Site oficial do escritor e jornalista José Nêumanne Pinto

Política 2010/2009

Lina e Marina, duas rimas de Catilina

Lula se engana: na política, o ônus da prova é de Dilma, não é de Lina
Os 82% de popularidade de Luiz Inácio Lula da Silva são um feito notável. E inusitado. Mas não inédito. Com o mesmo olhar fixo e esgazeado com que partiu para cima do colega Pedro Simon, reagindo à simples menção de seu nome, Fernando Collor, saído de um inexpressivo governo em Alagoas, teve apoio popular para derrotar na disputa pela Presidência nomes de tradição na política nacional, como Ulysses Guimarães, comandante da resistência civil à ditadura, e Leonel Brizola, símbolo do Brasil expulso do Brasil pelos militares. E Lula, o metalúrgico, padrão do operário emergente nos poderes aquisitivo e político. Seu antecessor, José Sarney, havia fruído glória similar até afundar no opróbrio causado por uma inflação absurda. A diferença entre Lula e eles, Tancredo Neves, Juscelino Kubitschek, Getúlio Vargas, dom Pedro II e outros governantes amados, é que o atual está em pleno segundo mandato e nada há no horizonte que ameace sua lua de mel com o povo.
Será? É o que veremos. Esse apoio popular todo não garante maioria parlamentar para governar e, por isso, Lula é obrigado a beijar mãos que antes mordia, como as dos citados Sarney e Collor. E também não lhe garante imunidade ao erro. Como qualquer mortal, popular ou impopular, ele erra. Um católico, embora não muito devoto, deveria saber que só o papa é tido em sua igreja como infalível – ninguém mais. E não é só uma questão de errar. Por mais sorte que alguém desfrute – e só um insensato negaria que a fortuna o beneficia –, sempre haverá um momento em que o acaso poderá desfavorecê-lo. Quando nomeou Lina Vieira para a Secretaria da Receita Federal, ele não poderia calcular que 11 meses depois teria de demiti-la e, pior, que, demitida, aquela burocrata saída praticamente do nada poderia causar-lhe um transtorno inimaginável na tarefa que se impôs de eleger uma candidata que nunca antes disputou um mandato pelo voto e está longe de ter a capacidade de seduzir amigos e influenciar eleitores que ele próprio tem. De idêntica forma, não poderia esperar o mesmo da doce Marina Silva.
Pode ser que Lina tenha mentido ao confirmar à Folha de S.Paulo a reunião na qual a chefe da Casa Civil exigiu a “agilização” das investigações do Fisco sobre as empresas da família Sarney. Como obtemperou o ex-metalúrgico, cada vez mais fascinado pelo Direito Romano mesmo sem ter a menor noção de latim, o ônus da prova é do acusador. Mas Lina não acusou ninguém: só respondeu a uma pergunta de um repórter bem informado. Ainda assim, terá de provar à Justiça que Dilma lhe deu ordem para favorecer um acusado de práticas contábeis ilícitas (agilizar significa abandonar investigações que normalmente demandam tempo e paciência dos fiscais para as levarem a cabo). Como a ex-secretária da Receita argumentou, não