O salário do professor e o celular do senador
Estado é modesto com quem ensina e pródigo em gastos com casta política
A carta do professor Marco Antônio Nunes, de Pindamonhangaba, publicada em 9 de abril no Fórum dos Leitores, nesta página A2, sob o título O povo paga, resume os males do Brasil de hoje como no passado resumia o slogan de Macunaíma: “Muita saúva e pouca saúde os males do Brasil são.” Ele escreveu: “A filha do senador gastou em ligações de celular, durante alguns dias de passeio pelo México, R$ 14,7 mil, a mesma importância que ganhei durante todo o ano de 2008 como professor aposentado do Estado de São Paulo, após 30 anos de magistério.”
Difícil encontrar exemplo melhor do contraste fatídico de nossa história nacional da infâmia: de um lado, a modéstia (melhor dizer miséria) com que o Estado brasileiro remunera os profissionais responsáveis pelo maior patrimônio de uma comunidade na sociedade da informação: a educação. Do outro, os privilégios com que se refestela a casta política dirigente, em especial a que participa das decisões do Poder tido como popular por excelência, o Legislativo, que reúne os representantes da cidadania.
Esta é a curta e grossa história de uma injustiça que se encerra aí, pelo menos do ponto de vista do signatário da carta e de seus colegas de ofício. Professores são fruto da precariedade da educação neste país desde a própria infância, durante a qual são vitimados pelos defeitos sistêmicos de uma escolaridade deficiente: aprenderam pouco nas escolas que frequentaram e ganham pouco para transmitir o pouco que sabem nos estabelecimentos em que são empregados. No meio do caminho, não são treinados nem estimulados.
Do lado abastado, contudo, o episódio tem desdobramentos. Tião Viana não é um qualquer, mas um senador. A palavra que lhe define o ofício vem da latina senior, que significa mais velho. Não conota idade provecta, mas condição respeitável. Os mais velhos mereciam respeito nas tribos primitivas por causa de sua experiência, o que os tornava capazes de aconselhar os mais jovens – seu dever era evitar que as gerações inexperientes repetissem os erros deles. O Senado romano reunia os patrícios mais respeitáveis para conduzir os negócios republicanos, ou seja, da coisa pública. Nas democracias de poder tripartite e representação bicameral, como pretende ser a nossa, os senadores são representantes das unidades federativas, os Estados. Misturam-se, no modelo imitado do sistema bicameral adotado pelos Pais Fundadores da Revolução Americana por nossos constitucionalistas de antanho, o mando romano e a estirpe nobre dos barões britânicos. Pode-se argumentar que, já entre os romanos, nem sempre a respeitabilidade era sinônimo de superioridade, como o demonstram conspirações, caso da que terminou por abater Júlio César sob a estátua de Pompeu, à entrada do edifício onde se reuniam os senadores, frequentado por serpentes afiadoras de punhais. E que o sangue azul dos lordes ingleses não garante sua nobreza de atitudes, não sendo a Câmara de Lordes, assim como o Senado americano, um convento habitado por freirinhas virtuosas, como lembrou anteontem o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, referindo-se à nossa República cá.
Isso não quer dizer, contudo, que a lenda segundo a qual não existe pecado no lado de baixo da linha do Equador, corrente desde a Renascença, permita um acréscimo de letras capaz de transformar o que não é convento num conventículo, sinônimo pouco empregado de prostíbulo. A imagem é pesada demais, é certo, mas a verdade é que, como Catilina, o político romano, seus colegas de ofício no Brasil contemporâneo têm abusado demais da paciência dos cidadãos que lhes sustentam os luxos e caprichos sem receber em troca o exemplo de decência e austeridade que de todos eles é lícito esperar. O senador Tião Vianna (PT-AC), por exemplo, não tem o couro cabeludo ornado por cãs que permitam classificá-lo com sênior (mais velho), mas é um senador tido como respeitável. Quando enfrentou José Sarney, a velha raposa do Maranhão, Amapá e adjacências, aparentava representar as forças do Bem contra as hordas do Mal. Não hesitou, contudo, em emprestar o telefone móvel com conta paga pelo contribuinte à filha, em seu passeio turístico pelo México.
