Será que Lula está testando o seu teflon?
A oposição não consegue sequer tirar proveito das lambanças federais
Desde que noço líder genial dos povos da floresta, Luiz Inácio Lulinha Paz e Amor o Cara da Silva, envergou a toga, travestindo-se ao mesmo tempo de supremo magistrado perdoador dos amigos e condenador dos adversários tornados inimigos e senador romano defensor do lema “in dubio pro reo” (“na dúvida, a favor do réu”), seus desesperados adversários tucanos e dêmicos se torturam com a imbaixável (apud Magri) popularidade dele. E foi aí que cunharam a teoria do teflon. Pois é. Sabe aquela película que é posta nas frigideiras para evitar que a fritura adira a elas? Sua Insolência também teria tal propriedade, pois sujeira nenhuma gruda nele. Por mais evidências que surjam à tona sobre a eventual participação de assessor próximo, amigo do peito, senhorio compadre ou filho prático, sua imagem sempre sai, impávido colosso, de quaisquer complicações, sem máculas nem sequer nódoas de gordura. Nem os dólares na cueca do irmão do companheiro o sujaram.
Lula comporta-se como se desfilasse despido em praça pública, mas num carro protegido por um permitido insulfilm (o teflon da indústria automobilística) que evita que o guri xereta lhe aponte o dedo e berre à multidão que o aplaude: “O reizinho está nu.” Mas, magnânimo, como seria um califa de mil e uma urnas abarrotadas de votos, Sua Insolência aventura-se às vezes a testar a consistência da camada protetora que mantém sua efígie imaculada, enfrentando desafios nunca antes arriscados por quaisquer antecessores mais temerários. É o caso de apostar nisso neste momento em que ele surfa sobre mais de 80% de aprovação do eleitorado a um ano de se tornar paraninfo da eleição da chefe de sua Casa Civil, Dilma Rousseff, que enfrentará o ogro favorito da oposição, José Serra, na sucessão presidencial. Nunca antes na história deste governo seu chefe desafiou com tanto destemor os favores dos fados benfazejos.
Sua Insolência mandou, por exemplo, que os generais da política econômica desafiassem o dogma da poupança intocável. E fez mais: permitiu que os econometecas do governo cometessem a suprema blasfêmia de fixar como limite da taxação R$ 50 mil, lembrando os Cr$ 50 mil da medida governamental mais impopular da História do Brasil: o confisco da poupança por seu antecessor Fernando Collor e pela ministra dele Zélia Cardoso de Melo, que dizem alguns engraçadinhos ter sido a primeira piada a se casar com um humorista. A única explicação próxima da lógica para a lambança da taxação da poupança seriam os arrepios de náusea que essa modalidade popular de investimento para evitar a corrosão da moeda provocam hoje nas instituições financeiras. Se essa hipótese de maledicentes da oposição for absurda, resta o dilema atroz provocado pelo anúncio da medida: para que mexer nesse vespeiro em véspera de eleição difícil com candidato pesado para enfrentar adversário favorito? Só pode ser a disposição de Lula de testar a consistência de seu teflon.
Ousada? Pode ser. Tanto que o próprio Lula, ao que tudo indica, mandou a turma da economia voltar atrás na medida, não por ser absurda, mas por não haver razões políticas para adotá-la. E ainda houve outras piores. Que tal essa de o governo não devolver o dinheiro, tomado antecipadamente das pessoas físicas, do Imposto de Renda? O próprio presidente disse que esse empréstimo compulsório sem devolução à vista não atende aos princípios elementares da economia, pois o governo quer é ver o cidadão com dinheiro no bolso para poder comprar, gastando mais. O comentário seria de uma lógica cristalina se não fosse o comentarista chefe do governo que tomou a medida antipática, apostando na certa no fato de a grande maioria do eleitorado, residente nas favelas que ardem e nos morros que deslizam, não ter um tostão guardado com o infidelíssimo depositário federal. E mais: lembrou que já houve similares batidas de carteira do contribuinte no passado. Quer dizer, então, que para a tunga – e só para a tunga – não vale o refrão “nunca antes na História deste país”, é? Tá bom!