se trata mesmo da palavra dela contra a da candidata ungida para suceder ao presidente bem amado. Há imagens gravadas (não há?) e testemunhos a serem colhidos em inquérito policial de rotina. O engano do presidente é de outra natureza. Hábil no trato com o eleitorado, ele de repente teve um lapso mental que o impediu de enxergar o óbvio: ou Dilma prova que não houve o encontro (complicação em que ela mesma se enrascou, pois poderia ter negado apenas a ordem) ou vai ter sérios problemas para convencer o eleitor de que dispõe das qualidades exigidas para presidir a República.
Lina Vieira era desconhecida antes de Lula tirá-la do limbo. Dilma também. Mas, por enquanto, a ex-secretária da Receita não foi pilhada em nenhuma mentira grave. E Dilma já foi. Seu currículo Lattes deu conta de um mestrado e de uma condição de doutoranda na Unicamp, mas a instituição informou que lá ela não concluiu curso algum. Ela atribuiu o engano à assessoria, mas currículo Lattes é como e-mail: só o abre quem digita a senha, pessoal e intransferível. E justificou a lacuna com a convocação para assumir cargo público. Os latinos, que tanto encantam seu chefe, advertiam que mentiras demandam boa memória. Parece que esse não é seu forte: as datas do abandono dos cursos inacabados não coincidem com o começo no exercício dos cargos. No Senado, ela se emocionou ao reconhecer ao líder do DEM, José Agripino, que mentiu para um torturador. O político foi execrado e ela, enaltecida: não é pecado mentir sob tortura. Mas quem acredita que a ex-guerrilheira tenho sido torturada para se atribuir láureas escolares que não teve? Impressiona neste episódio sua gratuidade: de que serve se gabar de títulos de excelência acadêmica num país cujo primeiro mandatário costuma desprezar?
Lina rima com Marina, que, demitida por pressão de Dilma do Ministério do Meio Ambiente, passou a povoar os pesadelos de Lula e de sua candidata desde que admitiu a possibilidade de invadir a praia eleitoral com um slogan tomado emprestado do ex-chefe: “Chegou a hora de uma mulher presidir o Brasil.” Por enquanto, Marina tem 3% na primeira pesquisa em que figurou, a do Datafolha, divulgada no último domingo. Mas, na certa, não terá sido essa insignificância que fez José Dirceu pregar a cassação de seu mandato, que, segundo ele, não pertence a ela, mas ao PT, que a elegeu.
Ora, direis, o ex-chefe da Casa Civil de Lula está certo, como está este na questão do ônus da prova. Mas se enganam por igual motivo. Com uma agravante: se Marina Silva for cassada por se candidatar à Presidência, será o primeiro parlamentar brasileiro a ser punido por diferir de seus pares, ou seja, por ser o único membro do Senado capaz de pedir a renúncia de Sarney sem temer ser fuzilado pelos olhos de Collor ou pelas ameaças de Renan Calheiros. Aliás, Lina e Marina também rimam com Catilina, nesta quadra tão lembrado entre nós. Mas não são elas que têm abusado de nossa paciência ultimamente. Ou são?

