Site oficial do escritor e jornalista José Nêumanne Pinto

Política 2008/2007


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As férias do sr. Lula

Neste País só o presidente goza férias em paz

 

Quando, neste Brasil pós-petista, o Caos Aéreo Nacional encheu os aeroportos brasileiros de dor, raiva e indignação, só um avião teve o privilégio de decolar e pousar na hora certa: o Aerolula. Enquanto os passageiros sem Bolsa-Família se “acomodavam” para dormir no chão das estações, que, mesmo recebendo prioridade sobre equipamentos e pessoal de controle e operação, não são lá grande coisa, se comparadas com as do resto do mundo, o presidente da República, em seu brinquedo favorito, divertia-se fazendo e desfazendo sonhos ministeriais. Mas até essa azáfama o cansou e ele tirou férias. Primo fare niente, doppo riposare, lembrou este jornal em editorial, citando o dito popular peninsular que o pernambucano (portanto conterrâneo de Lula) Ascenso Ferreira glosou no poema Filosofia: “Hora de comer? Comer. Hora de dormir? Dormir. Hora de trabalhar? Pernas pro ar, que ninguém é de ferro”. Este é o sonho de muitos, de quase todos, mas só alguns eleitos, em menor número que os do Evangelho, podem realizá-lo. E Sua Excelência, eleito com mais de 20 milhões de votos sobre o candidato adversário, sente-se no direito de levá-lo às últimas conseqüências.
Os críticos recalcitrantes e mal humorados da zelite empedernida encontrarão nos que contestam esse direito, dado ao chefe do governo pelos eleitores, um abuso. Não tanto um abuso de autoridade, mas, digamos, um abuso de propriedade. Afinal, um dos slogans da campanha na qual se reelegeu era: “deixem o homem trabalhar”. Às ordens, cavalheiro! Reeleito, contudo, prefere fazer nada e depois repousar, que não é de ferro, mas um filho de Deus, de carne e osso. Ou seja: o “homem” do slogan pode entrar de vez no livro de recordes da Guinesss, por ser o primeiro trabalhador a merecer o gozo de férias na primeira semana de expediente, na prática antes até de pegar no batente. Tente fazer isso no emprego novo, caro leitor, mas não espere muita simpatia do patrão. Só que o patrão do presidente, o tal povo brasileiro, é manso de coração e parece não se aborrecer com essa inversão de atividades do escolhido para reger seu destino.
Esse patrão dificilmente terá lido o livro em que o ex-presidente americano Richard Nixon dizia, com razão e lucidez, que todo estadista deve tirar férias, pois o cansaço pelo exercício das pesadas responsabilidades do poder republicano é o pior conselheiro de um governante. Não se sabe se Nixon estava bem repousado quando decretou a retirada das tropas do Vietnam, entrando pela porta da frente da História. E se foi o cansaço que o fez não dar a devida relevância ao arrombamento do escritório do adversário democrata derrotado George Mc Govern em Watergate, que provocou sua retirada pela janela do