Da viagem de 20 dias resultou uma conta de R$ 14,7 mil, equivalentes aos 13 salários pagos pelo Estado ao professor veterano no ano passado inteiro. A conta passaria em branco se não fosse a desídia provocada pela cizânia: adversários da pretensão presidencial do acreano fizeram a notícia vazar para a imprensa, que a divulgou, cumprindo seu dever – embora disso discordem os presidentes do próprio Senado, José Sarney (PMDB-AP), e da Câmara, Michel Temer (PMDB-SP). Apanhado em flagrante delito, o protagonista do caso infame comportou-se como se espera de um político brasileiro contemporâneo, não como teria de fazer um “varão de Plutarco”, denominação de quem conquista o respeito pelo mérito: jurou que nunca havia emprestado antes seu celular a ninguém e disse que só o fez por “instinto paternal”. Melhor pai teria sido se não houvesse emprestado, como nunca fizera antes, o telefone de conta pública à filha, presenteando-a com um aparelho particular.
Assim, teria evitado protagonizar um episódio condenável e não seria flagrado em concessão de privilégio a parente, que os cardeais de antanho mais atribuíam a sobrinhos que a filhos (nepotismo vem de nepos, sobrinho do Papa). O senador pagou a despesa, mas não se livrou do mico. Seus colegas agiram como comparsas: não poderiam condená-lo, pois em 2008 gastaram R$ 8 milhões em contas telefônicas pagas pelo público, o que representa a média de R$ 6 mil por mês para cada. E mandaram investigar o responsável pelo vazamento em mais uma característica doentia de nossas instituições, esta de que não há crime pior que a indiscrição.
© O Estado de S. Paulo, quarta-feira 15 de abril de 2009, p.A2
Os deslizes de Tião, Tasso e companhia
A conta do celular da filha de Tião Viana e o frete de jatinhos por Tasso Jereissati não justificam o fechamento do Congresso, mas denunciam a falta de vergonha dos senadores
Imagine, preclaro leitor, abrir o envelope da conta do telefone celular de algum dependente seu, antes de ingerir o café da manhã, e descobrir que este ente querido cometeu a insânia de gastar R$ 14.758,07 em 20 dias do uso do aparelho. Será que o susto não entalaria o pedaço de pão em sua glote? Pois saiba que isso aconteceu exatamente quando você passou os olhos nos jornais da manhã de ontem. Afinal, quem você acha que pagou a conta do celular entregue ao senador Tião Viana (PT-AC) por seus pares e por ele generosamente cedido à filha em recente viagem de férias ao México?
Este dinheiro saiu direto de seu bolso para o buraco negro dos gastos e desmandos do Poder Legislativo, que, reza a teoria, o representa nesta democrática, mas desavergonhada, República. Desavergonhada, sim, porque não têm vergonha seus mandatários. Caso deste, tido e havido como concorrente probo do viciado José Sarney à presidência do Senado e que não teve pudor em justificar seu erro pela primariedade e pelo instinto paternal. Quem dará crédito à sua palavra, após ficar sabendo dos denodados esforços por ele empreendidos para esconder o malfeito? E este seria dele, dos pares, da filha, da torcida do Íbis ou do Acre que o elegeu?
E para que os idiotas da objetividade não me venham cobrar a insistência em bater no governo e deixar a oposição em paz, urge perguntar também quem vai perdoar o ex-governador do Ceará e ex-presidente nacional do PSDB, maior partido da oposição, Tasso Jereissati, pela arrogância desmedida na resposta que deu ao questionamento do uso de parte de sua verba para comprar passagens de avião para pagar o frete de jatinhos particulares em seus deslocamentos de Fortaleza para Brasília e no sentido oposto. Afinal, ele é podre de rico e não precisa pedir esmolas ao contribuinte para se dar ao luxo de viajar sem os incômodos exigidos de meros passageiros dos aviões de carreira. É, além disso, um líder partidário, do qual se exige o mínimo de austeridade, parcimônia e sensatez.
Alguns dirão que os deslizes de Tião e Tasso pouco representam, se comparados com as 181 diretorias do Senado ou os gastos dos nobres parlamentares com comunicações, moradia e outras despesas. Outros lamentarão que um colega dos dois, Cristovam Buarque (PDT-DF), não tenha tido a coragem de manter a proposta de fazer um plebiscito para manter, ou não, o Congresso funcionando.