© O Estado de S. Paulo, quarta-feira 19 de agosto de 2009, p.A2

Fretados: “factóide” com espírito de porco

A interdição do tráfego de ônibus fretados nas ruas centrais de São Paulo lembra as peças que o ex-prefeito do Rio César Maia gostava de pregar, só que não tem graça e não é inteligente

O qüiproquó causado pela interdição da Prefeitura da Capital ao livre tráfego de ônibus fretados por particulares para irem ao centro da cidade é um exemplo atualizado daquilo que o ex-prefeito do Rio César Maia batizou de “factóide”. A ideia é mais ou menos a seguinte: quando o gestor público se sente ausente do noticiário a ponto de se arriscar a cair no ostracismo perante o seu público, deve inventar qualquer coisa, mesmo que seja uma quimera, algo inviável, contanto que leve os meios de comunicação a noticiá-la. A diferença mais importante, contudo, entre os “factóides” de César Maia, que chega a ser meio maluco de tão inteligente, e o episódio dos fretados paulistanos é que este não tem graça nem é um prodígio de inteligência, além de prejudicar a vida de muita gente que nada tem a ver com as ambições políticas do prefeito Gilberto Kassab e do secretário de Transportes, Alexandre de Moraes.
Para começo de conversa, os ônibus fretados não são o maior entrave ao fluxo no trânsito em São Paulo. Só que, de fato, representavam um problema para o tráfego localizado de algumas regiões centrais ou próximas ao centro. Como resolver esse problema? A autoridade encarregada do combate ao caos urbano deveria mandar às ruas congestionadas por culpa dos excessos dos motoristas desses tais veículos guardas devidamente autorizados a fazê-los circular e impedir que continuassem tumultuando o tráfego. Isso é lógico, mas certamente não é cômodo, entre outros motivos porque os guardas de trânsito hoje limitam-se a multar.
Na cabeça do advogado Alexandre de Moraes, que dirige o transporte na maior e mais congestionada cidade do País com a mesma qualificação que teria para chefiar a operação de subida de um foguete em Cabo Kennedy, na Flórida, faiscou, então, o lampejo genial. Para que mandar guardas organizar o trânsito se a autoridade pode simplesmente proibir que os ônibus continuem parando onde sempre pararam? A pedir um estudo técnico capaz de dar uma solução definitiva preferiu mudar o problema de lugar, como isso representasse uma solução. E com a vantagem adicional de ter um pretexto politicamente correto para tanto: por que privilegiar os fretados com passageiros de classe média, se o povão continua penando no inferno do transporte coletivo?
O inventor dos “factóides”, César Maia, não deve ser inculpado por essa peça de humor de mau gosto que a Prefeitura paulistana decidiu pregar nos usuários dessa modalidade de transportes. Se não têm competência para resolver o problema do transporte coletivo, pelo menos deveriam poupar a população de tais brincadeirinhas com espírito de porco.