porão da Casa Branca. Sabe-se, porém, que o repouso remunerado não resulta de um gesto de caridade cristã, mas do pragmatismo capitalista para produzir mais, melhor e com mais lucro. Duro é saber o que tem estressado tanto nosso amado guia: a disputa entre os amigos Chinaglia e Rebelo pela presidência da Câmara: o apetite dos companheiros petistas pelas boquinhas republicanas; a decisão do advogado Márcio deixar o Ministério da Justiça; ou a volta do aloprado-chefe Berzoini à presidência do partido de Dirceu, Genoíno, Delúbio e Silvinho? Ou será a súbita incompetência da Polícia Federal em enquadrar Waldomiro Diniz e descobrir a origem do dinheiro para financiar o dossiê antitucano, hein?
Certo é que a decisão de repousar antes de trabalhar é tão original que impediu o elogiado amigo José Alencar de assumir a Presidência em sua ausência. Embora dificilmente a Nação sinta muita falta de uma gestão alencarina, não deixa de ser no mínimo interessante que, tão pródigos em encontrar meios de levar vantagem em tudo, nossos políticos tenham deixado para um ex-trabalhador braçal a honra de inaugurar o repouso do guerreiro antes, e não depois, da batalha. O professor de lógica no Instituto Redentorista Santos Anjos, em Bodocongó, Campina Grande, Paraíba, nos anos 60, o implacável e aristotélico holandês padre Bernardo, na certa diria: “et pour cause”. Ex-dirigente sindical da escola getulista, Lula é pioneiro nessa inversão conjugando o verbo descansar antes de se cansar e, depois, se possível, cansar-se o mínimo possível, como naquele pacto jocoso do poeta Vinicius de Moraes com o cronista Antônio Maria: jamais fazer um movimento que não seja absolutamente necessário.
A inovação exige algum risco, pois sempre haverá um espírito de porco a observar que o País pode funcionar normalmente sem o concurso do chefe do governo, embora haja quem jure que, mesmo quando nos dá a honra do expediente, este não pareça muito predisposto à ação efetiva. E também lembra o clássico da comédia cinematográfica As férias de Mr. Hulot, em que o taciturno e trapalhão francês Jacques Tati faz uma crítica pesada e bem humorada destes tempos de automação e insensibilidade. Mas a lembrança do sujeito alto, magro e desengonçado com capa de chuva e chapéu na tela de cinema ocorre por oposição: um gaiato, neste Brasil de palhaços inatos e irreverentes, poderá lembrar que, de fato, o presidente não goza de férias, mas teve a extrema bondade de dar férias a nossos ouvidos. Na praia, ele fica, não apenas longe do gabinete e do Aerolula, mas também dos microfones e das câmaras, nos quais costuma promover ousadas distorções na geografia, na história, na lógica e na gramática. Isso, é claro, sem mudar o fato de que, com as estradas esburacadas, os assaltos na Linha Vermelha e a operação tartaruga dos controladores de vôo, ele tornou-se o único brasileiro a gozar férias integrais, em paz e segurança.

