perda do cérebro privilegiado que poderia tirá-los do sufoco. A Strauss-Kahn não se deu nenhuma chance de aplicar uma carteirada tupiniquim do gênero “você sabe com quem está falando?”, mantra dos poderosos pilhados em flagrante no Brasil desde as capitanias hereditárias até a atual democracia de massas. Nem lhe coube vacilar movido por quaisquer considerações de ordem estratégica: o maganão foi preso porque violou a lei.

Contra o equivalente nacional ao caso do impetuoso “galã” gaulês não pesa nenhum dispositivo legal. Na prefeitura de Ribeirão Preto, Palocci protagonizou alguns escândalos que foram sepultados em nome de um antigo auxiliar visitado antes da hora pela Indesejada das Gentes. Avalista de sensatez do pretendente do Partido dos Trabalhadores (PT) à Presidência da República em 2002, o sanitarista tornou-se padrinho do casamento de Luiz Inácio Lula da Silva com a ortodoxia dita neoliberal e, em consequência, com a higidez fiscal. E, nessa condição, assumiu pose e poder de czar da economia. Mas o escândalo bateu-lhe à porta novamente, acusado que foi de participar de um grupo de companheiros caipiras que alugaram uma mansão suspeita em área nobre da capital.

Como ocorreu com Fernando Collor de Mello e Paulo Maluf, nada foi provado contra ele. Ainda assim, Palocci caiu do telhado, deixando o Ministério da Fazenda livre para um quadro técnico do PT infinitamente inferior a ele em força e prestígio. E perdeu a chance de ser ungido sucessor pelo chefe, abrindo caminho para Lula eleger Dilma. Mas a tentativa grotesca de desqualificar o depoimento definitivo contra sua presunção de inocência, devassando de forma truculenta e asquerosa o sigilo fiscal do caseiro Francenildo dos Santos Costa, não o impediu de voltar à Câmara dos Deputados e ocupar posto de relevo na campanha vitoriosa da petista à Presidência da República. As mãos manchadas, no mínimo, pela injusta perseguição ao modesto trabalhador contra quem jogou seu peso de todo-poderoso sobre um insignificante súdito continuam livres para agir enquanto sua presença no alto comando republicano não passar a ser mais perniciosa do que útil.

O ex-prefeito sob suspeita, ministro da Fazenda destronado por um escândalo e chefe da Casa Civil ameaçado por outro, formalmente, não violou a ordem jurídica. Afinal, no Estado Democrático de Direito à brasileira não há normas que regulem o lobby nem autoridade disposta a fazer cumprir os dispositivos legais que, em teoria, reprimem o tráfico de influência. Aqui não se leva a sério o ancestral axioma romano segundo o qual à mulher de César não basta ser honesta, deveria parecê-lo. “Afinal, eu nem me chamo César”, diria o melhor aluno da classe na escola do professor Lulinha.

Contra ele só conspira o fato de que patos mancos não nadam nos lagos palacianos de Brasília. O governo capaz de mandar seu bate-pau Vaccarezza postar agentes de segurança à porta das comissões para impedir reuniões que pudessem aprovar sua convocação para depor – uma violência nunca antes praticada nem mesmo por Hitler e Mussolini – despejará Palocci quando ele se tornar insustentável. E, então, nos arraiais oposicionistas tremularão bandeirolas festivas numa tentativa de esconder o fato de que, se sobra truculência nas hostes governistas, falta competência nas que fingem se opor. Fingem, sim, pois não há registro histórico de nenhum esforço de partido algum, da direita ou da esquerda, quando no governo ou na dita oposição, para tratar o tráfico de influência em cargos de poder pelo nome certo: crime. A meia impunidade que não impede que Palocci venha a perder o lugar quando se tornar mais inconveniente do que necessário o libera de punições de quaisquer naturezas na Justiça. E também garante a liberdade dos adversários que almejam postos no poder para repetir sua façanha de consultor de formidável êxito.

No faroeste nacional, não há mocinhos nem vilões. Há, sim, beneficiários de uma ordem em que leis demais permitem que elas não atinjam alguns poucos.

Bastidores Líderes
© O Estado de S. Paulo, quarta-feira, 25 de maio de 2011, p. A2.

Nobre civilizada, só um disfarce para vil barbárie

Neste País em que todos são iguais os políticos se dão o direito de enfiar a mão no bolso de todos

 

O Brasil não é um país só, mas muitos. E opostos! Na semana passada, o Supremo Tribunal Federal (STF) fez as vezes do Congresso Nacional e legitimou a união afetiva entre pessoas do mesmo sexo. Muito além do respeito à opção sexual, o acórdão foi ao âmago do pleno exercício da democracia, ao estabelecer o primado do livre-arbítrio no sexo e na família. Com isso consagrou numa questão profana um conceito sagrado: a igualdade de todos perante a lei. Durante pelo menos um fim de semana a Nação foi autorizada a se considerar civilizada, com irrestrito respeito à liberdade individual.

