A diferença entre servir à Pátria e servir-se dela
O clã Sarney dá ao cidadão a honra de pagar os salários de seus serviçais
Esses escândalos no Senado propiciam uma ótima oportunidade para “passar o País a limpo” e “mudar tudo o que está aí”, como pregava o PT de Lula quando se fingia de PV (um partido de vestais). A existência de decisões secretas que produzem gastos públicos para pagar privilégios privados caracteriza a traição do princípio elementar da transparência, sem o qual é impossível o cidadão saber como o Estado usa o dinheiro que lhe toma na forma de impostos. A clandestinidade é uma maneira aceitável de desafiar a lei se acoberta grupos políticos que combatem alguma tirania, mas inaceitável se ocorre numa instituição republicana, que exerce um poder de representação da cidadania. No caso, o benefício da clandestinidade aprofunda a crise da representatividade, passando o Congresso de clube privado a bando mafioso.
Dois episódios recentes ilustram a malsã confusão vigente – na Monarquia e nas Nova e Velha Repúblicas, no Estado Novo e na democracia liberal de 1946, na ditadura militar e na atual gestão petista – entre a coisa pública e a vida privada. Ao se defender, da tribuna do Senado, com voz tatibitate e trêmula (favor não confundir com embargada), o presidente da Casa (e ex da República) disse que a crise não era dele mesmo, mas da instituição. E cobrou mais respeito por tudo quanto teria feito pela Pátria.
Suas frases gaguejadas encontraram eco na voz rouca e solícita do “absolvedor-geral da República”, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que se arvorou a subverter o conceito basilar sobre o qual está erigida a nossa e qualquer outra ordem institucional democrática que se preze – o de que “todos são iguais perante a lei”. Como o Senado não é uma vaga entidade, mas uma instituição representativa da sociedade, composta por membros eleitos pela cidadania, a crise que o atinge é de todos os brasileiros, em particular dos senadores e, mais em particular ainda, de quem o preside. Se nem isso Sarney conseguiu aprender em tantos anos de “serviço” público, a coisa pode ser mais grave do que parece.
Mas absurdo maior que tentar fugir da responsabilidade de enfrentar a crise é se pretender acima da lei, como Sarney disse ser, da tribuna. E Lula avalizou, direto do Cazaquistão, onde foi fotografado envergando um bizarro traje que trouxe à lembrança fantasias carnavalescas do Baile do Municipal, quando havia. Não há ninguém acima da lei: não estava, por exemplo, o heróico garoto que impediu a inundação dos Países Baixos pondo o dedo no buraco do dique. Isso não evita que este redator banque o advogado do diabo e pergunte ao presidente do Senado a que serviços ele se referiu quando avocou a inimputabilidade: os que prestou à ditadura militar, presidindo o partido por meio do qual ela pretendeu se legitimar, ou ao doce constrangimento com que assumiu o cargo máximo no lugar do presidente morto da dita Nova República?
Lula, sim, pode-se gabar de ter sido herói da Pátria quando ajudou a derrubar a longa noite dos porões, comandando operários em greve que desmancharam a frágil ordem legal vigente do regime dos quartéis. Nem isso lhe dá, contudo, o direito de se conceder ou transferir a outrem a condição de inimputável, que no império da lei simplesmente inexiste.
Na condição de conciliador das elites dos bacharéis e patriarcas de antanho com as elites de ex-guerrilheiros e sindicalistas de hoje, e principal beneficiário de seu pacto solidário – como demonstrou, com invulgar brilho, o cientista político Leôncio Martins Rodrigues, neste jornal, anteontem (p. D2) –, o presidente nada de braçadas nesse incidente. Pois tira proveito da desmoralização do Legislativo, da qual se beneficia legislando em seu lugar, ao mesmo tempo que socorre seus maiorais para continuar tendo-os a seu serviço e sob seu cutelo magnânimo.