 

© O Estado de S. Paulo, quarta-feira, 10 de janeiro de 2007, página A2


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Quintal sem favas para patos

O horizonte dos políticos é curto e o cidadão paga a conta

 

A última legislatura é tida como a pior de todos os tempos. A próxima promete. Promete o quê? Vamos ver!
Esta que acaba daqui a uma semana foi inaugurada com um traumatismo exposto na moral do Congresso com a eleição de Severino Cavalcanti, representante do baixo clero e outras claras baixezas, para a presidência da Câmara dos Deputados, posto que o pôs na condição de segundo substituto eventual do presidente da República. O precedente Severino foi notório. Convém relembrá-lo para poder iluminar melhor os porões onde se desenrolam os fatos que interferem na ocupação do mesmo posto importante, agora. O Partido dos Trabalhadores (PT) rachou ao peso da candidatura oficial de um postulante tido como inflexível e intratável, o advogado preferencial das vítimas da ditadura Luiz Eduardo Greenhalgh (SP), contestada pelo grupo que apoiava o maleável Virgílio Guimarães (MG). O PFL apresentou-se ao páreo com José Carlos Aleluia (BA), mas nem o desafiante petista nem este chegaram ao segundo turno, disputado pelo pretendente palaciano e pelo favorito dos corredores.
A posição do PSDB na disputa foi de uma estupidez que prenunciava a série de lambanças que culminaram com a desastrosa campanha de Geraldo Alckmin (SP) à sucessão de Lula. Orientados pelo líder da bancada, Alberto Goldman (ex-comunista, ex-quercista, atual serrista), os tucanos desprezaram a lógica elementar da luta política enunciada por Maquiavel – “dividir para reinar” -, perdendo a oportunidade dada pela divisão nas hostes adversárias para manter a duvidosa coerência da discutível tradição da escolha de um membro da maior bancada para presidir a Mesa da Casa. Deu no que deu: após sufragar o candidato do Planalto sob a égide petista no primeiro turno, o alto tucanato arregimentou o movimento terrorista suicida que ungiu o “fisiológico do agreste” no segundo. Este, leal aos vícios do fisiologismo sem pejo, arrastou a baixa moral da Câmara na lama até ser apeado do lugar. E os tucanos fingiram que nada daquilo era com eles. O governo aproveitou e, mandando sem solenidade alguma às favas os tais escrúpulos “proporcionalistas” dos principais adversários, elegeu para o lugar um notório serviçal, apesar de ser ele um reconhecido “zumbi”, numa demonstração de que os petistas dominam melhor a matemática do poder que seus opositores.