Nada disso: os erros de Tião e Tasso são capitais e a piada de Cristovam é infeliz. Ruim com o Congresso, muito pior sem ele, diria o dr. Ulysses Guimarães nos tempos da ditadura. Mas um pouquinho de vergonha nenhum mal faria à cara destes insignes varões.
© Jornal da Tarde, publicado no Jornal da Tarde, quinta-feira, 9 de abril de 2009, p. 2A
Contra fatos não pode haver conjecturas
Desembargadora reclama de excesso de condicionais em sentença judicial
Quis Deus Nosso Senhor que este artigo fosse publicado aqui em 1º de abril, o dia da mentira, no qual, desde eras imemoriais, pregam-se peças e se dão sustos em amigos, abandonando-se os rígidos cânones da verdade absoluta. Não cabe a este limitado e inculto cronista de costumes políticos invadir aqui nem a seara antropológica de Roberto DaMatta nem a área psicanalítica do terapeuta Flávio Gikovate, entrevistado por Sonia Racy para o Caderno 2 de anteontem. A mentira, lembrou este, é “um óbvio sinal de inteligência da criança”. E, da mesma forma como pode ser uma demonstração de mau caráter de alguém que a utiliza para se dar bem, levar vantagem, como rezava a Lei de Gérson, também tem um lado bom. A chamada “mentira piedosa” facilita tudo, porque “as pessoas não gostam de ouvir a verdade”, disse Gikovate.
Os anglo-saxões têm obsessão pela verdade, certamente porque a prosperidade de uma sociedade depende do cumprimento dos compromissos pelos contratantes. Sem dúvida, um dos índices mais reveladores da higidez de uma economia é o da inadimplência: quanto mais alto este for, menos confiável aquela é. Nós, latinos, somos mais compassivos com quem mente ou com quem deixa de honrar um compromisso, até por nos considerarmos mais ladinos. A mentira pode ser um “instrumento da inteligência humana”, como explicou o psiquiatra ouvido por Sonia. Mas isso só se aplica à vida privada, nunca à vida pública, que deve primar mais pela transparência que pela cortesia. Sem hipocrisia não há relações sociais, mas, aplicada na gestão pública, ela provoca desastres. Autor e leitor seriam hipócritas, contudo, se não reconhecessem que a prática política desmente e desmonta essa teoria a cada segundo. O cidadão está condenado a ouvir mais mentiras de seus representantes ou governantes que de seus cônjuges.
Mais nefasta que a negação da verdade – admitida em forma de silêncio como elemento de defesa no Direito, desde sempre (é clássico o conceito de que ninguém é obrigado a confessar a verdade, se isso lhe for prejudicial num processo) – pode ser a verdade pela metade. A chamada meia-verdade tem sempre o efeito maléfico de uma mentira e meia. Pois esse estratagema de se apropriar de parte de um fato para convencer ou prejudicar outrem, de maneira maquiavélica, produz efeitos mais danosos à vítima que o impacto da grosseria de uma verdade dita de forma abrupta e em hora imprópria e também que uma maledicência cheia de veneno.
Pior ainda que a meia-verdade é a conjectura – alguém imputar a outrem algo que pensa que fez (ou até sabe que não fez) para tirar vantagem disso. A difamação pela conjectura é uma velha tática política de desqualificação do adversário para lhe tomar o poder, subjugá-lo e, por fim, esmagá-lo. Mestre consagrado nessa arte foi Josef Stalin, que conseguiu a proeza de fazer com que, em nome de ideais comuns, antigos companheiros, tornados desafetos nas disputas internas pelo controle do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), confessassem crimes que não cometeram, mas lhe foram atribuídos pelo tirano.
A prática stalinista da submissão do oposto por sua difamação tem sido usada com frequência em nosso país. O procurador Luiz Francisco de Souza ganhou o apelido do frade queimador de bruxas da Inquisição Torquemada pela devoção com que se dedicava à destruição de reputações, inspirando-se mais nas próprias convicções ideológicas que nos fatos. Hoje seu nome repousa em merecido ostracismo, mas o santo ofício a que se dedicou ainda tem seus prosélitos. Conjecturas motivaram as denúncias de “corrupção grossa” de ilustres próceres do Partido dos Trabalhadores (PT) e da Central Única dos Trabalhadores (CUT) contra a cúpula das telecomunicações no governo federal tucano. Quem nelas se inspirou mereceu críticas certeiras do juiz federal que absolveu os responsáveis pela privatização das telefônicas, porque nunca se esforçaram para provar o que delataram. Apesar da sentença histórica, também não faltaram expressões condicionais no relatório do delegado Protógenes Queiroz sobre as práticas heterodoxas do banqueiro Daniel Dantas.
