Site oficial do escritor e jornalista José Nêumanne Pinto

Política 2008/2007

Um tiro no pé de salto alto

Para ressuscitar desta hecatombe, Marta terá de respeitar eleitores

Luiz Inácio Lula da Silva (PT) demonstrou muita sagacidade quando disse, ao votar em São Bernardo, que ele mesmo não foi derrotado na eleição de domingo, já que nenhum candidato falou mal dele explicitamente. Foi esperto, mas também foi verdadeiro. Da mesma forma como verdadeira é a afirmação de seu principal adversário político hoje no País, José Serra (PSDB), ao constatar, de forma cartesiana e quase acaciana, que o presidente não foi derrotado, pois não foi candidato. René Descartes e o conselheiro Acácio usariam o argumento para concluir que, por igual razão, o governador de São Paulo não pode ser apontado como o maior vitorioso no pleito de domingo. De fato, o maior dos vencedores foi o prefeito Gilberto Kassab (DEM), que esmagou sua adversária, a ex-prefeita Marta Suplicy (PT), sob uma avalanche impressionante, ao estabelecer uma vantagem de 1,3 milhão de votos sobre ela, superando o feito de Serra quatro anos atrás.
Esta só será, porém, uma meia-verdade se quem a proferir não reconhecer a participação efetiva do titular da chapa pela qual Kassab chegou à Prefeitura da capital há dois anos. A gestão municipal atual atende pela denominação Serra-Kassab pelo óbvio motivo de que, mesmo sendo de partidos diferentes, o prefeito reeleito manteve as diretrizes do antecessor em praticamente tudo, a exemplo do que Geraldo Alckmin havia feito no Estado com o legado que recebeu de Mário Covas. Mas entre reconhecer esta obviedade e estabelecer qualquer conexão entre os resultados municipais e o que ocorrerá nas campanhas estaduais e federal de 2010 vai uma larga e tortuosa distância. Kassab poderá até cumprir sua promessa de trabalhar pela candidatura do tucano à Presidência, mas não basta ter triunfado agora para vir a ungir sozinho o vencedor de daqui a dois anos. Jânio derrotou Fernando Henrique numa eleição municipal, mas se aposentaria depois, enquanto o derrotado seria duas vezes presidente da República. Maluf elegeu-se prefeito e fez de um poste chamado Pitta o sucessor, mas nem por isso voltou ao governo do Estado pelo voto ou teve condições de disputar para valer o troféu federal. Serra ganhou a disputa estadual saindo da Prefeitura, mas só isso não bastará para realizar suas altas pretensões.
Quanto a Marta, bem, a ex-prefeita acaba de mostrar que tem alguma dificuldade para perceber os fatos políticos e aprender com eles. Há quatro anos ela era aprovada pela maioria do eleitorado no dia da eleição, mas perdeu-a para o ex-ministro da Saúde que, dois anos antes, havia sido derrotado por Lula na disputa pela Presidência. Em vez de fazer uma autocrítica penitencial de sua arrogância imperial, que era desconhecida da maioria dos paulistanos antes de sua plena exibição no exercício do poder no maior município do País, ela preferiu jogar a culpa da aparente contradição nas costas largas