O triunfo do governista Aldo Rebelo (PCdoB-SP) e a obviedade de que a bancada do PT, que era a maior, e não majoritária, deixara de ser até a mais numerosa não impediram que, de novo sob os auspícios de José Serra, o PSDB ensaiasse o bis para o primeiro ato da tragicomédia severina. Por incrível que pareça, o líder do partido na Câmara, Jutahy Júnior (BA), anunciou de público o voto no candidato do PT ao cargo, Arlindo Chinaglia (SP). A gramática e a matemática jamais justificariam o tresloucado gesto, que foi, sobretudo, uma agressão à lógica política. Qualquer pretendente a síndico sabe que Chinaglia seria a última opção do PSDB, pois, se é verdade que Aldo Rebelo é tão submisso aos caprichos do petismo planaltino quanto ele, a onda de adesões de oportunistas de todos os quadrantes, de Paulo Maluf (PP-SP) ao PMDB, não deixa dúvidas de que os propósitos de Lula, sejam quais forem, estarão mais bem servidos se ele vencer do que se o outro for reeleito. Desta vez, a opção foi tão absurda que um movimento externo ao PSDB forçou um recuo e até o governador de São Paulo teve de reconhecer publicamente a obviedade das qualidades da candidatura de seu correligionário Gustavo Fruet (PR), mais resultante da resistência digna da “terceira via” que dos inexplicáveis conchavos da própria bancada. Mas, numa amostra de que cegueira política não é exclusividade de seus aliados de ocasião, o PFL insistiu teimosamente em manter seu apoio à reeleição do “zumbi” Aldo Rebelo, não se sabe se por vingança da negação do apoio a Aleluia na disputa anterior, implicância ou inércia.
A esta altura, com a disputa, em teoria, limitada aos dois candidatos oficiais, a timidez do PSDB em apoiar a iniciativa da “terceira via” e a teimosia do PFL ao manter o apoio prometido ao continuísmo podem não passar de lanas caprinas. Mas, diante das perspectivas de que o petismo demonstra inegável competência na conquista do voto popular, proporcional ao apetite pelo controle das “boquinhas” na máquina pública e ao empenho em amordaçar quaisquer adversários recalcitrantes que se aventurem a desafiá-los, a ocupação da presidência da Câmara ganha relevo extraordinário. Fará uma enorme diferença ela ser entregue a um submisso às ordens e aos caprichos do Planalto, seja Chinaglia, seja Aldo, ou a alguém como Fruet, que pode, se não obstar os devaneios populistas do Executivo, ao menos impedir que os sonhos de uma casta se transformem no pesadelo de quem dela for excluído. Todos os movimentos da oposição, incapaz de se aproveitar da divisão do adversário provocada por seu apetite desmedido de poder, só servem para mostrar que o horizonte da política brasileira continua sendo o de sempre, ou seja, o do pato – o fundo do quintal. Não surpreende que tucanos e liberais enxerguem na escolha do presidente da Câmara não uma oportunidade de ocupar um cargo importante para salvar as instituições da velha democracia burguesa da sanha dessa “neodemocracia” popularesca, mas, sim, a chance de facilitar a própria vida nas disputas paroquiais pela direção das Assembléias Legislativas e até em pleitos ainda menores. O que essa gente não percebe é que a eleição de 2010 fica muito além do horizonte do pato. Quando perceber, já no fim da próxima legislatura, aí talvez já seja tarde demais para recuperar o terreno perdido. O pior é que eles mandam no quintal e alcançam o horizonte. A nós outros, cidadãos, caberá sempre pagar o pato.