Protógenes foi afastado da investigação, mas pode ser que não tenha sido um caso isolado na Polícia Federal, a julgar pela decisão da desembargadora Cecília Melo, do Tribunal Regional Federal (TRF) da 3ª região, de mandar soltar sete presos – cinco diretores e duas secretárias da empreiteira Camargo Corrêa. Sem medo de contrariar os “idiotas da objetividade”, que estão sempre prontos para conjecturar sobre a suspeição das decisões da Justiça de mandar soltar protagonistas das espetaculares operações da Polícia Federal, ela teve o cuidado de pinçar da sentença do juiz Fausto De Sanctis (o mesmo que condenou Daniel Dantas à prisão) o uso exagerado de verbos, advérbios e adjetivos condicionais em frases que exigiam substantivos afirmativos: “teriam sido; supostas; poderia estar havendo; poderia; suposto; eventual…”
O despacho com que a desembargadora concedeu o habeas corpus aos acusados pela Polícia Federal e pelo Ministério Público, com prisão ordenada pelo juiz, não os exime preliminarmente de culpa. Ela apenas, no cumprimento estrito de sua função judicante, exigiu tanto dos investigadores quanto dos promotores que apresentassem provas, e não meras hipóteses. Não cabe aqui discutir se os presos cometeram ou não delitos, mas, sim, lhes garantir o mesmo benefício da dúvida pelo qual o presidente Lula tanto se bate quando se trata de julgar e prender os réus do “mensalão”, por exemplo. Se cometeram crimes, têm de responder por eles. Cabe aos policiais e aos promotores investigá-los e mandar fatos, e não conjecturas, para a Justiça resolver se deve puni-los com penas proporcionais aos delitos comprovados.
© O Estado de S. Paulo, quarta-feira 01 de abril de 2009, p.A2
A corrupção, afinal, ampla e geral
Agora, os acusados nem sequer fingem indignar-se em defesa da honra
As denúncias do senador Jarbas Vasconcelos (PMDB-PE), primeiro em entrevista à Veja e depois em discurso na tribuna do Senado, não trouxeram novidades de monta: qualquer brasileiro medianamente informado sabe (e sempre soube) que a corrupção campeia na gestão pública brasileira. E que o partido do parlamentar está longe de ficar acima de qualquer suspeita nesse particular. No entanto, elas representam um divisor de águas na política brasileira, não pelo impacto que produziram, mas pela demonstração, na prática, de que a banalização do furto qualificado dos agentes públicos não desperta mais a ira de ninguém, nem sequer a falsa indignação dos acusados. Antes de Jarbas Vasconcelos (AJV), o gestor público acusado fazia um escarcéu, ameaçava processar o denunciante na Justiça e contava com a ineficiência e a lerdeza desta para deixar o escândalo esfriar até fenecer. Agora a acusação já nasce morta, na base de “isso não é comigo”, “e daí, e daí?” ou, então, “sou, mas quem não é?”
Já vão muito longe os tempos do moralismo udenista. Consta do anedotário político o aparte do getulista conhecido pela liberalidade com que lidava com os recursos públicos em proveito próprio a um discurso do colega deputado Carlos Lacerda na Câmara: “Vossa Excelência é um ladrão da honra alheia”, disse. E o tribuno rebateu na hora: “Então, fique tranquilo, pois nada tenho a roubar de Vossa Excelência.” Hoje a honra não vale nem sequer como falso argumento de palanque. Pois o eleitor reelegeu com ampla margem um governo que institucionalizou a compra do apoio parlamentar no Congresso por um esquema descrito em detalhes pelo ex-deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) no livro Nervos de Aço. Este caiu no esquecimento, assim como o escândalo do “mensalão”, nele descrito, sob o falso argumento de que o autor não era também uma flor que se cheirasse. Se isso fosse verdade, a delação premiada não faria tanto sucesso lá fora e aqui mesmo, onde acaba de levar para a cadeia uma tenente-coronel da Polícia Militar de São Paulo. Até por escrever com conhecimento de causa, Roberto Jefferson deveria ter sido lido e levado em consideração.