© Jornal da Tarde, terça-feira, 4 de agosto de 2009, p. 2A

Escaras de Sarney nos escândalos do Senado

Ação do filho deixa claro que o pai só vê na imprensa arma na luta pelo poder

Na abertura de O 18 Brumário de Luís Bonaparte, o velho Karl Marx apropriou-se de uma máxima do mestre Georg Friedrich Hegel, de que a História sempre termina por se repetir, acrescentando que normalmente ocorre como tragédia, mas se repete como comédia. No Brasil, drama e farsa parecem andar sempre de mãos dadas, mesmo quando um prevalece sobre a outra e vice-versa. Não restam dúvidas, por exemplo, de que os escândalos sucessivos que desgastam a já combalida imagem do Senado da República, das cotas de passagens aos atos secretos, terminando com os negócios suspeitos das empresas dirigidas pelo filho do presidente da Casa, resultam da já notória tragédia institucional brasileira. Mas ela também pode provocar momentos capazes de superar a comicidade dos grandes humoristas nacionais, de Martins Pena do teatro imperial a Chico Anysio na televisão desta República atual.
Difícil é resistir ao riso, por exemplo, quando se toma conhecimento de que o presidente do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), deputado Michel Temer (SP), abandonou o conforto de uma licença para assinar, em cumplicidade com sua substituta no cargo e colega de Câmara, Íris de Araújo, uma nota oficial em que o partido recomenda aos críticos de sua postura que vão embora. E que não demorem, mas o façam “o quanto antes”. O ridículo da proposta mora em todas as evidências elementares de que o PMDB, por mais cínico, venal e submisso que seja ao poder que emprega e às prerrogativas dos cargos federais, se reconhece sem autoridade para expulsar os senadores Jarbas Vasconcelos (PE) e Pedro Simon (RS). Por isso, pede que se imolem no altar do oportunismo por terem cometido o único crime sem perdão no jogo sórdido da política nacional contemporânea: o da coerência com princípios. Se não os expulsou, mas pede que eles saiam, e logo, a cúpula dirigente do partido certamente passou o recibo de que as exceções à regra do fisiologismo mancham a agremiação com a alvura dos compromissos deles com a história dela. Um partido indigno de suas antigas tradições precisa ocultar a própria indignidade poupando os dignos do convívio com ela.
A cúpula dirigente não pode, contudo, ser acusada de incoerência em relação a seu militante mais controverso. A nota oficial emanada das mãos suaves de literato do presidente do Senado a respeito da violação da liberdade de informação pedida pelo filho Fernando e concedida por um protégé, o desembargador Dácio Vieira, é um primor de desprezo à verdade dos fatos e à inteligência das pessoas. Vamos aos fatos: Fernando Sarney é o encarregado dos negócios do clã chefiado pelo pai, que se orgulha de um feito em sua biografia – o de nunca haver processado um jornalista no exercício da Presidência da República -, embora tenha mentido na nota ao omitir que, após ter saído do governo, processou João Mellão Neto, articulista desta página, pedindo reparação por injúria. Indiciado pela Polícia Federal (PF) na Operação Boi Barrica, o filho empresário foi à Justiça reivindicar que o cidadão brasileiro não tome conhecimento das acusações que pesam sobre sua cabeça e, por consequência, mancham a reputação da insigne figura paterna.
Com a ilusão de que, ao não abençoar o impulso censório do filho, conseguirá salvar do incêndio dos escândalos atuais nobres posturas do passado, o presidente do Senado não apoiou publicamente o gesto do censor que gerou, mas também não o desautorizou. O homem que dava valor aos símbolos a ponto de tirar a naftalina dos jaquetões para fazer contraste com os moletons do antecessor, o último general do regime militar, João Figueiredo, não prestou a mínima atenção ao tiro que o filho lhe deu no pé, ao impedir com uma ordem judicial que a sociedade tome conhecimento das denúncias de gestão temerária.
O risível nessa nota escrita e assinada por um varão que faz praça do próprio estilo na escrita é que ele passa por cima de algo muito mais relevante que o decoro no traje de um chefe político no Estado Democrático de Direito: o pundonor no comportamento. O vice-presidente da Associação Nacional de Jornais e responsável pelo Comitê de Liberdade de Expressão, Júlio César Mesquita, lembrou, ao condenar a decisão infeliz do desembargador do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, que o presidente do Senado é jornalista e proprietário de jornais. Por isso, ao permitir que o filho ressuscite um dos monstros mais abjetos da violação da liberdade do tempo da ditadura militar, à qual Sarney também serviu – a censura à imprensa -, ele permitiu à opinião pública uma dúvida a seu respeito: será o jornalismo, para ele, um ofício ou só uma oportunidade de exercer o mando político?
Mais que os escândalos do Senado, as escaras que prejudicam Sarney e seus pares foram abertas por seus herdeiros e serviçais. Se Fernando Sarney não tivesse conseguido de Dácio Vieira permissão para proibir o noticiário a respeito das dúvidas que a PF tem sobre sua honradez como empresário, o País não tomaria conhecimento de que no Poder Judiciário brasileiro a gratidão ao empregador pode substituir a garantia da imparcialidade do julgador. Feito desembargador, o ex-funcionário de confiança na gráfica e ex-consultor jurídico do Senado não se considerou impedido por suspeição e cometeu a “afronta à liberdade de imprensa” que dois outros juízes já haviam negado anteriormente. Nada do que puder vir a beneficiar José Sarney em sua permanência na presidência do Senado pelo tempo que conseguir ficar (seja breve ou seja longo) compensará o tiro que o filho lhe deu no pé, ao deixar claro que do jaquetão presidencial ele tirou a naftalina, mas lhe restou o ranço do patrimonialismo coronelista malsão que continua fazendo da política brasileira uma atividade imprópria para gente de bem.