Os exemplos de Lula testando seu teflon se multiplicam, não havendo aqui espaço para citar todos. Vamos apenas a mais um. O Ministério da Educação (MEC) contratou uma empresa privada para cuidar das provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que vinha reunindo cacife para substituir o vestibular como uma forma mais transparente e justa de selecionar universitários. Alguns funcionários temporários da gráfica carregaram a prova impressa debaixo da blusa e dentro da cueca, evidenciando o vazamento, do qual saíram prejudicados milhões de estudantes que se beneficiariam com a inclusão da nota do Enem para terem acesso à universidade. Chamar os autores da façanha de “pés de chinelo” seria exagerado: não chegam a sê-lo. A Polícia Federal (PF) detalhou as falhas da segurança da empresa contratada e elas atingem as raias do incrível. Ainda assim, a PF das operações espetaculares, a PF republicana que não dá mole para bandidos, forjou um perdão para o contratante de fazer corar frade de pedra. “A fragilidade foi da empresa contratada, que ganhou a licitação. Não houve fragilidade do governo”, disse seu superintendente, Fernando Duran.
A mesma Federal não teme prender banqueiros que promotores e juízes consideram inescrupulosos, mas não dá ao Ministério Público uma informação que o autorize a pedir a prisão de Valdomiro Diniz, o factótum da Casa Civil do tempo de Zé Dirceu, que confessou ter achacado um empresário da jogatina e passeia sua impunidade pelo Planalto Central. Uma pergunta que não quer calar é se essa dubiedade pode explicar o teflon de Lula. Outra é se o insulfilm que impede a visão da nudez real não resultaria da suspeição inepta da oposição, incapaz de apontar o dedo por temer que vejam que ele não está muito limpinho.
© O Estado de S. Paulo, quarta-feira, 14 de outubro de 2009, p. A2.
Rio de Janeiro gosto de você
Em vez de comemorar os R$ 26 bilhões que vão gastar na Olimpíada do Rio, os governos federal e estaduais devem lutar para remover a miséria e a violência que turvam os encantos da cidade
São Paulo, que me acolheu muito bem e onde nasceram meus três filhos e um de meus dois netos, que me perdoe, mas, ainda que more há 39 anos aqui, adoro o Rio de Janeiro, sou Flamengo e já desfilei pela Mangueira. Deveria, então, receber com euforia a notícia da escolha do Comitê Olímpico Internacional (COI), com direito a lágrimas que nunca antes haviam rolado tão abundantes em faces presidenciais e à euforia do carnaval fora de hora registrada nas imagens da televisão, nos sons do rádio e nas páginas dos jornais e das revistas? Não. É exatamente este amor pelo Rio que leva o autor destas linhas a bancar o advogado do diabo em hora de festa no céu. Bendito seja o COI, que resolveu em muito boa hora (principalmente para o governo petista, às vésperas de uma campanha sucessória presidencial com uma candidata politicamente pesada como uma jamanta) fazer seu beau geste para a América Latina, passando por cima da estrutura, da riqueza e da beleza de Chicago, capaz de expor obras de Picasso, Chagall e outros grandes artistas nas esquinas de seu centro, das tradições de Madri e da opulência de Tóquio para, pela primeira vez na história, trazer o Olimpo esportivo para nossa América do Sul.
Mas esse gesto negocialmente duvidoso e politicamente correto só terá sentido se, passada a febre dos festejos e do pranto de júbilo, nossas autoridades federais e estaduais (e não apenas as do Rio de Janeiro) tomarem a peito a missão de remover as camadas de miséria e violência que, particularmente nos últimos anos, têm soterrado os encantos naturais da cidade que já foi chamada de maravilhosa e que pode voltar a sê-lo, dependendo para tanto, não de uma vontade suspeita de manipular R$ 26 bilhões de reais, mas de não fazer feio após o voto de confiança dado pelo resto do planeta.
O País precisa enfrentar problemas reais, caso do fim da maldita herança colonialista de nada conseguir planejar, como lembrou o especialista Hilário Franco Jr, da USP, em entrevista ao Aliás do Estadão anteontem.O Brasil inteiro ganhará se o Rio voltar a ser o que era antes de a capital federal mudar para Brasília – e não só por causa das migalhas que sobrarem do banquete olímpico, mas, sim, como resultado dos efeitos de uma guerra aberta aos barões do tráfico, que não moram em favelas, mas em apartamentos de luxo na orla, e de um combate sem trégua a delitos de qualquer dimensão, que permita, por exemplo, os agentes da lei subirem os morros sem precisarem de autorização do traficante do pedaço. Em vez de garantir que as favelas vão acabar, Lula deveria prometer que até 2016 nenhum brasileiro precisará de alvará especial do crime organizado para subir o morro.