© O Estado de S. Paulo, quarta-feira, 24 de janeiro de 2007, página A2

Surfe de Lula depende é do rumo da onda

Governo somente perderá votos se e quando a crise esvaziar bolsos

A aprovação – medida pelo Datafolha – por 49% dos brasileiros da forma como o presidente Luiz Inácio Lula da Silva gere a crise não repete os índices espetaculares de seu desempenho no cargo, mas estimula governistas e é uma ducha gelada para a oposição. Surpreende quem esperava um número menos estimulante aos sonhos continuístas pela boa razão de que o governo brasileiro não tem feito muito a respeito: sua primeira reação foi de desdém; a segunda, de pânico; e a terceira, na velha base de vamos deixar como está para ver como é que fica. Em nenhum dos três casos o chefe do governo se mostrou particularmente apto a amenizar os efeitos do desastre financeiro internacional em nossa economia. E isso por si só basta para mostrar quão hábil ele é para se comunicar com seu vasto e fiel eleitorado, convencendo-o de que o mínimo que ele está mandando fazer é o melhor que poderia mesmo ser feito.
Este é o segredo da impermeabilidade do homem: não necessariamente fazer o melhor, mas mostrar a quem interessar possa – o operariado de baixa de qualificação e o lumpemproletariado, mas não só estas camadas mais pobres e desinformadas da população, pois as pesquisas têm detectado o crescimento de sua aceitação por classes mais favorecidas e instruídas – que o líder continua a seu lado e defendendo seus interesses. Estes começam pela mágica da multiplicação das proteínas postas à mesa dos mais pobres pelo milagre da Bolsa-Família e terminam nos negócios da alta burguesia financeira com o beneplácito da autoridade generosa e disponível. No miolo do sanduíche fica a classe média, espremida, desarticulada e desorganizada, incapaz, portanto, de reagir aos riscos de descenso social, até agora evitado pela bonança reinante nos países consumidores de nossas commodities. Estas antes eram cotadas a peso de ouro, mas já começam a rumar para os preços de banana na nova situação provocada pelo desabamento em tempo real dos pregões das bolsas do mundo inteiro. Enquanto seu lobo não vem, contudo, a classe média vai passear na floresta no trenó de Papai Noel, adotando a prática confortável de não sofrer por antecipação.
Enquanto o futuro presidente americano, Barack Obama, no olho do furacão e de olho no furacão, alertou que o pior está por vir, Lula manda os patrícios sem dívidas comprar. O alerta de Obama é costurado com a linha do realismo e a agulha da prevenção. Alvo das esperanças do mundo, depois de eleito para domar uma crise que pode levar todos à bancarrota, o futuro fiel depositário do maior tesouro do mundo advertiu a sôfregos e trêfegos que não opera milagres. Lá, como cá, uma é a retórica eleitoral e outro deve ser o discurso oficial. O “nós podemos” dos palanques – ainda antes da posse – tornou-se um “nós sabemos”. O candidato inspira, o governante terá de transpirar. O presidente do Brasil não tem as responsabilidades do colega americano em relação à crise, já que ela não nasceu aqui nem pode aqui ser resolvida. E também porque os efeitos deletérios dos erros e benéficos dos acertos da futura gestão democrata repercutirão pelo mundo inteiro, enquanto os do governo petista se abaterão apenas sobre nossas cabeças.
O incentivo de Lula ao consumo, neste momento em que um líder mais cônscio da situação e mais consciente de seus deveres recomendaria cautela, pode ser patético. Pois, de fato, ninguém em sã consciência vai comprar um carro, um apartamento ou outro bem de consumo durável de alto valor só porque nosso guia mandou. As pessoas só compram o que querem e o que podem, independentemente dos estímulos que recebam, seja de quem for. O que importa na frase de Lula é que ela está perfeitamente sintonizada com o que a grande maioria da população está pensando e fazendo em relação à crise. Mais que aconselhar a consumir o presidente refletiu o que o brasileiro comum pensa e como o seu eleitor potencial age. Enquanto a crise dos mercados não lhe tirar o emprego, no caso do trabalhador, o prato cheio, no caso do lúmpen, ou o bom lucro de cada dia do banqueiro, o brasileiro médio o apoiará, confirmando a regra, que comporta raras exceções, segundo a qual quanto mais o eleitor se sentir bem, mais prestigiará alguém lá em cima por cujo conforto responsabiliza e recompensa com seu sufrágio.
Obama, esperança de praticamente todos, desceu do palanque porque sabe que esse não é o lugar adequado para encontrar as medidas necessárias para decepar o nó górdio da crise e, com isso, frustrar o mínimo possível o planeta inteiro, que conta com ele. Lula não desceu ainda, primeiro, porque não aprendeu a fazer na vida algo muito diferente de uma competente campanha eleitoral e, em segundo lugar, porque ninguém (nem nada) até agora, pelo menos, exigiu dele que o fizesse. É humanamente impossível que a esperança de todos não termine por frustrar muitos, pois, afinal, não são raras as divergências dos grupos que fazem demandas conflitantes. O sucesso do surfe que nosso presidente se compraz em praticar vai depender, na vida real, muito mais do rumo que tomar a onda externa que de sua prancha particular e seu estilo de cavalgá-la.
Antes da crise e neste momento em que ninguém ainda atina ao certo de onde veio o tsunami nem para onde vai, o presidente brasileiro tem contado sempre mais com a sorte, que não lhe tem faltado, que com o juízo, que ele também, justiça seja feita, tem exibido sempre que é exigido. Sendo impossível vaticinar se a sorte continuará bafejando sua nuca, com efeitos benéficos para todos os brasileiros que o elogiam aos pesquisadores dos institutos de opinião, pois a sorte pode ser generosa, mas também costuma ser traiçoeira, resta-nos rezar para que ele tenha boas reservas de juízo para usar quando for preciso.