Mais que as palavras do pecador irredutível e de seu caprichoso absolvedor, trouxe notícia recente a evidência que não faltava da mistureba de público e privado que a aliança da porteira do curral de votos com a porta de fábrica fortalece neste nosso Brasil varonil. A governadora do Maranhão, Roseana Sarney, herdeira do patriarca, dar ao contribuinte a subida honra de pagar o salário de seu mordomo é a prova mais deslavada de que, para seu clã, prestar serviços à Pátria é permitir que os patriotas lhe paguem os serviçais.
Nesta rede de termos que se cruzam e se explicam entre si, é significativo que o cargo exercido pelo servidor na casa da governadora maranhense em Brasília seja o de mordomo – raiz etimológica do neologismo mordomia, usado para designar os privilégios das castas política e burocrática em série de reportagens de Ricardo Kotscho publicada neste jornal em plena ditadura. Como nas comédias de erros (de Shakespeare aos humorísticos populares de televisão) – e que não se perca a piada pela própria designação do gênero teatral –, o mordomo Amaury de Jesus Machado atende pela alcunha de Secreta, de “secretário”, mas também denominação aplicada aos atos clandestinos que permitem esse e outros tipos de abusos.
Secreta recebe, na condição de motorista “noturno” do Senado (que nem sequer funciona tanto assim à luz do dia), R$ 12 mil por mês. Lembro-me de que, quando constituinte, Lula me confidenciou, em tom de espanto, que a “companheira” que servia café em seu gabinete ganhava mais que os mais qualificados metalúrgicos do ABC, seus liderados. Hoje, porém, estando em sua mão o timão do pacto dos patriarcas dos grotões com os hierarcas dos sindicatos, que governa o País, já não se espanta com o fato de o povo pobre pagar ao motorista e mordomo salários com os quais sonham em vão médicos, professores e outros servidores públicos menos votados.
Por que político nenhum, dentro ou fora do Congresso, fica indignado com isso?.
© O Estado de S. Paulo, quarta-feira 24 de junho de 2009, p.A2
Assombração insepulta em casarão colonial
A defesa do presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), terça-feira, foi um dos momentos mais constrangedores testemunhados por este veterano repórter político, habituado ao cinismo dos políticos por dever de ofício. Por mais distanciamento que o profissional da comunicação seja obrigado a ter das fontes com que se relaciona, seria um excesso de insensibilidade não sentir vergonha ao acompanhar um ancião com um currículo que inclui uma passagem pela presidência da República e duas pelo comando do Senado Federal reunir argumentos pueris e insustentáveis, com voz trêmula e gaguejante, como um colegial despreparado respondendo a uma questão sobre tema que não estudou na prova oral.
O orador atropelou os cânones do comportamento esperado de um senador, palavra portuguesa oriunda do termo latino senior, o mais velho, não no sentido do mais longevo, mas, sim, do mais experiente, do mais vivido, do mais capacitado, em suma. Os antigos romanos se deixavam governar por esses conceitos e, é claro, desde então a definição etimológica sucumbiu aos pecados, vícios e defeitos comuns no gênero humano. Isso explica, mas não justifica, a postura – entre tatibitate e pernóstica – adotada pelo varão, ao se defender da tribuna perante seus pares.
Essa defesa de Sarney não pode ser definida como inconsistente, de vez que ela simplesmente inexistiu. Tendo ouvido em algum lugar que a melhor defesa é o ataque, ele preferiu cobrar de volta a ter de apresentar alguma evidência de sua inocência das acusações que lhe são feitas. Diante da impossibilidade de negar a conexão que obviamente tem com a nomeação do neto, substituído pela mãe deste, num emprego concedido de forma clandestina, entre outras coisas, ele optou por adotar o velho lema do autoritarismo coronelista sertanejo: “Vocês sabem com quem estão falando?” Ou melhor: “Vocês não sabem com quem estão falando”.