do eleitorado. Nunca teve coragem de dizê-lo explicitamente, mas se comportou de maneira a fazer crer que considerou a população ingrata por tê-la preterido ao mesmo tempo que a aprovava. E, após o fiasco nas urnas, correu da cidade, relegando-a à própria falta de sorte nos últimos meses da gestão, em fatídico exercício de uma vingança mesquinha e pouco inteligente. Teria contribuído para reduzir a alta rejeição que interrompeu uma gestão aprovada pela maioria se tivesse agido com mais humildade e sabedoria, purgando os próprios pecados para poder agora ressurgir das cinzas.
Beneficiária do hábito de Lula de dar prêmios de consolação a companheiros recusados pelo eleitor, assumiu o Ministério do Turismo e exibiu indelicadeza, desprezo pelo desconforto alheio e autoritarismo na famosa sentença – “relaxa e goza” – disparada contra as vítimas do Caos Aéreo Nacional, de plena responsabilidade do governo federal. A frase teria tudo para ornar sua lápide política se não fosse pelo fato de o forte PT não ter outro nome para a Prefeitura e ela e seus companheiros acreditarem piamente na amnésia crônica do eleitorado. Erraram: estilhaços da frase infeliz a prejudicaram.
Mas os tucanos ajudaram o PT a avaliar mal as chances dela quando, numa insensibilidade incrível, lançaram candidato próprio numa disputa que até os postes sabiam que se travaria entre Marta e o prefeito. Isso, porém, não ficou claro no início da campanha porque o eleitor não identificava a gestão municipal, que aprovava, com Kassab, mas com o número um da chapa dos dois em 2004, Serra. Só que um eficiente trabalho de comunicação, capitaneado pelo jornalista Luiz Gonzales, tratou de colar a figura do prefeito na gestão. Alckmin ajudou na tarefa: além de se pretender candidato da situação se opondo ao prefeito, um breve contra a lógica, o ex-governador mirou neste para garantir a passagem para o segundo turno e, então, se aproveitar da rejeição da ex-prefeita. Com isso ajudou a fixar na memória do eleitor a identificação de Kassab com a gestão iniciada por Serra. Tudo funcionou com tal sincronia que, para espanto generalizado, Marta, que chegou a pensar em ganhar no primeiro turno, ficou em segundo, com Kassab à sua frente. Esta surpresa desestabilizou a campanha dela a ponto de levá-la a estraçalhar o próprio currículo de defensora das minorias ao permitir em sua propaganda eleitoral uma insinuação insidiosa sobre o estado civil e a falta de prole do adversário: um tiro no pé calçado em salto alto.
O sórdido lance sibilino pode até não ter produzido todo o efeito maligno que se imagina na avalanche de votos que sepultou suas intenções de voltar à Prefeitura já. Devem-lhe ter sido mais fatais sua fé na transferência de prestígio de Lula para ela e a estratégia estulta, do ponto de vista da comunicação, de “desconstruir” o adversário atribuindo os próprios preconceitos ao eleitorado. Agora, para sobreviver a esta hecatombe Marta terá de aprender a respeitar os adversários e, sobretudo, os eleitores.