© Jornal da Tarde, terça-feira, 6 de outubro de 2009.
Banzé bazuca em Tegucigalba
Mel Zelaya está em Honduras porque Chávez quer e Lula garante proteção
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva é um gênio da política e disso não dá para duvidar. Reconhecer essa verdade, contudo, não esclarecerá se ele foi sincero (e, portanto, de um desconhecimento sesquipedal dos fatos) ou se apenas destilou um gosto peculiar pela ironia quando, na Cúpula América do Sul-África, execrou “retrocessos” institucionais em nosso continente – caso da deposição de Manoel Zelaya. Pois o fez ao lado do tirano líbio Muamar Kadafi, no poder há 40 anos, e do ditador de Zimbábue há 29 anos, Robert Mugabe. Falar em ironia no episódio chega a ser um cruel acinte à memória das vítimas de tantas ditaduras que prosperaram na América Central à sombra das bananeiras em flor. E, justiça seja feita, se se trata de mera ignorância, ela teria de ser imputada também a vários colegas de Lula, entre os quais o americano Barack Obama. Sem falar nos coleguinhas jornalistas que, rejeitando os fatos, classificam de “golpista” o governo de facto de Honduras.
Mel, como é apelidado o latifundiário eleito pela direita que aderiu ao bolivarianismo de Hugo Chávez, foi deposto, é verdade, e não submetido a um processo regular de impeachment, como o foi o primeiro presidente brasileiro eleito pelo voto popular depois da ditadura militar de 1964, Fernando Collor. Isso ocorreu, porém, à luz do ignorado artigo 239 da Constituição de Honduras, que reza peremptoriamente: “O cidadão que desempenhou a titularidade do Poder Executivo não poderá ser presidente ou vice-presidente da República. Quem quebrar este dispositivo ou propuser sua reforma, assim como aqueles que o apoiem direta ou indiretamente, terá de imediato cessado o desempenho de seu respectivo cargo e ficará inabilitado por dez (10) anos para o exercício de qualquer função pública.”
Collor nem sonhou tentar o que Zelaya tentou: mudar a Constituição e convocar um plebiscito para permitir sua permanência no cargo, ao arrepio do Congresso e da Justiça. O ex-presidente hondurenho pediu apoio aos militares e, não o tendo obtido, demitiu o comandante das Forças Armadas. A Justiça mandou depô-lo, empossou o presidente do Congresso e não permitiu que ele se vestisse, embarcando-o de pijama para o exterior. O mundo inteiro se revoltou com a desfaçatez dos “golpistas” de Honduras por crassa ignorância das regras constitucionais vigentes num país minúsculo e miserável. Teceu-se, aí, com rapidez, a cortina de fumaça do governo “golpista” e do “martírio” do presidente eleito pelo povo e deposto por militares num novo e típico pronunciamiento latino-americano.
No afã de não repetir Bush, Barack Obama, assessorado por madame Clinton, absolutamente jejuna em quaisquer assuntos ao sul do Rio Grande, condenou a deposição, mas depois foi tratar de problemas mais relevantes. Com o “não temos nada com isso” dos xerifes do mundo, tudo se encaminhava para uma solução simples e cômoda do episódio: as eleições presidenciais poderiam ser realizadas e a paz democrática voltaria a reinar naquele antigo pedaço do império da United Fruit Company.
Aí entrou em ação o coronel golpista Hugo Chávez, que despachou de volta para o centro dos acontecimentos o presidente deposto. Este cruzou a fronteira, mas voltou por cima dos pés para, em seguida, empreender uma entrada espetacular em Tegucigalpa, mercê do engenho estratégico do amigo venezuelano e do peculiar conceito sobre democracia da companheirada brasileira. Dirigente sindical no fim da ditadura militar, quando o general Geisel cunhou sua “democracia relativa”, Lulinha Paz e Amor inventou a “democracia de conveniência”, adaptação petista da sentença de Artur Bernardes: “Para os amigos, tudo; para os inimigos, o rigor da lei.” Ahmadinejad roubou a eleição no Irã? Isso não interessa ao Brasil, que não pode intervir na soberania iraniana. Ahmadinejad nega o holocausto? O fato de sermos amigos não nos força a pensarmos da mesma forma.