Como o menino traquinas, flagrado com as mãos cheias de penas, tentando negar ao pai que matou o passarinho, o velho senador pôs o dedo em riste no nariz de todos os brasileiros perplexos com a farra da cota de passagens, o abuso do auxílio moradia e, principalmente, os atos secretos configurando a existência de um Senado clandestino. E apelou para a própria sorte, como se ela pudesse eximi-lo dos erros que cometeu ou avalizou, ora denunciados. “É injusto cobrarem isso de um homem que fez tanto pelo País” – foi o ponto capital de sua fala. Não permitiu apartes. Evidentemente, nenhum de seus nobres pares teria coragem e discernimento para lhe perguntar o que teria feito de tão relevante e útil para o Brasil para se tornar merecedor da inimputabilidade, que não pode ser dada a cidadão nenhum. Mas a esperteza o impediu de correr esse risco.
Sem as obrigações regimentais nem sociais dos varões da República por ele presididos, venho cobrar aqui: “vá contando aí o que fez pelo País, senador Sarney”. Terá ele arriscado a vida pela pátria nas horas intermináveis do bate-papo cordial nos cafezinhos do parlamento? Consta de sua biografia a passagem pelas masmorras de uma ditadura por ter travado o bom combate da luta pela manifestação livre da cidadania? Terá ele doado sua fortuna pessoal a alguma instituição de benemerência ou mecenato reconhecidos? Sabe-se que Sua Excelência, filho de um modesto juiz de província, acumulou razoável pecúlio e frequentou com assiduidade invejável os banquetes servidos pelos maiorais da República nos regimes a que serviu: a ditadura militar, cujos conceitos representou na condição de presidente do partido serviçal; a Nova República, na qual herdou o poder maior por uma peça pregada pelo destino à Nação, que esperava ver no lugar o titular da esperança, e não seu reserva e beneficiário; e agora a república petista, da qual é insigne servidor, como patrono de causas indefensáveis e paraninfo do gozo pelo gozo do poder.
Não tivesse a sorte, que sempre o bafejou na carreira política, produzido, além da glória, a cegueira para tudo o que não diga respeito a si próprio, a seus parentes, amigos, afilhados e apaniguados, o poeta, romancista e tribuno José Sarney poderia ter dado destino mais digno a sua peroração. Idoso, tendo cruzado o Cabo da Boa Esperança, poderia verbalizá-la, atirando-se temerariamente à luta pela reconstrução das instituições democráticas, desafiadas pela popularidade e pelo despreparo daquele que hoje comanda o seu e os nossos destinos. Teria, com isso, o velho timoneiro, auferido mérito, não para cobrar da Nação seus préstimos de homem público, que são dever e não prerrogativa, mas, sim, para dar a guinada espetacular capaz de salvar sua biografia do naufrágio que a espera, sob a areia movediça e ondas de lama em que o Poder Legislativo, do qual é dignitário, se afunda.
O orador desta terça-feira no Senado, recebido pelos colegas com um silêncio sepulcral, é uma assombração perdida num casarão colonial brasileiro. Mas uma assombração insepulta: no Brasil do “quem cala consente”, seu silêncio cúmplice lhe concede fama, prestígio e poder.
© Diário do Comércio, de São Paulo, sexta-feira 19 de junho 2009, primeiro caderno (Política), p. 6.
O “se colar, colou” de Lula e Dilma
Qual será o ‘plano B’ para 2010: a candidata ou o terceiro mandato?
“O governo pode continuar sem ter terceiro mandato”, pontificou a chefe da Casa Civil e candidata lançada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva à própria sucessão, Dilma Rousseff, num almoço sábado, na casa da ex-prefeita petista de São Paulo Marta Suplicy, com apresentadoras de programas de televisão. A frase é significativa, porque justifica esta nova onda de queremismo que assalta o noticiário político nacional desde que o deputado Jackson Barreto (PMDB-SE) obteve o número suficiente de assinaturas para seu projeto de emenda constitucional para permitir a nova reeleição de Lula em 2010. A frase expõe a evidência que o chefe dela tem feito o possível para ocultar nas declarações dúbias que faz a respeito do delicado tema: a tática eleitoral sucessória do governo petista é ficar no poder. Se a manobra golpista der certo, ele aceitará, constrangido, o dever de permanecer no posto. Se o calendário não a permitir, o jeito será transferir o voto para ela. “Se colar, colou”.