 

© O Estado de S. Paulo, quarta-feira, 29 de outubro de 2008, p.A2

Para o PMDB, só as bananas nas urnas

Os jornais estão cheios de lorotas sobre o cacife que o PMDB teria adquirido com a vitória consagradora obtida nas urnas nos últimos pleitos municipais. Quem faz esse tipo de conta se esquece de uma lição básica da aritmética elementar, segundo a qual não se somam laranjas com bananas. Como há uma miríade de municípios no País, é o caso de acrescentar outros elementos muito diferentes entre si: estão indo à feira com um balaio imenso de laranjas, peras, abacaxis, melões, mamões e muitas frutas mais e somando-as como se todas fossem de um tipo só. Aí se cometem dois erros de cálculo: o primeiro é que a rigor nenhum eleitor decidiu votar em algum candidato à prefeitura de seu município por indicação de um chefe partidário; e o outro é que cidadão nenhum de cidade alguma subordinará sua escolha estadual ou federal ao voto por ele dado nas eleições deste ano.
Para ilustrar este argumento basta apontar para o episódio mais relevante no País inteiro. Mesmo que o cético grego Diógenes vier a São Paulo procurar, com sua lanterna e a atenção que a tradição lhe atribui, um eleitor fanático do DEM, terá dificuldade para encontrá-lo: o voto foi dado ao gestor Kassab, e não ao ex-PFL, certo? Certíssimo! Mais difícil ainda será tropeçar em algum paulistano que assegure hoje que votará daqui a dois anos num candidato do partido vencedor – este, aliás, dificilmente indicará alguém para disputar a Presidência ou o governo de São Paulo, correto? Pois: Kassab é, de fato, o maior vencedor dos pleitos passados, mas isso em nada aumenta as chances de seu padrinho, o governador José Serra, que, aliás, é de outro partido (o PSDB), derrotar o preferido pelo presidente Lula, do PT, da candidata massacrada no maior município do País, Marta Suplicy. Isso é cristalino como água de poço e o fato de nosso Diógenes vir a ter mais possibilidades de encontrar eleitores petistas derrotados agora comprometidos com o partido para daqui a dois anos em nada modifica o raciocínio de quem sabe que, ao contrário de peru da Ceia de Natal, em política ninguém morre na véspera. Mormente quando a véspera do federal e do estadual é o municipal.
Portanto, caro leitor, não leve em conta essa conversa furada de que as eleições municipais deste ano transformaram o PMDB no maior ator político das sucessões estaduais e federal. O PMDB saiu destas disputas do mesmo tamanho em que entrou: obeso, disforme e acéfalo. É claro que seus dirigentes, que não conseguem se entender nem sobre se a legenda será governista ou oposicionsita daqui a dois anos, tentarão tirar o máximo proveito (pessoal e grupal) dessa aritmética eleitoral farsante, que soma votos que não se somam. Ao PMDB restaram pencas de bananas nas urnas: a maçã do Paraíso federal deverá ser bicada por tucanos ou petistas.
© Jornal da Tarde, quarta-feira, 4 de novembro de 2008, p2A

Na política, golpes baixos valem mais?