© O Estado de S. Paulo, quarta-feira, 10 de dezembro de 2008, p.A2

Antes o palavrão que a falsificação

Mais relevante que discutir o palavrão no pronunciamento de Lula é saber se seu discurso otimista sobre a crise é, de fato, sincero ou mero jogo de cena
O que será mais grave: o presidente da República usar o palavrão “sifu” num pronunciamento oficial ou sua Secretaria de Imprensa eliminá-lo dos registros públicos, como o fazia o velho Josef Stalin com as fotografias de seus inimigos na iconografia oficial da revolução soviética? Ou, ainda, mais grave que tudo seria, depois, devolver o termo vulgar ao texto reproduzido no site da Presidência com a desculpa de que ele teria sido substituído por “inaudível” na transcrição que viera a público pela falta de familiaridade com o vocábulo das encarregadas de transcrever seu discurso?
É um exagero comparar o zelo do responsável pela divulgação das sentenças de Luiz Inácio Lula da Silva com a censura da ditadura, cujo ridículo grotesco ficou patente na célebre entrevista da atriz Leila Diniz ao jornal O Pasquim, em cuja publicação a terminologia condenada foi substituída por sinais gráficos. Salvo engano, o bissílabo não dicionarizado ao qual Sua Excelência recorreu para dar ênfase à idéia de degradação foi popularizado exatamente pela equipe do jornal alternativo que fez furor por ridicularizar a ditadura militar. A fórmula encontrada para insinuar o que foi dito pela artista de cinema sem ferir o pudonor dos censores, incapazes de perceber que os signos não verbais usados para substituir os palavrões os deixavam claros para os leitores, expôs a debilidade do regime brutal. E com a vantagem de fazer os esbirros de paspalhos.
Habituado a falar da tribuna como se estivesse no palanque e a confundir discurso de campanha com papo de botequim, Sua Excelência pode ter deixado escapar a contração do pronome pessoal reflexo com a primeira sílaba do verbo fescenino mais por desconhecimento semântico que por grosseria. Pouco afeito à precisão léxica, o presidente pode ter usado a gíria quase enigmática (pelo menos para as pessoas não versadas nos códigos das tribos urbanas praieiras do fim do século 20, que já saíram da moda) com ingenuidade similar à das senhoras que não a compreenderam: se elas não sabiam o que ele dizia, ele próprio parecia não sabê-lo.
Pior terá sido se o presidente houver cometido um ato falho, daqueles catalogados por Sigmund Freud em Psicopatologia da vida cotidiana. Pois, então, fica claro que, enquanto prega o otimismo, ele sabe que tem razão o presidente eleito dos EUA, Barack Obama, a cuja vitória sempre tece loas, de que o que vem aí não é uma recessão, mas uma depressão profunda. Para um dirigente republicano no meio de uma crise econômica global como esta, pior que deixar escapar um vocábulo pouco polido, por falta de conhecimento ou de educação, é empregar recursos retóricos para dourar pílulas indigestas. Melhor a verdade descortês que a gentil falácia.