Há obviamente um ventríloquo atrás da retórica da ministra. Quando disse, por exemplo, que o terceiro mandato de Lula não é um projeto de governo, mas não há como impedir que as pessoas tomem iniciativas, ela reproduziu o álibi que parece conduzir as palavras e obras presidenciais quando se trata de sua permanência. Ele não quer ficar, mas muita gente quer. Muita gente significa o quê? O eleitorado, que celebra o atual ocupante no poder com uma popularidade consagradora e inusitada? Ou a corte palaciana, constituída pelos dirigentes partidários da base situacionista, pelos dirigentes sindicais que ocupam os bons empregos da burocracia estatal, seus parentes e companheiros? Ou as duas coisas?
João Santana, o letrista Patinhas, parceiro de Gereba no grupo musical Bendegó, desembarcado no planeta musical do Sudeste nos anos 70, e substituto de outro baiano, Duda Mendonça, que caiu em desgraça por causa dos pagamentos que recebeu por fora e fora do País, foi, na certa, encarregado de colar neste continuísmo a garantia do apoio popular. Ele sabe que é forçar a barra, como se diz na gíria, considerar como iguais o apoio ao presidente e a aceitação da quebra do preceito constitucional para mantê-lo no poder. O Datafolha deixou clara essa distinção ao constatar um apoio de 47% dos eleitores brasileiros ao projeto queremista versus 49% contra. Dilma, Patinhas e Lula podem não ser gênios da aritmética, mas sabem que 49 é mais que 47. Embora também estejam escolados o suficiente para saber que, em termos de pesquisa, isso representa um empate técnico. Seja como for, o citado levantamento não registra uma vontade política (para usar uma expressão da linguagem petista pré-governo) maciça da sociedade brasileira que justifique uma intervenção golpista na ordem institucional vigente.
Apoio inquestionável à permanência do chefe à frente do governo depois de 2011 é, sim, dos chefões dos partidos para cujos quadros o presidente duas vezes eleito abriu vagas na burocracia e alguns forrados cofres da viúva. Isso não basta para subverter o preceito constitucional da única reeleição e Lula, Patinhas e Dilma não o ignoram. Muito menos para alterar o calendário da possibilidade da mudança. Daí, o “se colar, colou”: “se não der para que tudo fique como está com Lula, é possível deixar tudo como está com Dilma.” Não importa esclarecer se o “plano B” é Lula de novo ou Dilma no lugar. Como todo “criador”, noço guia deve ter a ilusão de que sua candidata permitirá que ele próprio continue pilotando o barco com a desenvoltura de hoje. Talvez por isso repita tanto que não quer ficar no poder, embora deixe muitas pistas de que não pensa em outra coisa.
Tolo é pensar que a confusão que Sua Excelência faz entre parlamentarismo e presidencialismo, ao reclamar da falta para presidentes da boa vontade gozada pelos primeiros-ministros, resulta de seu desconhecimento do funcionamento dos sistemas políticos. Lula tem consciência de que comparar a longevidade no poder de Margaret Thatcher ou Helmut Kohl com o dispositivo constitucional que só lhe permite uma reeleição se assemelha a comprar uma penca de bananas e levar uma bacia de laranjas. Proposital, tal confusão não resulta da ignorância do líder, mas na aposta que ele faz na ignorância do liderado.
Da mesma forma, quando faz troça da oposição, acusando-a de temer o referendo popular que autorizaria o golpe continuísta, o presidente investe na falácia de que seguir os preceitos institucionais da Constituição de 1988 é menos democrático que rompê-los para atender aos clamores “queremistas” da sociedade. As aspas são usadas para lembrar que tais clamores não são majoritários, apesar de ser a popularidade dele indiscutível.