A cidade elegerá o prefeito, que não tem a obrigação de ser pai de família

Diziam os antigos que a política é a arte de engolir sapos. Não deve ser fácil fazê-lo, mas na certa mais habilidade se exigirá de quem cospe para cima e não quer ser atingido pela própria cusparada. O deputado Eduardo Paes, ex-favorito à prefeitura da segunda maior cidade do País, a antigamente tida como maravilhosa São Sebastião do Rio de Janeiro, é a mais recente vítima desta lei inexorável da Física, dita da gravidade, que Isaac Newton descreveu, segundo a lenda, após a queda de uma maçã sobre sua cabeça. Ele era secretário-geral do PSDB, principal partido da oposição, quando os meios de comunicação se ocupavam quase exclusivamente do escândalo do “mensalão”. E, inflamado pelo calor dos holofotes, apressou-se a convocar o amado filho de Sua Majestade, o nunca antes tão popular presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a depor.
Mas, como deviam também saber os mais jovens, pois os provectos o afirmam faz tempo, o mundo dá muitas voltas e a noite que prenuncia o dia – e vice-versa – também aconselha a prudência como única atitude para a qual há a garantia de que represálias não virão. À época da turbulência provocada pela denúncia do ex-deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ), o tucanato, em cujo ninho se aninhava o rapaz, se alvoroçou com a possibilidade de sangrar o peru às vésperas da eleição, sem imaginar que para isso teria de desinfetar as próprias vísceras. Tido como derrotado antes da hora, o fenômeno de popularidade Lula da Silva deu a volta por cima e enterrou os sonhos tucanos de voltar a galgar as rampas palacianas, como nos velhos tempos. Treinado nas manhas e mumunhas da politicagem nacional e conhecedor da inabilidade tucana para ler os desígnios do destino, Paes pulou de galho e se abrigou à sombra da frondosa árvore peemedebista, sob as bênçãos do governador fluminense, Sérgio Cabral, que fora ungido pela graça de El Rey todo poderoso. Dali partiu para disputar a prefeitura da ex-Cidade Maravilhosa e, para gozar os benefícios da fama do Supremo, mandou-lhe uma carta, extensiva à digna consorte, pedindo perdão pelo que antes dissera de seu pimpolho.
Nada houve, desde as denúncias açodadas de Sua Excelência, que o levasse a voltar atrás, da forma humilhada como o fez, nas acusações a Sua Alteza. O que o fez abjurar o que antes afirmara com tanta convicção não foi a presunção da inocência do príncipe nem o reconhecimento da própria precipitação, mas o peso a que submeteu sua coluna o projeto de se alçar a tão alto cargo, carga, pelo visto, superior à da própria palavra – e de sua biografia. Na disputa apertada que se prenuncia pelo voto carioca neste turno decisivo, importa é conseguir a bênção do Sumo Pontífice. A coerência, como dizia o velho Chatô, patrono da malandragem nacional, é a virtude dos imbecis. É de duvidar que, mesmo que ele arregaçasse as mangas da camisa e partisse para o corpo-a-corpo da campanha, o que não fará, a popularidade do Maior Magistrado, sozinha, vencesse Fernando Gabeira (PV). Mas, por mais humilhante que seja, a retratação pesa menos sobre as vértebras do candidato oficial que o risco de deixar escaparem alguns votos dos receptadores da Bolsa-Família. Seria a política um tipo de vale-tudo em que golpes baixos valem mais pontos?
Apostando nessa lei não escrita da práxis eleitoral, os marqueteiros de Marta Suplicy (PT) decidiram investir no preconceito como arma à mão para tomar do adversário na campanha paulistana, o prefeito Gilberto Kassab (DEM), a surpreendente dianteira de 17 pontos detectada pelas pesquisas na partida para o segundo turno. Os marqueteiros de Marta e a própria candidata comportam-se no caso como se os eleitores paulistanos fossem portadores da mesma miopia que os faz atuar achando estarem na posse do monopólio da virtude, certos de que a incapacidade de enxergar o próprio rabo de palha provocará cegueira generalizada na população. Na televisão, como sexóloga, e na Câmara, como deputada, ela vislumbrou na guerra ao preconceito um nicho para levá-la às alturas. E lá chegou: foi prefeita de São Paulo, como antes havia sido Luiza Erundina, e ministra do Turismo, estando seu PT no poder na República.
Cego às evidências de que não pode ser vítima de preconceito uma mulher que teve a honra de ser escolhida para administrar o mais populoso e rico município do País, seu ex-chefe e agora paraninfo das ambições dela na disputa municipal, Luiz Inácio Lula da Silva, tentou jogar a culpa da derrota da preferida no primeiro turno nas costas da cidadania: ela teria tido menos votos que o conservador, ex-malufista e ex-secretário de Pitta não pelos próprios deméritos nem pelos méritos do adversário, mas pelos preconceitos do eleitor. E, como palavra de rei não volta atrás nem pode ser banalizada, a candidata e seus marqueteiros resolveram adotar como estratégia de campanha a exploração daquele que, conforme Lula, teria sido o motivo capital da inesperada derrota em 5 de outubro: o conservadorismo preconceituoso do paulistano. Foi por acreditar nisso que a ex-prefeita resolveu lembrar ao eleitor, de maneira bem pouco sutil, que o adversário não é casado nem tem filhos. Os autores dessa proeza de torpeza sabem que estado civil e capacidade de reprodução não são exigidos de ninguém para disputar nem assumir a Prefeitura. Eles imaginam que essa insinuação pode levar o eleitor a rejeitar o adversário pelo mesmo motivo que pensam que a rejeita: seu comportamento atípico. E as tentativas posteriores de consertar o erro em nada o modificam.
Apesar de se comportar como se já houvera sido, a ex-prefeita ainda não teve derrotada sua pretensão de voltar ao posto. Mas sua desastrada entrada na reta final do pleito acrescentou um obstáculo a mais a ser superado: ela só o vencerá se o paulistano não perceber que mais insultado que Kassab foi o eleitor, tido por ela na conta de preconceituoso e intrometido.