Mas já na semana posterior à jurisprudência histórica os leitores deste jornal caíram na real desses contrastes ao terem notícia de decisão diametralmente oposta. O Partido dos Trabalhadores (PT), que venceu a eleição presidencial pela terceira vez consecutiva, e o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), a principal agremiação de uma oposição meio de fancaria, uniram-se para enfiar a mão no bolso do contribuinte e zerar suas dívidas de campanha arrombando o mealheiro da viúva. Numa manobra de matar de inveja e vergonha os coronéis de antanho, os autodenominados representantes da classe operária e os proprietários locais da sigla que instalou o Estado do bem-estar social na Europa aumentaram em R$ 100 milhões os repasses da União para o Fundo Partidário com o objetivo de calafetar rombos de R$ 16 milhões nos cofres da legenda governista vencedora e R$ 11,4 milhões dos tucanos derrotados. Ao não vetar a gatunagem solidária, aprovada por unanimidade na Comissão Mista de Orçamento da Câmara e que nem chegou a ser debatida em plenário, a presidente Dilma Rousseff acumpliciou-se aos parlamentares, associando-se à arbitrária causa própria de companheiros e adversários, que instituíram o “financiamento público”das campanhas de forma sorrateira, clandestina e abusada, como bem definiu o diretor acadêmico da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, Aldo Fornazieri.

E na mesma página em que noticiou essa maroteira sórdida (a A4 de segunda. 9/5), o Estado registrou um símbolo do convívio entre a nobreza de princípios e a vileza de atividades, ao noticiar a solenidade em que o Ministério da Defesa condecorou o petista José Genoino no Dia da Vitória.

O ministro da Defesa, Nelson Jobim, civil na chefia de uma pasta que reúne sob suas ordens os comandantes das três Forças Armadas, deu uma demonstração pública do respeito de seus subordinados fardados à hierarquia do Estado Democrático de Direito, na homenagem a um ex-combatente. José Genoino nada tem que ver com a campanha da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Itália: nasceu em Quixeramobim (CE) em 1946, um ano depois de a 2.ª Guerra Mundial haver terminado. E “vitória” não é termo que possa ser usado para definir seu destino de militante: os guerrilheiros do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) que quiseram instituir a “ditadura do proletariado” sublevando camponeses do Araguaia, ele entre eles, foram dizimados pelo Exército.

De qualquer maneira, digamos que sua presença entre os condecorados pudesse representar o triunfo da tolerância sobre o temor, até por ter ocorrido neste ano em que as comemorações de aniversário do golpe militar de 1964 saíram dos quartéis e se abrigaram nos clubes militares. Há, contudo, lama na medalha que o chefe lhe pendurou no peito. Não consta do noticiário a respeito da solenidade nada que justifique funcionalmente a honraria. Nada que Genoino pudesse ter feito a favor da defesa nacional nestes dias em que está pendurado num cabide de emprego justifica a decisão de Nelson Jobim de escolhê-lo como signo de paz e democracia e prova de que o Brasil não quer retaliar o passado. Sua inclusão entre os 284 homenageados é um coice de mula na Justiça, que o pôs na condição de réu num clamoroso escândalo de corrupção chamado de “mensalão”.

Nada, a não ser servilismo, naturalmente. Estranho no ninho do governo petista, o bacharel que adora envergar uniformes militares de camuflagem está sempre disponível para se alistar no “cordão dos puxa-sacos”, que, segundo o refrão da canção usada por Sílvio Santos em seus programas de auditório, “cada vez aumenta mais”. E não falta a Sua Excelência experiência no ramo. Para servir ao chefe Ulysses Guimarães, emendou o texto da Constituição sem consultar os pares – conforme ele próprio viria a confessar depois. Agora foi a vez de inverter a hierarquia, e o chefe bajulou o subordinado sem sequer ter esperado que este fosse absolvido pela última instância do Judiciário.

Ao condecorar um réu, Sua Excelência mostrou que se foi o tempo dos dois Brasis – o real e o oficial – de Machado de Assis. Há agora muitos Brasis e neles o vilão do Judiciário, rejeitado pelo eleitorado para voltar ao Legislativo, é tratado como herói de guerra pelo Executivo que o emprega. O PT, em que Genoino milita e que Jobim bajula, tem também seu universo à parte. Recentemente “reabilitou” – como fazia Josef Stalin com os camaradas que ousavam dissentir, mas depois se arrependiam contritos, ajoelhados aos pés do chefão – o ex-tesoureiro Delúbio Soares, burocrata insignificante, mas réu importante no mesmo famigerado processo. A respeito da volta do tesoureiro, acusado que nunca foi julgado nem condenado, o secretário-geral da Presidência e porta-voz oficioso do ex-chefe Lula, Gilberto Carvalho, produziu mais uma pérola do cinismo que os petistas aprimoraram neste seu período de donos do poder republicano. “Se ele voltar a errar, o partido, da mesma forma que o recebeu de volta, vai ter que puni-lo de novo”, previu o burocrata, com aquele jeitão pio de ser.

Os Brasis truculentos, que tratam ética e lógica como trastes inúteis, esmagam o outro, que insiste em ficar ereto e garantir a igualdade de todos perante a lei, tornando-o assim o que querem que seja: um nobre disfarce.

Bastidores Líderes
© O Estado de S. Paulo, quarta-feira, 11 de maio de 2011, p. A2.

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