Mas o mesmo não vale para Honduras, que não tem projeto bélico nuclear nem bate boca com o vilão ianque. E foi assim que, quando o mundo inteiro esperava um banho de votos para lavar a mauvaise conscience pelo completo desconhecimento internacional das regras constitucionais hondurenhas, o governo brasileiro, para apoiar Chávez, foi à caça do apoio de tiranos africanos para repor Mel Zelaya no poder. Para tanto mandou às favas todas as regras do civilizado convívio internacional. Como nunca antes na história deste planeta, abrigou na “embaixada” brasileira não um fugitivo de um regime ditatorial, mas alguém que decidiu impor a própria vontade de continuar mandando em casa, sem dar bola para as instituições e a opinião pública locais. Esses episódios sempre terminam com um salvo-conduto ao abrigado na embaixada e seu asilo pelo país que o hospedou. Mas este não pode ser o caso: Zelaya não quer fugir de Honduras, mas ficar lá, sob a proteção de Lula, porque Chávez mandou.
O absurdo não para por aí. Lula tem exigido respeito absoluto ao território brasileiro da “embaixada” depois de ter chamado o embaixador de volta e mantido em Tegucigalpa apenas um encarregado de negócios. O governo de facto ainda não ocupou o prédio só para evitar pretextos intervencionistas, pois, como não reconhece a autoridade “golpista”, o Brasil não tem mais embaixada em Tegucigalpa.
O ex-chanceler mexicano Jorge Castañeda tem razão ao se dizer – em entrevista a Lúcia Guimarães no caderno Aliás deste jornal, no domingo – espantado com a intromissão brasileira em Honduras. Estamos é fazendo um banzé brasuca estúpido em terreiro alheio, que, aliás, não tem interesse nem importância nenhuma para nós. Ao mundo, que tenta se esconder do vexame de ignorar as regras da democracia de um país pobre, o Brasil parece bater no peito e proclamar com arrogância: “Sou ignorante, sim, mas quem aí não é?”.
© O Estado de S. Paulo, quarta-feira 30 de setembro de 2009, p.A2
Um ministro que se põe acima das instituições
Tarso Genro se empenha mais do que deve para soltar Battisti
Definitivamente, nosso ministro da Justiça, Tarso Genro, se acha, como dizem os jovens hoje quando se referem a alguém que tenha um ego exagerado. Ora, direis, este não é um problema meu, nem seu, nem nosso, mas apenas dele, algo que deve tratar com um psicanalista no divã. O problema é que, com todo o gás inflado nesse ego pelo chefe Luiz Inácio Lula da Silva, Sua Excelência tem ultrapassado todos os limites da sensatez, qualidade da qual a Nação não pode abrir mão quando se trata do ministro da Justiça, certo? Pois é. No caso da extradição ou asilo do homicida italiano Cesare Battisti, em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), o impetuoso gaúcho, que lida com as palavras como se estivesse domando potros numa estância, concedeu-se o papel que os coronéis de antanho atribuíam ao chefe de polícia: prender, manter preso e soltar, o supra-sumo do mando, o poder em sua essência mais profunda e afrodisíaca, como definia o dr. Ulysses Guimarães.
Procurado na Itália, como Josef Mengele o fora na Alemanha pós-guerra, Ronald Biggs na Grã-Bretanha e mais recentemente Rodríguez Abadia na Colômbia e nos Estados Unidos, Cesare Battisti procurou refúgio no Brasil, a exemplo dos nostálgicos do nazismo do clássico Interlude, do mestre do suspense no cinema Alfred Hitchcock. Aqui foi encontrado, preso e mantido no presídio da Papuda, em Brasília. O governo italiano, então chefiado por Romano Prodi, pediu sua extradição. O atual, sob a chefia de Sílvio Berlusconi, tem-se empenhado em levá-lo de volta aos cárceres pátrios. Com base na obviedade ululante de que a Itália é um país amigo, democrático, dispõe de uma Justiça que não costuma cometer arbitrariedades persecutórias e é respeitado por não ter cedido à tentação totalitária para combater o crime organizado, órgão técnico do Ministério da Justiça, o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), recomendou ao titular da pasta que extraditasse o prisioneiro. No fim de novembro de 2008, foi publicado esse parecer do Conare, que se recusou a atender ao pedido de refúgio feito por sua defesa. Mas Genro não o aceitou e resolveu dar asilo político ao ex-integrante das Brigadas Vermelhas, que alega inocência.