© O Estado de S. Paulo, quarta-feira, 15 de outubro de 2008, p. A2

Lula não é dono dos votos dos cidadãos

O presidente cantou a vitória de Marta no primeiro turno em São Paulo antes de serem contados os votos. Erro semelhante já tinha sido cometido por Fernando Henrique e Paulo Maluf
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva tinha razões de sobra para estar muito eufórico anteontem em São Bernardo do Campo: afinal, desde que assumiu o patronato explícito da candidatura de seu correligionário e sucessor na presidência do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, além de ex-ministro do Trabalho e da Previdência Luiz Marinho, este saiu de índices acanhados de preferência popular para atingir o topo das pesquisas. O favoritismo quase levou seu pupilo à vitória no primeiro turno. Mas, se este não fizer uma bobagem muito grande nas três semanas que ainda faltam transcorrer para a realização do turno final, dificilmente perderá para um candidato antes tido como imbatível, o deputado Orlando Morando (PSDB), afilhado político do popular prefeito Dr. Dib (PSB). Não é, de fato, feito de pouca monta e é preciso reconhecer com sensatez que Sua Excelência tinha motivos para comemorar. Só não precisava exagerar: no arrebatamento triunfalista da boca de urna, o chefe do governo comemorou a chegada de sua favorita Marta Suplicy na frente de todos os adversários na luta pela mais disputada das prefeituras, a de São Paulo. Contados os votos, verificou-se que um adversário da ex-prefeita a havia superado: Gilberto Kassab (DEM).
É possível que nem mesmo o prefeito acreditasse na possibilidade de chegar em primeiro lugar tendo começado a disputa correndo atrás de dois fortes oponentes: além da própria Marta, o ex-governador Geraldo Alckmin (PSDB), que, entre outros problemas que lhe trouxe, expôs a fratura de uma aliança histórica e impediu o governador José Serra de apoiá-lo explicitamente, como o próprio Lula fez com sua preferida. No entanto, somente a reconhecida capacidade que tem o presidente da República de não ser atingido pelos dardos que atira contra si próprio impedirá de esta precipitação verbal ser lembrada como muito similar à decisão infeliz de Fernando Henrique se deixar fotografar sentado na cadeira do vencedor Jânio Quadros, que a desinfetou só para caracterizar ainda mais a inoportunidade do gesto. Só que Fernando Henrique não sabia o que fazia. E Lula sabia o que dizia.
O que talvez ele não saiba é que esse comportamento arrogante de contar com o ovo nas entranhas da galinha expressa de forma cabal um dos mais antigos e desprezíveis vícios que marcam a política brasileira desde o domínio dos coronéis da guarda nacional: a confusão entre prestígio e posse. Muitos chefes políticos já cometeram esse erro básico de se imaginar donatários da vontade do eleitor. Paulo Maluf (PP) cometeu engano similar há 20 anos quando era dado como vencedor virtual da eleição municipal e foi derrotado por Luiza Erundina (à época no PT).
Numa democracia, o povo não tem dono e não há mais lugar para voto de cabresto no País..
© Jornal da Tarde, terça-feira, 7 de outubro de 2008, p2A