© O Estado de S. Paulo, quarta-feira 5 de agosto de 2009, p.A2

O boquirroto e o goleador

Ao dizer a Ronaldo que indicará empreiteiros para o Corinthians construir seu CT, Lula pode ter feito só uma jogada demagógica. Contar a gafe terá sido vingança do artilheiro?

Há três anos, em plena disputa da Copa do Mundo da Alemanha, o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, questionou o então técnico da seleção nacional, Carlos Alberto Parreira, a respeito do peso do mais famoso e paparicado astro do time, o centro-avante Ronaldo, que havia brilhado quatro anos antes no pentacampeonato conquistado em gramados asiáticos. A gafe foi agravada pelo fato de o palpite infeliz ter sido disparado numa videoconferência com o técnico e os jogadores, mas sem a presença do protagonista, que, gripado, não compareceu. Habituado a contar impunemente piadas sobre todos, Sua Excelência foi obrigado a ouvir de volta alguns desaforos do craque, que evidentemente não apreciava a própria fama de Ronalducho, como chegou a ser chamado à época. O astro, então fora do Brasil e gozando de excelente conceito nos clubes por onde passou na Holanda, Itália e Espanha, não ficou no clássico “eu jogo e ele governa”, mas fez uma insinuação a respeito da notória predileção presidencial por bebidas alcoólicas.
O chefe do governo despachou, então, seu ministro de Esportes, Orlando Silva, para Königstein, e este se esforçou tanto para desmanchar o “mal entendido” que chegou a ponto de proferir disparates do gênero: “Vim aqui para expressar o sentimento nacional sobre a seleção brasileira e para dar confiança aos nossos jogadores”. É claro que a presunção ministerial não bastou para levar o grupo, dividido por interesses pessoais e comerciais, ao hexa. E o assunto morreu. Até o retorno do robusto goleador à Pátria.
E ele voltou para atuar pelo Corinthians, paixão aberta e declarada de Lula. De parte a parte, foram feitas muitas tentativas de reaproximação, até que o time se sagrou campeão da Copa do Brasil em Porto Alegre, embarcando no dia seguinte para levar o troféu para o presidente da República erguer. Na ocasião, segundo o artilheiro contou, o chefe de Estado lhe confidenciou que indicaria empreiteiros para a construção do sonhado Centro de Treinamentos (CT), que outros têm, mas seu time não.
Foi uma frase infeliz de um presidente que deveria se dar mais ao respeito? Ou uma lance demagógico, similar ao do tucano paulista Walter Feldman, que, a serviço do prefeito Gilberto Kassab (DEM), lançou a idéia de ceder o Estádio Paulo Machado de Carvalho, que é público, ao clube mais popular do Estado? No meio dessa disputa entre governo e oposição para ver quem consegue explorar de forma mais rasteira o amor das massas por uma equipe de futebol, fica, contudo, uma dúvida no ar: não terá sido uma mera vingança de Ronalducho contra seu detrator na Copa? Afinal, a vingança é um prato que se deve comer frio.
© Jornal da Tarde, sexta-feira,10 de julho de 2009, p. 2A