Ao defender a proposta de seu amigo Hugo Chávez, autorizado pelo Congresso venezuelano a disputar mandatos sucessivos e ilimitados, Lula deixa explícito que é blague a condenação que faz ao terceiro governo aqui, quando diz que quem o obtiver poderá tentar o quarto, o quinto, o sexto e daí por diante. A coerência não é seu forte, mas seria um exagero imaginar que ele não tenha percebido o absurdo de rejeitar para si próprio o que aceita para o vizinho. É o caso de pensar que o chefe do governo brasileiro aposta seu cacife na tática adotada pelo “Velho Guerreiro” Chacrinha: “confundir para comunicar.”
O debate sobre terceiro mandato é um achincalhe à democracia e a estratégia de comunicação de atribuir à candidatura Dilma o condão de continuar sem ruptura institucional, um lance legítimo do jogo de xadrez da disputa correta pelo poder no Estado Democrático de Direito. Talvez tenha o condão de operar o milagre da transposição do apoio a Lula para votos em Dilma. Só que, para tanto, Lula precisa esclarecer, de uma vez, que não há “plano B” em seu projeto para 2010.
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© O Estado de S. Paulo, quarta-feira 10 de junho de 2009, p.A2
Tragédia de 2006 vai virar farsa em 2010
Falta à oposição coragem de negar que vai privatizar ‘nossa’ Petrobrás
É muito difícil que algum brasileiro – a não ser a banda bandalha do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) – tire proveito do funcionamento da comissão parlamentar de inquérito (CPI) instalada para investigar atividades suspeitas da maior estatal brasileira, a Petrobrás. O Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e os Democratas (DEM), que não conseguem se entender internamente, e muito menos entre eles, para fazer uma oposição minimamente atuante (são incapazes até de apresentar uma estratégia para a disputa de cargos na própria CPI), cantaram vitória de início. Mas não demoraram muito para “arrecuar os arfe” (como se diz na gíria futebolística, de preferência do presidente Luiz Inácio Lula da Silva) quando as tropas governistas apresentaram suas armas na guerra da falsificação política e da mistificação ideológica. Sua reação à estratégia de opinião pública do governo antecipa a guerra suja da sucessão presidencial em 2010.
E tudo indica que o PSDB, particularmente, e seu aliado, o DEM, não se prepararam adequadamente para enfrentar essa guerra suja. Não tanto por falta de prática, mas muito mais por carência de conhecimento histórico e de um mínimo de convicções até para defender alguns óbvios serviços que chegaram a prestar à cidadania – agora dá até para desconfiar que por acaso, sem querer ou por falta de algo diferente e melhor para propor.
A CPI é um instrumento desmoralizado. Dificilmente a CPI da Petrobrás produzirá efeitos de monta contra o uso deslavado de recursos públicos para financiar interesses privados. O máximo que pode ocorrer nas iniciativas deste gênero é, de um lado, provocar os meios de comunicação a buscar informações sobre a malversação de seus lucros e, de outro, expor seus membros à luminosidade dos holofotes, o que facilita uma futura vitória eleitoral e economiza recursos para a propaganda de suas candidaturas. No primeiro caso, o efeito já foi produzido: antes de a CPI começar a funcionar, a imprensa já começou a dar conta da prodigalidade com que a direção da Petrobrás, sob controle do Partido dos Trabalhadores (PT), desembolsa nosso escasso dinheirinho em projetos de compadres e ONGs de companheiros.
Foi tentando evitar isso – e talvez prenunciando a batalha que vai ter de travar para evitar que a banda bandalha do PMDB avance sobre as cadeiras em que os companheiros petistas estão sentados – que o governo federal recorreu à falácia publicitária ideológica para minar os efeitos deletérios destas revelações produzidas a pretexto da CPI, e não por ela. O ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, com seu jeito de bispo da Pastoral da Terra, usou parte do próprio capital de credibilidade que tem fora do PT para participar da sórdida manipulação política de uma circunstância rotineira na administração pública. Porque é bom que se diga de passagem, pela importância que tem o tema, que não há nada de estranho muito menos de “impatriótico” (termo usado indevidamente pelo presidente Lula em pessoa) na decisão do Poder Legislativo de investigar uma empresa pública.