Tolo é quem pensa que o povo é bobo

Segundo Tancredo, esperteza demais é um bicho que devora o dono

Tendo apenas as próprias ambições pessoais a apresentar como argumentos para convencer o eleitor a votar neles, alguns políticos, como papagaios, repetem lemas e estratégias cegamente, sem prestar atenção em sua óbvia inutilidade. Membro de um grupo apelidado de “raposas felpudas” – os pessedistas mineiros –, exatamente pelo talento para lidar com o gosto e a preferência populares, o falecido Tancredo Neves costumava avisar a seus correligionários que “a esperteza, quando demasiada, é um bicho que acaba por devorar o dono”. Eis uma frase que os pressurosos assessores que voam rumo a seus candidatos nos intervalos dos debates eleitorais na televisão deveriam ter sempre na ponta da língua para impedir que estes venham a cometer tantos erros infantis. Afinal, como já sabiam os antigos romanos, errar não é um bicho de sete cabeças. Mas insistir no erro seria diabólico, se o diabo fosse burro.
Comecemos pela favorita nas pesquisas, a ex-prefeita Marta Suplicy, que desembarcou na campanha eleitoral absolutamente convicta de que voltará para o antigo palácio dos Matarazzos no Viaduto do Chá impulsionada pela popularidade de seu patrono, Luiz Inácio Lula da Silva. Até agora a história eleitoral brasileira registra raríssimos casos de transferência de votos bem-sucedida, mas pode ser que – no auge da glória em seu segundo mandato, outra coisa rara – o chefe do governo quebre mais esse tabu e consiga convencer aquele que votaria nele a sufragar o nome de sua ex-ministra do Turismo. Afinal, esse milagre da transposição dos votos pode não ser uma miragem, como a das águas do São Francisco para matar a sede do sertanejo ou a das ondas do Oceano Atlântico, que, no dizer de Sua Excelência, não serão atravessadas pela crise dos EUA para cá, embora pertençamos, nós e os gringos, ao mesmo continente americano e estejamos no mesmo lado do pélago e do pré-sal. Ainda assim, seria aconselhável que dona Marta do PT desse atenção ao fato de que seu padrinho perdeu todas as eleições em que disputou votos no maior município do País, entre elas a última, em que enfrentou o mesmo Geraldo Alckmin, adversário dela hoje. São Paulo fica muito longe de Garanhuns.
Ora, direis, citando outro mineiro sabichão, o udenista Magalhães Pinto, política é como nuvens no céu: mudam de figura num piscar de olhos. É verdade. Tudo muda na vida e, sendo a política feita por políticos, ela muda mais rapidamente ainda. Pode ser que, desta vez, haja uma transferência maciça de votos de Lula para a candidata petista e que sua popularidade tenha crescido de tal forma que domingo ele pudesse ter mais votos que Alckmin, ao contrário do que ocorreu há dois anos. Mas vamos convir que a favorita nas pesquisas no primeiro turno melhoraria bastante a probabilidade da própria vitória se prestasse atenção nas lições da História e na sabedoria popular, matéria em que seu ex-chefe é catedrático, sem ter precisado defender tese. A insistência com que ela acusa o atual ocupante do posto que já foi dela, Gilberto Kassab (DEM), de imitá-la ou repeti-la dificilmente mudará a intenção de algum eleitor que votaria nele a votar nela. Afinal, o cidadão se interessa pela obra e pouco está ligando para quem possa ter sido o autor. Se relacionar obras levasse ao triunfo, Paulo Maluf (PPS) não estaria amargando o ostracismo em que afundou.
De qualquer maneira, a ex-prefeita ainda está no lucro, pois começou o ano alijada da disputa pela frase infeliz do “relaxa e goza” aconselhado por ela às vítimas do caos aéreo nacional: tem garantida pelas pesquisas a passagem para o turno decisivo da disputa, por obra e graça da cizânia entre seus principais adversários. Depois de ter conseguido protagonizar o feito inédito de perder votos do primeiro para o segundo turno na última disputa eleitoral, Geraldo Alckmin faz uma campanha cujo lema poderia ser traduzido por um assim: “Vote em mim, porque Gilberto Kassab é ruim.” Contrariando todas as lições do bê-á-bá do marketing político, que parece não ter aprendido na recente derrota para a Presidência, o ex-governador de São Paulo adotou a tática de bater antes para depois beijar, assumindo explicitamente a idéia de que convém insultar o prefeito no primeiro turno para superá-lo e, então, por mera conveniência política, aceitar o apoio dele ou apoiá-lo no turno final. É a leitura eleitoral do famoso fecho do soneto Versos íntimos, de Augusto dos Anjos: “A mão que afaga é a mesma que apedreja.” Dando como favas contadas repetir para prefeito os votos que teve para presidente, mesmo tendo, àquela época, chupado na TV um picolé de chuchu para fazer jus a um apelido jocoso, o que não anima ninguém a votar nele para qualquer cargo, o pretendente do PSDB prefere associar o adversário de hoje e aliado de amanhã a correligionários de outrora – Orestes Quércia, no caso. O que ele se esqueceu de perguntar – e qualquer pesquisador poderia responder – é se algum cidadão deixará de votar no prefeito só por ter sido ele secretário de Celso Pitta.
Alckmin e Kassab, aliás, se acumpliciaram na tola e oportunista tentativa de pegar uma caroninha na cauda brilhante do cometa Lula. Dois anos depois de terem tentado derrotar, em vão, o presidente acusando-o de acobertar os companheiros mensaleiros, o prefeito e o ex-governador parecem dispostos a criar um novo partido para o caso de PSDB e DEM se darem mal domingo – o PLTB (Partido do Lula Tudo Bem). Ainda que tenha blasfemado ao tentar superar o Criador, que encarregou Seus representantes na Terra de proibirem o uso de Seu santo nome em vão, o presidente tem razão quando chama a atenção para a hipocrisia e o oportunismo rasteiros dessa manobra espúria.
Todos esses espertinhos fariam melhor se percebessem que bobo o povo não é: tolo é quem pensa que é e disso ainda tenta se aproveitar.