Culpa de todos justifica perdão aos amigos?

Lula adota na política o ‘sou, mas quem não é?’ do cafajeste Tavares

A notícia de que aliados do presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), estocam munição para atacar os oposicionistas e, com isso, reduzir a pressão do noticiário de escândalos do Senado dá ideia do ponto a que a luta política leva os homens públicos no Brasil, mas se apoia em lógica plana. Foi-se o tempo em que o Partido dos Trabalhadores (PT) e seu constante candidato à Presidência da República buscavam diferenciar-se dos adversários para chegar ao poder pela distinção de seu estofo do do restante dos colegas. Sua aliança com a velha elite dirigente dos mandachuvas regionais (Jader Barbalho, José Sarney e tantos outros) e o baixo clero mais rastaquera (que tem em Severino Cavalcanti seu pontífice) os levou a mudar o tom do discurso político. E a delação do “mensalão” pelo ex-aliado Roberto Jefferson forçou-os a virar o discurso pelo avesso: “Eles não são diferentes de nós, somos farinha do mesmo saco” – eis seu lema oculto.
A vitória eleitoral em 2006 levou Luiz Inácio Lula da Silva e toda a sua corte de áulicos a investirem cada vez mais na tática genialmente definida pelo cafajeste Tavares, personagem imortal do humorista Chico Anysio, que consagrou o bordão: “Sou, mas quem não é?” Ou seja, “meus pecados deverão ser perdoados, pois também são podres os dedos de todos quantos nos delatam”. O feito inédito e espetacular de atingir índices estratosféricos de popularidade no segundo mandato, que normalmente conduz ao purgatório da execração e, depois, ao ostracismo (vide Fernando Henrique e Carlos Menem, dois exemplos recentes), fez com que o presidente imaginasse que os milhões de votos somados a porcentuais crescentes de prestígio popular lhe dão o condão da inimputabilidade transferível. Ou seja, ele passaria não apenas a merecer indulgência plenária por todos os pecados que viesse a cometer – incluindo os mais graves –, mas também a poder ungir com o dom seus amigos de fé, seus irmãos, companheiros. Por isso, saiu pelo País distribuindo essa unção a aliados de última hora cujos pecados foram remidos pelos serviços prestados ao governo que redime os pobres brasileiros de séculos de miséria e opróbrio.
Noço guia genial obra diariamente, mercê de sua notória capacidade de falar a língua de flagelados da terra seca e favelados da periferia das urbes, o milagre da transposição da redenção, distribuindo-a aos companheiros de jornada e negando-a a renegados. Cultor da lógica simplista da metáfora do ludopédio, Sua Excelência abusa de forma absurda do truísmo. Ao aceitar o convite para participar de um ágape frequentado por tiranetes africanos em Trípoli, recorreu a uma duvidosa norma social – ninguém pergunta quais são os outros convidados de uma festa à qual comparece – para negar a obviedade mais ululante de que ninguém é obrigado a dizer sim a todos os convites que lhe são dirigidos. E fingiu desconhecer a evidência de que nenhum chefe de Estado frequenta ambientes que não sejam antes devassados por seus batedores e diplomatas. Foi essa crença na própria capacidade de manipular a ignorância alheia (de mais de uma centena de milhões de patrícios) que o levou a apostar todo o seu cacife em lances de jogadores para os quais a definição de suspeitos chega a ser elogiosa e cuja disposição para os deveres cívicos inexiste.
Com a prática de anos de investimento na demolição da reputação alheia, Lula deve saber melhor que ninguém que a fonte da divulgação dos escândalos na administração do Senado fica a uma distância lunar dos adversários da oposição. É mais provável que ela jorre nos jardins dos companheiros derrotados na disputa pela presidência da Casa. Quando atribuiu ao PSDB e ao DEM a vontade de ganhar o jogo no “tapetão”, não estava fazendo um diagnóstico, mas prolatando uma sentença dirigida principalmente aos próprios correligionários. Como se diz no interior de Pernambuco, de onde ele saiu em tenra idade, para o burro entender basta bater na cangalha. Sua Excelência aposta na incompetência dos oposicionistas e na cega adesão dos governistas.
Do líder de seu partido no Senado, Aloizio Mercadante (PT-SP), não surpreende a pusilanimidade de sugerir uma licença de 30 dias para José Sarney na véspera e, no dia seguinte, assumir o comando da luta pela permanência do presidente da Casa em seu assento, mas, sim, a incapacidade de perceber o óbvio. Até os peixes do espelho d’água do Planalto sabem que Lula precisa do grupo de Sarney para continuar fazendo o que bem entende no Congresso e, sobretudo, para ajudar a carregar o poste Dilma Rousseff ao longo de uma exaustiva e complicada campanha eleitoral presidencial. O que pode, então, ter dado ao professor Mercadante a ilusão da autonomia que ele não tem, nunca teve nem jamais terá? Muito mais esperto, Eduardo Suplicy (PT-SP) sabe que pode bancar o independente, pois essa imagem é útil ao partido e Lula aposta que, na hora de a onça beber água, ele será o primeiro a evitar que alguma ovelha afoita impeça sua chegada ao rio. Suplicy só pede a renúncia de Sarney porque tem a certeza de que nem este renunciará nem ele será obrigado a votar por seu afastamento – não porque não se disponha a isso, mas porque essa votação nunca vai ocorrer.
A escolha da estratégia de defesa de Sarney – a crise não é da pessoa do velho patriarca, mas, sim, da instituição – revela, no fim das contas, a causa da luta pela manutenção do status quo no Senado e também a justificativa de Lula para exercer as funções – que se atribuiu no poder – de perdoador-geral dos amigos e carrasco-mor dos inimigos. O raciocínio é simplista: “se a culpa é de todos e é impossível punir todos, pois seria o fim do Estado Democrático de Direito, vamos manter os companheiros no céu e os adversários no purgatório da distância do poder”. O resto é papo furado.
© O Estado de S. Paulo, quarta-feira 8 de julho de 2009, p.A2