Por mais lustrada que seja a imagem da Petrobrás, surgida na luta ideológica do “petróleo é nosso” dos tempos de Getúlio Vargas, cuja herança era renegada pelos petistas em seus primórdios de fantasia socialista, e por mais desacreditada que esteja a honra dos congressistas, estes têm mandato para devassar a Petrobrás e qualquer outra empresa pública em nome da cidadania.
Passando por cima dessa obviedade ululante, o principal responsável pelo Orçamento da União juntou-se aos sindicatos e movimentos sociais domesticados na Esplanada dos Ministérios para combater a CPI fingindo defender o patrimônio coletivo da estatal do petróleo. A principal bandeira de atitudes demagógicas como o abraço da sede da empresa no Rio e os discursos da cúpula do governo e do PT no Parlamento é a alegada tentativa de impedir que a oposição privatize a Petrobrás. Trata-se de uma dupla mentira: PSDB e DEM não querem privatizar a empresa nem o Banco do Brasil e, mesmo se quisessem, não poderiam. Primeiramente, porque não estão no governo nem têm maioria para impor emendas constitucionais no Congresso. Em segundo lugar, porque podem ser acusados de vários pecados, menos do de ímpeto suicida. E nenhum agrupamento político no Brasil sobreviveria a uma ideia tão estapafúrdia como essa.
Fica no ar uma questão: se a mistificação governista para ocultar revelações incômodas sobre o mau uso dos cofres da Petrobrás é tão grosseira, como consegue ser tão eficiente? Como o cinismo oficial consegue ser tão convincente? E a oposição, tão incompetente?
A sem-cerimônia com que o governo comete a patranha tem base num episódio histórico que está para se repetir. Na campanha presidencial de 2006, flagrado com as calças na mão por culpa dos “aloprados” que produziram um dossiê falso para impedir a inexorável eleição do tucano José Serra para o governo de São Paulo, os petistas espalharam a mentira de que o adversário de Lula na disputa presidencial, Geraldo Alckmin, do PSDB, privatizaria a Petrobrás e o Banco do Brasil. Os tucanos reagiram de forma tão estúpida (o candidato chegou a vestir uma camiseta da estatal petroleira) que deram ares de verossimilhança à calúnia. E ainda desperdiçaram a oportunidade de mostrar no palanque os benefícios notórios e notáveis da privatização feita no governo anterior em áreas como a telefonia e a distribuição de eletricidade. Como no teorema marxista sobre o conceito hegeliano, a história agora promete se repetir tornando a tragédia de 2006 a farsa de 2010. Os governistas mentem e os oposicionistas não denunciam tal falsidade por incompetência, inapetência, ignorância e covardia.
© O Estado de S. Paulo, quarta-feira 27 de abril de 2009, p.A2
A presepada do Pacaembu
O astro do campeonato paulista, Ronaldo, tem razão em reclamar da desorganização da festa depois da final e o ministro e o secretário de esportes nada tinham a fazer no palco da taça
O craque Ronaldo, vulgo Fenômeno, autor de gols bonitos e importantes na conquista do campeonato paulista invicto pelo time mais popular da cidade, o Corinthians, ficou chocado com a desorganização que campeou no momento que ele teve para festejar com os companheiros e sua torcida o título e a própria volta por cima. De fato, qualquer observador desapaixonado que comparar as finais do Pacaembu e do Maracanã de anteontem ficará impressionado positivamente com a festa do quinto tricampeonato do clube de maior torcida do País, o Flamengo, apesar da notória bagunça que reina no futebol carioca desde priscas eras. E assustado e perplexo com a presepada promovida aqui na catastrófica parceria entre a Federação Paulista de Futebol (FPF) e a entidade que administra o Estádio Paulo Machado de Carvalho, a secretaria de Esportes da Prefeitura de São Paulo.