Pior é que se foi também o tempo em que o falso moralismo da esquerda interessada no que restava de decoro no inconsciente coletivo do eleitorado nacional pelo menos forçava os governantes a tomarem um mínimo de cuidado na manipulação do orçamento. Caiu no buraco negro da insensibilidade moral generalizada a lição dada pelo juiz da 17.ª Vara Federal de Brasília, Moacir Ramos, na sentença em que inocentou a cúpula do setor de telecomunicações do governo tucano anterior da “corrupção grossa” na privatização das telefônicas de que foi acusada há 11 anos por líderes do PT e da CUT. O magistrado inocentou o ex-ministro das Comunicações Luiz Carlos Mendonça de Barros, o ex-presidente do BNDES André Lara Rezende, o ex-diretor do mesmo banco José Pio Borges e o ex-presidente da Anatel Renato Guerreiro – afastados do governo pelo chefe de então, Fernando Henrique Cardoso. O juiz também perguntou, referindo-se aos acusadores Aloizio Mercadante, Vicente Paulo da Silva, Ricardo Berzoini e João Vaccari Neto, do PT e da CUT: “Se havia preocupação com a apuração dos fatos, por que esses nobres políticos não interferiram junto ao governo atual para que fosse feita a investigação das sérias denúncias que apontaram na representação que fizeram ao Ministério Público?” Não consta que algum deles tenha respondido.
Talvez seja exagerado sentir saudades daquele tempo em que um presidente da República demitia auxiliares de confiança, não por havê-la perdido, mas apenas para ser fiel ao velho preceito da Roma antiga segundo o qual o gestor do patrimônio coletivo deve ser tratado com o mesmo rigor que César dispensou à própria mulher: “Não basta ser honesto, é preciso parecer honesto.” Mas é útil e lícito lamentar que o falso moralista de ontem se tenha transformado, como parte do PT se transformou, em usuário comodista da lerdeza do Judiciário, a pretexto de recorrer, de forma desavergonhada, ao conceito também romano do benefício da dúvida para o acusado por algum delito.
Exemplar nesse sentido é o apoio que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem insinuado ao deputado Antonio Palocci (PT-SP) na campanha de 2010 para o governo do maior Estado da Federação. Premido a demiti-lo do Ministério da Fazenda por este ter sido acusado de alguns crimes, entre os quais a quebra do sigilo bancário de um caseiro que o havia visto frequentando uma luxuosa casa suspeita, o chefe do governo conta com a magnanimidade do Supremo Tribunal Federal para lançá-lo ao segundo posto de maior poder na República. Foi isso, pelo menos, que ficou claro na declaração a respeito dada por outra pretendente ao posto, a ex-prefeita da capital Marta Suplicy. Com o mesmo pragmatismo com que se livrou de seu czar econômico, pondo no lugar dele um companheiro muito menos capaz, Lula agora vê nele o nome ideal para governar o Estado de São Paulo.
De volta a nosso divisor de águas, Jarbas Vasconcelos, a explicação para tudo isso aí pode estar na conclusão com a qual ele resumiu sua recente contribuição à constatação da amoralidade generalizada vivida no Brasil. “A impunidade estimula a corrupção”, disse o senador, para quem a falta de punição gera mais e novas irregularidades. “Se o governador, o senador e o deputado são corruptos e nada acontece, as pessoas logo pensam que também podem fazer corrupção.” E quem não gosta de uma corrupçãozinha? Parece que chegamos à realização da profecia de Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta: “Ou nos locupletemos todos ou restaure-se a moralidade.”
Como não há restauração de moralidade à vista, nem prevista, tudo indica que chegamos, afinal, à democratização da corrupção que agora virou ampla e geral, embora ainda restrita.
© O Estado de S. Paulo, quarta-feira 18 de março de 2009, p.A2
O País do “eu sou, mas quem não é?