© Jornal da Tarde, sexta-feira, 12 de dezembro de 2008, p2A

Uma andorinha só não pára vôos de abutres

Renan ainda tem força no Senado, que Garibaldi está tornando digno

No universo de firulas e filustrias da política nacional, muita gente boa, e até bem-intencionada, perguntou por que o presidente do Senado, Garibaldi Alves (PMDB-RN), só contestou a malfadada medida provisória (MP) emanada do Planalto consagrando a “pilantropia” após ela ter sido acatada. Mandava a correção burocrática que a porta lhe fosse fechada antes de ela ser recebida e o gesto de coragem e ousadia cívica do chefe do Poder Legislativo parecia perder o valor num debate estéril sobre correção regimental. A boa notícia é que, ao contrário do que seria de esperar, a discussão a respeito da primazia do mérito sobre a oportunidade, ou vice-versa, não prosperou. E pôde a República, enfim, se orgulhar do desassombro de um de seus maiorais, que contrariou o hábito comezinho e ancestral da escalada carreirista dos representantes do povo no topo do poder pela mistura descarada de fisiologismo fantasiado de oportunismo e de pusilanimidade travestida de esperteza.
Apesar do prenome sugestivo, que não recebeu em homenagem ao hirsuto unificador da Itália, mas ao próprio pai, Garibaldi não tem o perfil do combatente temerário, menos ainda do revolucionário ardente. Pertence a uma oligarquia que não foi articulada na posse de latifúndios, mas no populismo assumido do fundador, Aluízio, jornalista de ofício cujo poder não foi consolidado por rebanhos pastoris, mas por currais de votos conquistados com talento, habilidade e capacidade de convencer e influenciar eleitores. Filho de Garibaldi, irmão do prócer, coube-lhe, por via indireta, seguir a trilha do tio, embora fossem os primos herdeiros óbvios na política clânica nordestina – o que já é a primeira surpresa. Governou um Estado pequeno – entre os menores da Federação, apesar do nome longo, Rio Grande do Norte – e assumiu a Câmara Alta numa hora da grande desmoralização do Poder Legislativo por culpa do escândalo protagonizado pelo antecessor, Renan Calheiros, como ele nordestino e do PMDB. Nada sugeria uma passagem de destaque: sem o porte apolíneo que se atribui aos senadores romanos e com uma dicção sofrível, à beira da dislexia, ele parecia fadado a construir uma imagem fugaz como o mandato-tampão que lhe havia sido destinado.
Mas quem esperava uma condução subserviente dos trabalhos do Senado aos desígnios do Planalto, à qual todos já estavam acostumados, principalmente no capítulo das medidas provisórias, teve uma grande surpresa e está tomando grandes e exemplares sustos: Garibaldi nunca perdeu uma oportunidade que fosse de usar a força simbólica do posto ao qual foi guindado, se não por acaso, no mínimo por falta de competidores à altura (as estrelas da Casa desdenharam a brevidade da função), para denunciar a desfaçatez com que o Executivo passou a legislar a pretexto da urgência e da necessidade. Mas também nunca deixou de reconhecer a quem fala – e entre seus ouvintes está o mais interessado de todos, Lula em pessoa – a responsabilidade do próprio Congresso pela situação esdrúxula: o Executivo legisla mais do que deve por excesso de apetite de poder, mas o Legislativo permite que isso ocorra por comodismo e esperteza.
A dois meses de entregar o cargo ao qual não pode concorrer por impedimento regimental (não se permite a reeleição no meio de uma legislatura), Garibaldi encontrou a oportunidade ideal para executar na prática o que sempre pregou, provando que não é disléxico, mas sincero, defeito talvez pior na parolice politiqueira tupiniquim. A MP com que o governo pretendia misturar joio com trigo, dando dinheiro do contribuinte a entidades filantrópicas sérias e a contrafações da caridade, representadas por entidades suspeitas de fraude ou comprovadamente fraudulentas, foi rejeitada com indignação geral. E essa repulsa ética encontrou eco na devolução pelo presidente do Senado – primeiro desafio aberto à desfaçatez com que o Executivo ata e desata no Legislativo.
A coragem do Garibaldi desengonçado pode ter até irritado o chefe do governo, mas este reagiu à altura e surpreendeu a platéia com um roque no xadrez proposto pelo aliado desabusado. Em vez de mandar seu líder na Casa, Romero Jucá (PMDB-RR), recorrer à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), com base na falha regimental aparente da decisão, Sua Excelência o instruiu a transformar a medida provisória em projeto de lei. Assim, Lula confessou de público que a proposta indecente não tinha necessidade nem urgência para tramitar como havia inicialmente encaminhado. E, num lance de sagacidade, esvaziou a discussão da sordidez do texto original ganhando tempo para dissolver a obviedade da amoralidade da MP e amenizando a ira dos mais ferozes críticos da desfaçatez.
A discussão do projeto do governo até deve melhorá-lo, mas ainda restam dúvidas de que a ousadia cívica de Garibaldi tenha depurado de vez os métodos pelos quais os senadores exercem o poder e se relacionam com o Executivo. A influência evidente, embora descabida, de seu antecessor, Renan Calheiros, na escolha do futuro presidente da Casa é prova cabal disso. Disposto, dizem, a se vingar do pretendente do PT, Tião Viana (AC), ou, o que é mais provável, a mostrar que ainda controla espaços significativos de poder na bancada de seu partido, que também é o do atual presidente, o alagoano age com a desenvoltura de quem tem voz de comando e, por isso, exige obediência dos demais. Para tanto conta com a cumplicidade silenciosa do Planalto, que manobrou para mantê-lo no mandato e agora se faz de desentendido para não desautorizá-lo. É triste que o Senado, que age como águia e bica o nariz do rei, exiba de forma tão inglória o próprio traseiro. Mas há pouco o que fazer quanto a isso: andorinha nenhuma, por mais alto que voe, conseguirá deter, sozinha, a revoada dos abutres.