Culpa de todos justifica perdão aos amigos?

Lula adota na política o ‘sou, mas quem não é?’ do cafajeste Tavares

A notícia de que aliados do presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), estocam munição para atacar os oposicionistas e, com isso, reduzir a pressão do noticiário de escândalos do Senado dá ideia do ponto a que a luta política leva os homens públicos no Brasil, mas se apoia em lógica plana. Foi-se o tempo em que o Partido dos Trabalhadores (PT) e seu constante candidato à Presidência da República buscavam diferenciar-se dos adversários para chegar ao poder pela distinção de seu estofo do do restante dos colegas. Sua aliança com a velha elite dirigente dos mandachuvas regionais (Jader Barbalho, José Sarney e tantos outros) e o baixo clero mais rastaquera (que tem em Severino Cavalcanti seu pontífice) os levou a mudar o tom do discurso político. E a delação do “mensalão” pelo ex-aliado Roberto Jefferson forçou-os a virar o discurso pelo avesso: “Eles não são diferentes de nós, somos farinha do mesmo saco” – eis seu lema oculto.
A vitória eleitoral em 2006 levou Luiz Inácio Lula da Silva e toda a sua corte de áulicos a investirem cada vez mais na tática genialmente definida pelo cafajeste Tavares, personagem imortal do humorista Chico Anysio, que consagrou o bordão: “Sou, mas quem não é?” Ou seja, “meus pecados deverão ser perdoados, pois também são podres os dedos de todos quantos nos delatam”. O feito inédito e espetacular de atingir índices estratosféricos de popularidade no segundo mandato, que normalmente conduz ao purgatório da execração e, depois, ao ostracismo (vide Fernando Henrique e Carlos Menem, dois exemplos recentes), fez com que o presidente imaginasse que os milhões de votos somados a porcentuais crescentes de prestígio popular lhe dão o condão da inimputabilidade transferível. Ou seja, ele passaria não apenas a merecer indulgência plenária por todos os pecados que viesse a cometer – incluindo os mais graves –, mas também a poder ungir com o dom seus amigos de fé, seus irmãos, companheiros. Por isso, saiu pelo País distribuindo essa unção a aliados de última hora cujos pecados foram remidos pelos serviços prestados ao governo que redime os pobres brasileiros de séculos de miséria e opróbrio.
Noço guia genial obra diariamente, mercê de sua notória capacidade de falar a língua de flagelados da terra seca e favelados da periferia das urbes, o milagre da transposição da redenção, distribuindo-a aos companheiros de jornada e negando-a a renegados. Cultor da lógica simplista da metáfora do ludopédio, Sua Excelência abusa de forma absurda do truísmo. Ao aceitar o convite para participar de um ágape frequentado por tiranetes africanos em Trípoli, recorreu a uma duvidosa norma social – ninguém pergunta quais são os outros convidados de uma festa à qual comparece – para negar a obviedade mais ululante de que ninguém é obrigado a dizer sim a todos os convites que lhe são dirigidos. E fingiu desconhecer a evidência de que nenhum chefe de Estado frequenta ambientes que não sejam antes devassados por seus batedores e diplomatas. Foi essa crença na própria capacidade de manipular a ignorância alheia (de mais de uma centena de milhões de patrícios) que o levou a apostar todo o seu cacife em lances de jogadores para os quais a definição de suspeitos chega a ser elogiosa e cuja disposição para os deveres cívicos inexiste.
Com a prática de anos de investimento na demolição da reputação alheia, Lula deve saber melhor que ninguém que a fonte da divulgação dos escândalos na administração do Senado fica a uma distância lunar dos adversários da oposição. É mais provável que ela jorre nos jardins dos companheiros derrotados na disputa pela presidência da Casa. Quando atribuiu ao PSDB e ao DEM a vontade de ganhar o jogo no “tapetão”, não estava fazendo um diagnóstico, mas prolatando uma sentença dirigida principalmente aos próprios correligionários. Como se diz no interior de Pernambuco, de onde ele saiu em tenra idade, para o burro entender basta bater na cangalha. Sua Excelência aposta na incompetência dos oposicionistas e na cega adesão dos governistas.
Do líder de seu partido no Senado, Aloizio Mercadante (PT-SP), não surpreende a pusilanimidade de sugerir uma licença de 30 dias para José Sarney na véspera e, no dia seguinte, assumir o comando da luta pela permanência do presidente da Casa em seu assento, mas, sim, a incapacidade de perceber o óbvio. Até os peixes do espelho d’água do Planalto sabem que Lula precisa do grupo de Sarney para continuar fazendo o que bem entende no Congresso e, sobretudo, para ajudar a carregar o poste Dilma Rousseff ao longo de uma exaustiva e complicada campanha eleitoral presidencial. O que pode, então, ter dado ao professor Mercadante a ilusão da autonomia que ele não tem, nunca teve nem jamais terá? Muito mais esperto, Eduardo Suplicy (PT-SP) sabe que pode bancar o independente, pois essa imagem é útil ao partido e Lula aposta que, na hora de a onça beber água, ele será o primeiro a evitar que alguma ovelha afoita impeça sua chegada ao rio. Suplicy só pede a renúncia de Sarney porque tem a certeza de que nem este renunciará nem ele será obrigado a votar por seu afastamento – não porque não se disponha a isso, mas porque essa votação nunca vai ocorrer.
A escolha da estratégia de defesa de Sarney – a crise não é da pessoa do velho patriarca, mas, sim, da instituição – revela, no fim das contas, a causa da luta pela manutenção do status quo no Senado e também a justificativa de Lula para exercer as funções – que se atribuiu no poder – de perdoador-geral dos amigos e carrasco-mor dos inimigos. O raciocínio é simplista: “se a culpa é de todos e é impossível punir todos, pois seria o fim do Estado Democrático de Direito, vamos manter os companheiros no céu e os adversários no purgatório da distância do poder”. O resto é papo furado.

© O Estado de S. Paulo, quarta-feira 8 de julho de 2009, p.A2

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