 

© O Estado de S. Paulo, quarta-feira, 1º de outubro de 2008, p. A2

A oposição não sabe onde o galo canta

Lula se beneficia da adesão habitual e da incapacidade dos adversários

Diz o presidente nacional do PSDB, senador Sérgio Guerra (PE), que “a oposição foi revogada, saiu da moda”. O reconhecimento prévio do malogro neste ano eleitoral reproduz, com exatidão e sinceridade, a situação política esdrúxula que o País vive. E também ajuda a explicar tal fiasco, pois a autocondenação à morte mostra que o prócer, a exemplo dos colegas de bancada, sabe que o galo cantou, mas não tem idéia de onde fica o poleiro do qual todo dia este saúda o Sol. O desabafo de Guerra traduz desalento e é também uma confissão de impotência, que resulta da própria incompetência, não apenas para combater o fenômeno que a tirou de moda, mas também para compreender a cena política, condição básica para que a partir de tal compreensão se esbocem as linhas-mestras para enfrentar e resolver o problema. A maior tragédia da oposição brasileira hoje não é a eficiência do governo, mas a própria ineficiência para perceber e atuar.
O patamar a que galgou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva – de 64% de popularidade, segundo a última pesquisa Datafolha – não pode ser produto apenas de sua inegável sorte: resulta também de sua capacidade rara de se comunicar com os segmentos mais pobres e numerosos da população. Para isso usa a própria vivência e, da mesma forma, recorre a uma intuição admirável. Além da fortuna, a virtude de saber conciliar o levou ao governo depois de três derrotas seguidas em duas disputas contra o tucano Fernando Henrique e outra com o alagoano Fernando Collor. Isso não é inusitado na história política do Brasil independente. À capacidade de dom Pedro II de atender a liberais e conservadores – facilitada pelo fato de que, segundo glosava uma quadrinha popular no século 19, nada mais igual a um saquarema que um luzia no poder, apelidos jocosos dados pelo povo aos grupos que se revezavam no poder no Segundo Império – deveu-se a longevidade de seu reinado. Do talento do gaúcho Getúlio Vargas para reunir grupos na aparência antagônicos sob seu tacão – os latifundiários do PSD com os proletários do PTB – dependeu outra bem-sucedida aliança, tal como a primeira fundida no chumbo em que se imprimia o Diário Oficial: a conciliação pela via da nomeação.
A diferença entre nosso atual caudilho e os modelos históricos aqui lembrados é que ele realizou a primeira conciliação antes de alcançar o poder, ao submeter à disciplina partidária e a seu comando carismático grupos antes irreconciliáveis da esquerda armada, ao lado de lideranças sindicais e líderes da esquerda eclesiástica. Sob o estandarte socialista da mudança de “tudo o que está aí”, mas com um discurso conservador na economia, para não afugentar o voto da classe média e da classe operária especializada, ele subiu a rampa do Palácio do Planalto. No poder, mesmo não sendo um profundo conhecedor da história política nacional, aproveitou-se magistralmente