Se José Serra adota práticas eleitoreiras ilícitas similares às cometidas pelo governo no convescote dos prefeitos em Brasília, é o caso de processá-lo, não de usar isso na defesa
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e sua pretensa candidata à eleição presidencial no ano que vem, sua ministra do Planejamento, Dilma Rousseff, foram o centro das atenções dos 4 mil prefeitos reunidos em Brasília a pretexto de um encontro de natureza administrativa. O convescote municipalesco foi financiado com dinheiro público – calcula-se que foram gastos algo em torno de R$ 200 milhões, quatro vezes os R$ 50 milhões de esmolas anuais que o mesmo governo retira dos cofres da viúva para financiar a baderna subversiva do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem terra (MST). Não é lícito financiar grupos que violam a lei e cada vez mais só fomentam a violência e o desafio à democracia vigente no Brasil, caso óbvio do MST, como advertiu, com toda a razão do mundo, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes. Da mesma forma, ninguém precisa ser ministro do STF nem jurista nem sequer causídico para condenar o emprego de verbas públicas para patrocinar um comício de propaganda eleitoral de alguém que nem se candidatou.
Negar a natureza eleiçoeira da tal reunião assemelha-se a se queixar do calor no inverno polar da Antártida ou ligar o aquecedor diante da aproximação de lavas vulcânicas. Os governistas repetem a ladainha do batom na peça íntima por saberem que seu deslavado cinismo é protegido pela impunidade geral reinante neste País do faz-de-conta e do “me engana que eu gosto”, ora bolas! Não fora por isso, a candidatura da favorita do chefe teria sido impugnada antes de ser registrada.
A inerte, inapta e inepta oposição resolveu reclamar da armação ilícita do palanque e, embora se possa alegar que falta autoridade ao DEM para cobrar ética do governo, principalmente depois do episódio lamentável do corregedor incorrigível da Câmara, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) deve à Nação um julgamento isento da reclamação feita pelo referido partido. Espera-se da colenda Corte rigor semelhante ao empregado para cassar o governador da Paraíba, adversário do governo.
Nesse episódio lamentável não se pode deixar de execrar a estratégia da defesa feita pela Advocacia Geral da União (AGU), que alegou ter sido a mesma prática proibida pela lei adotada pelo principal adversário eleitoral de Dilma, o também ainda não candidato a presidente José Serra (PSDB). Se Serra realmente anda cometendo crime eleitoral semelhante àquele de que são acusados Lula e Dilma, é justo que os partidos governistas o processem. O que não dá para aceitar é submeter o Estado democrático de Direito à resposta que o canalha bêbado Tavares, interpretado por Chico Anysio, dava: “Eu sou, mas quem não é?”.
© Jornal da Tarde, publicado no Jornal da Tarde, terça-feira 3 de março de 2009, p. 2A
Um prodígio do ‘padim’ Cícero do Juazeiro
Paradigma será o governo que punir práticas que Lula tem preservado
“Até outro dia quem entrava no governo olhava o que foi feito no outro: nada”, disse o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ao passar por Florianópolis, em mais uma viagem pelo País para patrocinar a campanha presidencial daquela que ele diz ser sua candidata à sucessão, a chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff. Ainda segundo Lula, quem vier depois dele dirá: “Eu vou ter que trabalhar porque o paradigma é outro.” Modéstia inclusa!
Essas duas frases reúnem características da índole do chefe do governo federal: a competência de comunicador, a pouca familiaridade com o verdadeiro significado das palavras (apesar de haver decretado uma reforma ortográfica), a autocomplacência e a verve. A megalomania e a graça de ambas não são defeitos do presidente, mas fazem parte da receita milagrosa de sua permanência no topo do poder e no alto do pódio do prestígio popular – algo raro nas democracias contemporâneas, em que os meios de comunicação social de massa criaram uma sociedade que aplaude e dilapida, parodiando o verso do poeta Augusto dos Anjos: “A mão que afaga é a mesma que apedreja.” No meio do segundo mandato, período no qual normalmente os reeleitos são submetidos à execração popular, Lula é amado pelo povo, et pour cause, bajulado pela elite política de antanho, de sempre e, ao que tudo indica, do futuro próximo e longínquo.