Contra recomendações das autoridades responsáveis pela segurança na final do campeonato, os irresponsáveis desorganizadores da festa construíram uma geringonça para içar o palco no qual o capitão do time vencedor mostraria o troféu conquistado à torcida. Foi um deus-nos-acuda, pois os gênios do marketing esportivo e político ignoraram a facilidade da combustão em papel e não foram capazes de prevenir o fogo que chegou a ser ateado justamente no momento em que a traquitana se elevava rumo aos píncaros da glória. O capitão campeão William apagou o fogo com sua camiseta e o troféu conquistado pela equipe em que atua, evitando a crônica da tragédia anunciada.
A presença de espírito do quarto-zagueiro corintiano salvou a vida de seus companheiros de aventura no parque de diversões em que o estádio se transformou por obra e desgraça dos mui amadores dirigentes do esporte dito profissional e da indigestão municipal. Não se sabe por que razão, o campeão e a taça estavam acompanhados no local pelo secretário municipal de Esportes, Walter Feldman, do PSDB, mas a serviço do DEM de Gilberto Kassab, e pelo ministro da modalidade no governo federal, Orlando Silva, emprestado pelo PCdoB ao PT de Lula.
Não há registro de nenhum desses senhores participando da campanha do Corinthians, a não ser a inglória tentativa que o secretário tem feito para ceder aquele estádio, patrimônio da coletividade, ao clube, cujos dirigentes nunca foram capazes de construir sequer um centro de treinamentos para preparar seus jogadores. Pelo caso conclui-se que ambos faltaram à aula de História em que se explicou a maior tragédia de nosso esporte: a romaria de “bicões” como eles à concentração da seleção nacional que perdeu a final da Copa de 50 para o Uruguai.
© Jornal da Tarde, publicado no Jornal da Tarde, terça-feira, 5 de abril de 2009, p. 2A
Uma crise pior que a da economia mundial
Têm faltado aos presidentes dos Poderes equilíbrio e discernimento
Compara-se a oportunidade a uma deusa com uma vasta cabeleira à frente do rosto, para não ser identificada, mas careca na parte de trás da cabeça, para evitar que quem a deixe passar a agarre pelos cabelos. E ela acabou de cruzar o caminho dos presidentes da Câmara dos Deputados, Michel Temer (PMDB-SP), e do Senado, José Sarney (PMDB-AP), sem que sequer eles tenham sentido seu discreto perfume. Dela nem têm sido capazes de vislumbrar o rastro. Já tendo sido presidente da República e presidindo o Senado pela terceira vez, Sarney jogou fora a chance de se redimir do passado que o condena e do presente que de nada o exime – e por mero hábito. Se tivesse posto fim à farra das passagens aéreas de seus pares (a troca de cotas por fretes de jatinhos particulares do tucano cearense Tasso Jereissati, por exemplo), passaria uma esponja em seu legado de esperteza e oportunismo.
Como Sarney, Temer perdeu a oportunosa ensancha, embora tenha tentado pegar uma carona na garupa do cavalo que passou encilhado à porta de casa: anunciou que adotaria medidas moralizadoras na distribuição de passagens de avião aos colegas deputados por ato administrativo da Mesa, que preside. Mas, sem apoio dos parceiros e pressionado pelo baixo clero, transferiu a decisão para a votação em plenário. Depois, adotou uma postura errática, com um ouvido no alarido do baixo clero, que queria manter o privilégio, e outro no clamor da cidadania indignada. Fez o que havia anunciado, mas com desnecessário e desmoralizante vaivém. Dir-se-á que falta a Sarney e Temer a autoridade necessária para impor qualquer medida restritiva aos colegas. Afinal, ambos são useiros e vezeiros passageiros, quando não condutores, de todos os trens da alegria que já partiram e voltaram para o centro da Praça dos Três Poderes. A História mostra, contudo, que a percepção da natureza das circunstâncias pode fazer do “bom ladrão” o companheiro abençoado, como ocorreu na Paixão de Cristo. À falta de instrumentos institucionais para corrigir desvios de grande monta, a cidadania passa a depender do belo gesto do todo-poderoso que se arrepender.