das lições dos grandes conciliadores, radicalizando experiências de união nacional que já tinham sido ensaiadas, mas nunca levadas a cabo até o ponto em que ele as praticou. Foi além de Eurico Dutra e do próprio Getúlio, que montaram Gabinetes de união nacional. E conseguiu de antigos adversários políticos aparentemente inconciliáveis – de egressos da ditadura, como Paulo Maluf, José Sarney e Delfim Netto, a fisiológicos notórios, como Severino Cavalcanti, Jader Barbalho e Renan Calheiros – o que negara a Itamar Franco no grande acordo feito na pós-queda da República de Alagoas. De fato, essa mentalidade de mosqueteiros de fancaria (“todos por cada um e ninguém pelo povo”) se repete monotonamente nos palácios brasileiros desde a Independência. Mas Lula lhe deu consistência e vigor: Fernando Henrique, seu antecessor também nisso (os quadros de seus dois governos repetem-se no atual numa monotonia enervante), jamais teria estômago para fazer a defesa vigorosa que o presidente faz de políticos e práticas inconfessáveis: de Severino Cavalcanti aos “mensaleiros”.
Lula ganhou a primeira eleição prometendo ser diferente dos adversários e a segunda, garantindo que estes eram farinha do mesmo saco onde escondeu seus companheiros apanhados em flagrante em delitos catalogados ao longo de todo o Código Penal. Para isso contou com a ajuda dos opositores, que lhe entregaram as batatas da vitória no instante em que se negaram a sacrificar a cabeça do então presidente nacional do PSDB, Eduardo Azeredo (MG), flagrado em crime idêntico aos de que foram acusados “companheiros” do quilate do ex-presidente do PT do presidente, José Genoino, e de seu principal organizador, José Dirceu. A elite oposicionista, incapaz de enxergar um palmo além dos narizes empoados de seus baluartes, não foi capaz de compreender o fato.
Lula não dormiu sobre os louros do triunfo nas urnas, conseguido pelos próprios méritos e pela incompetência dos adversários: seu oponente, Geraldo Alckmin (PSDB-SP), conseguiu o feito de ser menos votado no segundo turno que no primeiro. E no segundo governo faz mais do mesmo, ao repetir a fórmula testada e aprovada de encher os cofres dos banqueiros e a barriga dos miseráveis. Essa fórmula mágica, capaz de içar candidaturas municipais do limbo ao topo (como as de João da Costa, no Recife, e Luiz Marinho, em São Bernardo do Campo), produz efeito de avalanche ameaçando sepultar os sonhos oposicionistas de voltar ao Planalto em 2010. Mas, a bem da verdade, Lula nada tem que ver com a lambança de seus adversários Geraldo Alckmin (PSDB) e Gilberto Kassab (DEM), únicos responsáveis pelo oxigênio injetado na candidatura petista de Marta Suplicy no maior município do País. A eleição paulistana prova que a oposição sai da moda por méritos de Lula e deméritos próprios. Doses de adesão alheia e da falta de visão dela mesma é que podem vir a revogá-la.
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© O Estado de S. Paulo, quarta-feira, 17 de setembro de 2008, p. A2

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