A decisão do subordinado foi avalizada pelo chefe. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva apoiou publicamente seu subordinado, apesar das implicações que o desenlace do episódio teria inevitavelmente nas relações entre Brasil e Itália. Mas isso é o de menos, pois ninguém espera que os italianos, com uma relação de parentesco com o país que acolheu tantos imigrantes de lá egressos, rompam relações por não terem atendido pelo parceiro seu pedido de extradição de um bandoleiro qualquer. Além do mais, como ensinou o presidente da Dassault, Charles Edelstenne, no recente imbróglio da compra dos caças para a Força Aérea Brasileira, nesta sociedade materialista de nossos dias governantes não são mais estadistas, mas meros representantes comerciais, que compram e vendem produtos de e para outros países para garantir empregos e eleitores nos próprios. Mas é muita vela para defunto parco.
Battisti não é um herói da esquerda, muito menos da democracia. É apenas um assassino foragido e localizado, como Adolf Eichmann, sequestrado em Buenos Aires pelo Mossad e depois julgado em Jerusalém, caso que inspirou o clássico ensaio de Hannah Arendt sobre a banalidade do mal. Mas o douto ministro acredita que idiossincrasia ideológica possa ser algo relevante a ponto de não levar em consideração os fatos, as relações bilaterais e o conceito básico da civilização de que delitos contra a vida devem ser punidos. Seu empenho em manter o fugitivo no Brasil foi tal que, numa decisão inusitada, o relator do caso no STF, ministro Cezar Peluso, dedicou parte importante de seu voto pela extradição a execrar o exagerado interesse da autoridade pelo delinquente. Sua Excelência sentiu o agravo e reagiu como se a preservação de sua imagem tivesse prioridade sobre a higidez das instituições do Estado de Direito. Em vez de calar e aguardar, partiu para o revide e anunciou a iminência de uma crise institucional entre os Poderes Executivo, ao qual serve, mas que não chefia, e Judiciário, que ousou revogar seu alvará de soltura do preso in pectore (do peito).
O presidente do STF, Gilmar Mendes, negou a perspectiva de uma crise entre Poderes por conta de um morador do presídio da Papuda, em Brasília: “Nós estamos num outro patamar civilizatório no País. Há muitos anos, nós não temos esse tipo de crise, e não se vai cogitar disso agora. Nós, no Supremo, temos proferido decisões extremamente importantes.” E atirou na direção do gabinete de outro ocupante da Esplanada dos Ministérios uma farpa com curare, o terrível veneno indígena, na ponta. “A visão do ministro Tarso Genro não é sequer uma visão unitária do Ministério da Justiça”, comentou, lembrando o parecer contrário ao pedido de refúgio do italiano emitido pelo Conare e definido pelo jurista como tendo sido “coerente e muito bem embasado”.
O desnecessário bate-boca coincidiu com o anúncio pela Polícia Federal, como o Conare subordinada ao ministro da Justiça, de um programa de computadores, o Fim da Linha, para impedir a entrada de foragidos do exterior no Brasil. Mesmo tendo sido mera coincidência, não deixa de revelar uma enorme incoerência do governo Lula.
E queira Deus que se tenham equivocado todos os jornais, inclusive este, quando informaram que o voto a favor de Battisti poderá ser decisivo na escolha do substituto do falecido ministro do STF Carlos Alberto Menezes Direito. Era o que faltava no lamentável incidente: mostrar a escolha de um juiz do Supremo pelo primeiro magistrado da Nação condicionada aos caprichos de um ministro e ao perdão a um sicário.