É óbvio que cotas de passagens internacionais não servem para facilitar a locomoção dos deputados pobres (como asseverou o ex-presidente da Câmara João Paulo Cunha, do PT de Osasco) entre Brasília e suas bases – nem para permitir que os bons maridos convivam com suas fiéis esposas -, mas como complemento salarial. São notórios os truques para permitir um desembolso maior de estipêndio sem ultrapassar o teto estipulado de R$ 16.500, sendo um deles este empregado em nome do direito de ir e vir dos nobres legisladores. O que impediu que Sarney e Temer ouvissem o clamor da turba não foi o cálculo frio da esperteza, mas o comodismo cimentado pelo mau hábito sedimentado pela impunidade.
Esta é a típica confirmação da lei política cunhada por uma raposa pessedista mineira, Tancredo Neves, segundo quem a esperteza é um bicho que quando cresce demais termina por engolir seu dono. Em favor de Sarney e Temer só se pode dizer que outros presidentes de Poderes nesta quadra também não se têm comportado à altura de seus encargos. O do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, por exemplo, poderia ter feito ouvidos de mercador aos estrebuchos retóricos de seu colega Joaquim Barbosa em torno de ninharias para, com isso, evitar a exposição das vísceras do Judiciário, que, como o Legislativo, também não tem lá muito de que se orgulhar. De tanto exigirem respeito um do outro, os dois contendores deixaram de lado o respeito por eles devido aos honrosos postos que deveriam honrar. Discutindo com o presidente da mais alta Corte judicial do País como se estivesse batendo boca com um parceiro de copo, o ministro Joaquim Barbosa, em certo momento, fez uma acusação grave: “Vossa Excelência, quando se dirige a mim, não está falando com seus capangas do Mato Grosso.” E tudo ficou como dantes no quartel de Abrantes: nem o acusador provou a denúncia para assim deixar claro que sua palavra de julgador supremo não pode ser posta em dúvida; nem o acusado – pelo menos até agora – exigiu a prova a que tem direito para manter a reputação acima de suspeitas, como convém a quem preside o Poder que julga, condena e absolve.
O bate-boca entre dois magistrados supremos já configura por si só um vexame de monta para a República e seus maiorais, não havendo necessidade de lhe ser acrescentada a jocosa e mui pouco sábia interpretação do chefe do Executivo, na prática um Poder acima dos outros. Em Buenos Aires, interrogado sobre a briga entre Mendes e Barbosa, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva conseguiu fazer dois comentários tão rasteiros como o bate-boca entre os dois ministros briguentos do STF. Segundo ele, “se fosse por esse tipo de coisas não existiria futebol, porque tem briga em campo de futebol todo dia”. E mais: “Esse tipo de briga ajuda a sociedade e a democracia, tudo bem.” Se já era difícil entender por que uma discordância – esta, sim, normal – de pontos de vista de árbitros terminou em xingatório sem propósito, mais duro de engolir é constatar que o homem público mais popular, mais amado e mais poderoso desta República confunde a Suprema Corte de Justiça com gramado e arquibancada. E, mais grave ainda, considera o Estado Democrático de Direito – espaço onde se exercem o direito ao dissenso e o respeito ao contraditório educadamente – com uma arena de luta livre em que as regras mínimas da civilidade e do bom convívio são substituídas por xingamentos sem propósito e acusações sem provas cabais.
A falta de sensatez, equilíbrio e conhecimento de causa dos presidentes dos três Poderes causa um impasse que pode produzir em nossas instituições efeitos mais nocivos que os da crise internacional sobre nossa economia.
© O Estado de S. Paulo, quarta-feira 29 de abril de 2009, p.A2