© O Estado de S. Paulo, quarta-feira, 26 de novembro de 2008, p.A2

E assim falou… o nosso Clemenceau

 

Lula age como o curandeiro que intui o diagnóstico, mas não sabe curar

 

“A guerra é uma coisa importante demais para ser deixada por conta dos generais.” Esta frase, de precisão cirúrgica, foi dita originalmente por um médico. E só foi adaptada e citada, como tem sido, por ter sido cunhada por um jornalista. Não um jornalista qualquer, mas aquele que mandou imprimir um dos textos mais importantes do século 20, o J’accuse (Eu acuso) com que Émile Zola denunciou um dos mais notórios erros judiciais da história, o caso Dreyfus. Além do mais, o autor foi estadista: senador e duas vezes primeiro-ministro da França, nos prolegômenos e no encerramento da 1ª Grande Guerra Mundial, Georges Clemenceau a aprendeu na experiência no trato com militares e ainda dos bancos escolares acadêmicos, no convívio com os luminares das letras francesas de seu tempo e, sobretudo, nos debates de plenários e até nas conversas descontraídas do cafezinho do Parlamento de seu país.
Depois que os canhões da 1ª Grande Guerra silenciaram e que os aviões da 2ª calcinaram lares em Londres, Berlim, Dresden, Hiroshima e Nagasaki, seu sentido tem sido confirmado e reafirmado ao longo do tempo e em todas as línguas. Sempre que alguém quer reclamar das limitações do específico quando mistérios genéricos assolam a saga humana na Terra, lá vem alguma nova versão da mesma sentença adaptada aos engenheiros que constroem, aos médicos que operam, aos arquitetos que desenham e por aí afora. Dia virá em que alguém dirá que jornal é uma coisa importante demais para ser deixada por conta dos jornalistas. Agora, contudo, é a vez dos economistas. Diante dos desafios da atual crise econômica mundial,produzida pela explosão da bolha imobiliária e da bomba dos derivativos, é natural que os dedos do crítico e o clamor da turba se voltem primeiro para os especuladores do mercado financeiro e depois para os economistas. Nosso presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, com a loquacidade de que é dotado e a empáfia que lhe têm concedido o poder republicano reafirmado nas urnas e o prestígio popular, que não decaiu no segundo mandato, contrariando a adaptação política da lei da gravidade na Física, não perdeu a chance de parodiar Clemenceau. E em Roma, diante do presidente Giorgio Napolitano no Palácio Quirinal, ele disparou não propriamente contra os economistas, mas contra a vaga entidade que ele chama de “analistas de mercado”. Seu novo palpite é que “os governantes precisam entender que precisamos ouvir menos analistas de mercado e mais analistas de problemas sociais, de desenvolvimento e que conhecem as pessoas”.
Antes de questionar os comandos militares, Clemenceau, exercendo a autocrítica, deixou os pacientes para colegas mais aptos e realizou sua vocação de crítico, tribuno e, depois, governante – no que seria imitado por insignes brasileiros como Juscelino Kubitschek e Antonio Carlos Magalhães. Nestes dias de êmulo tropical de Clemenceau, o presidente de nossa nada serena República age como um pajé capaz de intuir o diagnóstico, mas absolutamente incapaz de receitar a terapia. Quando começou a dedicar suas metáforas de marinheiro à crise econômica (a das “marolinhas” não foi propriamente a mais feliz delas), Sua Excelência respondia a quem o indagasse sobre o assunto: “Perguntem ao Bush” ou “o problema não é meu, é de Bush.” Típicas respostas de quem não sabe o que responder, pois, mesmo que o problema tenha sido originado na Casa Branca – o que é duvidoso –, certo é que não será ao presidente dos EUA que a sociedade brasileira terá de apelar para exigir medidas que, se não evitarem as conseqüências malignas do quadro mundial, pelo menos amenizem seus efeitos entre nós.
“Quem pariu Mateus que o embale” pode parecer uma boa saída para quem não tem convicção do que dizer, porque não sabe o que fazer para desatar o nó górdio, mas simplesmente não ajuda a decepá-lo. Henrique Meirelles, aparentemente o oásis de sensatez no deserto de parlapatice com que a alta cúpula econômica federal reage aos sustos pregados pela falta de confiança dos mercados internacionais, precisa explicar ao chefe que, a esta altura do campeonato, o que menos importa é definir a paternidade irresponsável da tempestade que começa a desabar. A prioridade no momento é estabelecer um plano coerente, efetivo e viável de enfrentamento das calamidades públicas que o ciclone financeiro pode produzir no crédito, no consumo e na produção, com conseqüências nefastas no emprego e na renda de famílias que não elegeram o Bush filho, mas Lula da Silva.
Pouco adianta constatar agora que o republicano do Texas foi o pior presidente em todos os tempos do país mais rico do mundo. E daí? Resta-nos evitar que a ignorância que o ajudou a cometer os erros que podem ter levado à catástrofe se repita aqui de forma que eles repercutam mais sobre o bolso e o estômago do cidadão brasileiro – particularmente o mais pobre – por doença similar. O que a ganância produziu lá não pode pela ignorância ser anabolizado aqui – do “outro lado do Atlântico”, como ainda repete nosso morubixaba.
A conjuntura mundial não está a exigir de Lula hoje – e não mais de George W. Bush, que está sendo substituído por Barack Obama – que ele seja o Clemenceau de Garanhuns nem que exiba um diploma universitário ou notório saber em Economia, Sociologia ou qualquer outra cadeira. O Brasil precisa agora é que o que lhe falta em experiência para levar o barco devagar pelo nevoeiro, como recomenda Paulinho da Viola em seu samba, pelo menos seja compensado pelo velho bom senso, que nunca lhe faltou. Infelizmente, quem espera por isso nada tem a comemorar com atestados explícitos de insensatez dados nas proclamações que o presidente tem feito ultimamente.

 

© O Estado de S. Paulo, quarta-feira, 12 de novembro de 2008, p.A2


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