© O Estado de S. Paulo, quarta-feira 16 de setembro de 2009, p.A2
O caso do caseiro assombrado
Na urna, o eleitor não terá de ser tão benévolo como o foi o STF com Palocci
Nunca antes na história deste país, diria o presidente Luiz Inácio, um episódio provou com tanta clareza a distância imensa e crescente do País oficial para o Brasil real quanto a rejeição pelo Supremo Tribunal Federal (STF) da abertura de processo contra o deputado Antônio Palocci (PT-SP). Talvez importe menos o resultado em si do que a expectativa criada em torno do caso, como se a sessão do órgão máximo do Poder Judiciário pudesse determinar por si só o futuro político do protagonista e – mais do que isso – seus efeitos sobre o cenário institucional republicano. A começar pelos meios de comunicação, que transformaram o julgamento numa espécie de turfe de resultado antecipado – e ninguém pediu desculpas ao distinto público por ter a previsão de nove a zero virado uma disputa apertada de cinco a quatro –, tudo foi tratado como um espetáculo. E não um evento de gala, mas uma espécie de encenação da Paixão de Palocci num circo mambembe que nem lona tinha.
Salvos pelo gongo de um voto só, os profetas que anteciparam a goleada que não foi empate por um triz se esqueceram de uma velha lição de nossos ancestrais, que não se atreviam a adivinhar o sexo de bebês (antes do advento da ultrassonografia), resultados das urnas e sentenças judiciais. E, com a mesma presteza com que foi preparada a consciência cívica nacional para a derrota previamente anunciada da verdade do cidadão honesto, porém pobre, do Brasil da área de serviço para a versão do ilustre, mas suspeito, dignitário do País dos ofícios e salões, agora se vendem as profundas repercussões do ato sobre o destino do cidadão que não será investigado e dos demais, impotentes para deter a avalanche dessas tradições.
Josef Goebbels, o maquinista da locomotiva de propaganda do 3º Reich nacional-socialista, cunhou a sentença segundo a qual, de tão insistentemente repetida, uma mentira pode se consagrar como se fosse um cânon. Antes que os discípulos secretos do mago da comunicação do regime de Hitler no Brasil consigam produzir mais uma evidência da superioridade da mentira oficial sobre o fato real, talvez seja muito conveniente submeter todas essas falsas e insistentes premissas à luz das verdades que sempre foram obviedades que ululam.
Diz-se agora, por exemplo, que graças à decisão suprema da Justiça o deputado Palocci está definitivamente liberado para tentar os voos altaneiros que o conduziriam ao Palácio dos Bandeirantes ou até, se algum impedimento se interpuser no caminho trilhado do chefe Lula para Dilma, ao Planalto. Trata-se de uma falsa constatação. Se um dos ministros do Supremo resolvesse desafiar a lei consensual vigente no Brasil (e lembrada por Marco Aurélio Mello) de que “a corda sempre estoura no lado do mais fraco” e, assim, o ex-czar da bem-sucedida economia da administração federal petista pudesse ser processado, como pretendia a Procuradoria-Geral da República, não haveria impedimento para sua candidatura. Como impedimento para o mesmo fim também não haveria se o nobre parlamentar nem sequer houvesse sido julgado pela colenda Corte.
O julgamento de uma semana atrás pode ter produzido um enorme alívio na vida do maior confidente do presidente da República, deste próprio e dos petistas em geral, que têm encontrado notórias dificuldades para indicar concorrentes à altura para enfrentar os tucanos José Serra na sucessão presidencial e Geraldo Alckmin na estadual paulista. Mas atribuir à decisão do Supremo o condão de ter transformado um candidato com poucas probabilidades de vitória numa eleição majoritária em favorito a subir ao pódio é um palpite que não pode virar prognóstico.
A decisão dos cinco contra quatro se assemelha à de um árbitro de futebol que, ao vir a bola bater na mão do zagueiro dentro da área, usa o arbítrio da interpretação para não marcar o pênalti, partindo do pressuposto, muitas vezes equivocado, de que a interceptação não fora intencional. Num caso como no outro, pode-se discutir e polemizar, mas, por definição das regras, pênalti que não for marcado não pode ser convertido nem decisão de tribunal, alterada. Será inócuo discutir quem estava certo no caso, porque este escriba se penitencia pelo fato de não compreender o idioma particular no qual os supremos magistrados redigem e proferem seus votos. Isso coloca este escrevinhador na mesma condição do caseiro Francenildo Costa, que, após ouvir o voto de Marco Aurélio Mello, que o conduzia ao panteão dos heróis nacionais, imaginou que pudesse estar sendo xingado pelo ministro. O caseiro fala a verdade com o idioma da copa e da cozinha. Seus adversários criaram um dialeto próprio para falseá-la fingindo ser os guardiães dela.