Seu governo poderia estar sendo um paradigma – como propugna – se não tivesse, como tantos outros o fizeram antes dele, cedido às tentações do mandonismo desabrido, da fortuna fácil e da glória sedutora. E extirpasse, em vez de manter (até radicalizar), práticas daninhas ao bem-estar comum e à boa governança pública. Se o “mudar tudo o que está aí” houvesse promovido a demolição do sistema de corrupção que controla e domina o Estado brasileiro desde Tomé de Souza, com raras exceções históricas, aí, sim, seu governo seria um paradigma.
Mas o que se viu foi o contrário. Após trocar o terrorismo suicida da implosão do capitalismo selvagem pela acomodação das velhas práticas ao discurso neopopulista para ganhar a eleição presidencial de 2002, Lula percebeu que na gestão pública essa política de conciliação entre opostos para manter o centro intacto seria o rumo mais fácil a seguir. Assim, não sofreria as atribulações da má fortuna de que foram acometidos idealistas que sacrificaram poder e vida para não abandonar seus ideais.
Diante das evidências tornadas públicas da adesão de seus companheiros de partido a práticas do tempo do onça da malversação do erário com a competente, mas amoral, compra de apoio da base política no Congresso, o presidente preferiu adotar o “não ouvi, não vi, portanto, não sei e não preciso pensar”, num ganancioso e pernicioso cartesianismo às avessas. Aliás, essa reação ao óbvio ululante do “mensalão” já resultava de uma postura anterior: a troca da governança pela governabilidade. Ao manter o loteamento feudal da máquina pública federal entre os “novelhos” sócios no poder, o chefe do governo adotou a inércia comodista como rotina e substituiu a ideologia do porvir pelo pragmatismo do passado: cimentou sua base de apoio com a argamassa usada para erigir o Estado brasileiro desde o reinado dos coronéis da Guarda Nacional até a ditadura dos generais fardados.
Essa fusão de autoritarismo com paternalismo, criando a síntese hegeliana da sístole com a diástole, dialética de que falava o general Golbery do Couto e Silva, produziu um País diferente, mas que não pode ser chamado de novo. Este país diferente em que vivemos há seis anos difere do que tem cinco séculos por não haver mais lugar nem para a falsa ira. Quando o senador Jarbas Vasconcelos (PMDB-PE) denunciou seus pares como predominantemente corruptos, todos, inclusive os altos figurões da República lulista, fizeram-se de humilhados e ofendidos. Mas ninguém ergueu a voz sequer para ameaçar processar o ofensor. Ao contrário de seu mestre Maluf, exímio fingidor da indignação de quem defende a própria honra, ainda que não pratique seus preceitos básicos, os atuais príncipes não se moveram, fiéis às novas leis do convívio político, segundo as quais o segredo da sobrevivência no poder é manter-se agachado, mesmo se puxarem o tapete sob os quais se escondiam suas cabeças coroadas.
Quando o presidente foi pilhado fazendo campanha eleitoral para a candidata que ele diz ser a sua, a Advocacia-Geral da União (AGU) não alinhavou evidências de que aquele era um encontro de rotina de gestão pública. Preferiu acusar o adversário mais notório de fazer o mesmo. Ninguém duvida que o governador José Serra (PSDB) seja capaz de recorrer aos estratagemas adotados por Lula e Dilma. O que é cada vez mais duvidoso é que a democracia seja hoje, no Brasil, um jogo de regras limpas ditadas por uma justiça maior que se abate sobre a jugular dos que a desafiam.
A ameaça do senador Wellington Salgado (PMDB-MG) de revelar “podres” de Jarbas Vasconcelos, em vez de listar contra a entrevista dele as qualidades de seus colegas de legenda, é de natureza idêntica. Sob o signo do neocoronelismo socialista dos petistas, não importam as virtudes que professam sem praticar, mas os vícios de todos. Esta é a principal característica que distingue a administração que promete se eternizar no lulismo atual, herdeira dos vícios de Nova República, ditadura militar, democracia de 1946, Estado Novo, Revolução de 1930, República Velha e dois Impérios.
Diante de tudo isto, fica no ar a constatação de que o governo atual não é paradigma de nada, mas, sim, um prodígio de Antônio Conselheiro ou do padim Cícero Romão Batista, do Juazeiro do Norte: só reflete e ecoa os recônditos da alma profunda do Brasil para perpetuar seus erros e adiar seus anseios.
© O Estado de S. Paulo, quarta-feira 04 de fevereiro de 2009, p.A2