Os ministros do STF que livraram o pescoço de Palocci da espada de Dâmocles não tiveram zelo idêntico ao do líder da bancada do PT no Senado, Aloizio Mercadante Oliva, que condenou a ex-secretária da Receita Lina Vieira por não ter denunciado a chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, ao ouvir sua insinuação para dar velocidade à fiscalização das empresas do clã Sarney. Ninguém se lembrou de cobrar de Palocci seu dever de cobrar do subordinado Jorge Mattoso, então presidente da Caixa Econômica Federal, a ominosa quebra do sigilo do pobre coitado que não perdeu só o emprego, mas até a profissão.
Mas o povo, que não entende o latim do advogado do deputado, o também político José Roberto Batochio, talvez não seja tão benévolo com o candidato Palocci como o foi o STF. No tribunal da urna, pode ser que o caseiro assombrado ao ser forçado a assumir de público a humilhante condição de bastardo assombre a miríade de ambições de seu carrasco. Por que essa decisão judicial tornaria um deputado eleito no rabo da lista favorito para a Presidência ou o governo paulista?
© O Estado de S. Paulo, quarta-feira 2 de setembro de 2009, p.A2
Lula, o cartomante que vira terapeuta
Lula tem talento para fazer do petróleo do pré-sal apelo eleitoral para sua candidata Dilma Rousseff, mas não de usar sua venda para tirar a maioria do povo brasileiro da pobreza
De manhã, em seu programa semanal de rádio Café com o presidente, falando diretamente para o povo, seu principal interlocutor na campanha permanente em que transformou seus dois governos, Lula qualificou a extração de petróleo na camada de pré-sal como uma “nova independência”. Foi, então, fiel à fantasia que criou para seu eleitorado cativo do “nunca antes na história deste país”, do “oba-oba” e do “vamos nessa”. À tarde, dirigindo-se a uma platéia seleta de convidados, adotou uma postura mais realista classificando o potencial de riqueza em matéria-prima fóssil para combustível de “dádiva de Deus”, mas que pode virar “uma maldição”. Ao amanhecer o dia, interpretou o cartomante da demagogia. Antes da chegada da noite, fez o papel do terapeuta da sensatez.
Essa personalidade dúbia é a faceta favorita do temperamento de noço líder genial do povo faminto, camelô de esperanças na feira das ilusões de um lado e psicanalista capaz de pedir juízo a seus clientes, aos quais transfere a responsabilidade pela própria cura. Como um feiticeiro tribal, ele receita a dança ritual para chamar uma chuva capaz de encher celeiros. E como aplicado discípulo de Freud, declara ao povo no divã que a responsabilidade será do paciente deitado, ao qual nega o direito de se queixar por ter acreditado no discurso ao feitio do pajé. O feiticeiro vende à tribo o elixir da bonança. Se, contudo, algo der errado, o terapeuta já avisou que isso poderia acontecer, não dependendo das vagas instruções que ele mesmo deu, mas da interpretação errada do livre arbítrio alheio.
Sabe-se que há petróleo na camada geológica do pré-sal e calcula-se que pode ser muito. O Brasil não dispõe ainda de tecnologia para extraí-lo nem de recursos para comprá-la. Tornar essa boa hipótese um fato insofismável por ora depende mais de talento político que de conhecimento técnico. E dificilmente na história da política se encontrará alguém que conheça tão pouco, mas seja capaz de, ainda assim, e até por isso, ser tão convincente. É esse o maior motivo da popularidade de Lula.
Mas esse talento não basta para garantir a metamorfose da fortuna a vir do subsolo em saciedade e felicidade para a maioria do povo. Sociedades que dispõem de petróleo à flor do solo prosperaram ou ainda vegetam. Isso depende menos da quantidade disponível do produto e da vontade dos governantes que da força das instituições. Os Estados Unidos são ricos porque têm petróleo abundante e instituições fortes. A Venezuela continua pobre porque a abundância de sua fortuna fóssil nunca amenizou a própria miséria institucional. O único brasileiro que na certa se beneficiará do pré-sal será a candidata Dilma Rousseff.
© Jornal da Tarde, terça-feira, 1° de setembro de 2009, p. 2A