O controle externo
É duvidoso que os parlamentares, que nada fizeram em agosto, superem, agora que setembro chegou, os obstáculos da pauta obstruída para votar projetos importantes, caso daquele que consolida vários textos para extinguir o sigilo nas votações em que a Câmara e o Senado decidem o destino de seus membros acusados de algum delito. Mas ninguém está proibido de torcer para que, afinal, se ponha fim, de uma vez por todas, a essa prática malsã que garante ao espírito corporativo o êxito pleno da impunidade mútua com a qual a extensão do rabo-de-palha de uns leva para bem longe do fogo o rabo-de-palha dos outros, de comprimento semelhante. A queda do sigilo permite ao cidadão, pelo menos, tomar conhecimento dessa disputa tácita entre folhas corridas, embora não o autorize a intervir para interditá-la.
O sigilo transforma o voto eventualmente punitivo de um parlamentar numa permanentemente previsível anistia, o que inutiliza quaisquer iniciativas de moralizar o Parlamento e termina por desmoralizar a instituição em particular e a própria democracia como um todo. Só isso já justifica sua derrubada imediata. Mas ainda não garante que os membros vips do clube fechado do Congresso passem a punir colegas da corporação como deveriam. O voto aberto para cassar mandatos de deputados e senadores acusados por crimes pode constranger seus julgadores, mas a nada os obriga. Talvez o único instrumento para evitar a impunidade de mensaleiros, sanguessugas e outros tipos destes, que estão longe da extinção, seja a adoção do que já existe para o Judiciário também para o Legislativo: o controle externo.
© Jornal da Tarde; página A2, Terça-feira 5 de setembro de 2006.
O eleitor não pune, mas deve escolher
O voto não pode ser um castigo, mas deve ser uma opção responsável
“O mito”, avisava Fernando Pessoa na epígrafe de Mensagem, “é o nada que é tudo.” Dois mitos rondam a eleição de outubro que vem e, antes que o nada que eles são se torne algo que faça mal a nossas frágeis instituições democráticas, dando ao eleitor uma visão equivocada de sua participação num governo que teoricamente lhe pertence, convém esclarecer e desmanchá-los.
O primeiro deles diz respeito à natureza detergente das urnas. No preenchimento dos cargos de representação e execução no Estado democrático de Direito, o voto é a expressão da vontade do cidadão, que exerce seu poder – o “governo do povo, pelo povo e para o povo” da definição clássica – por meio dele. Esse poder, contudo, é o de optar, nunca o de julgar. É dada ao eleitor, mesmo numa democracia meramente eleitoral, caso da nossa, apenas a decisão de indicar, entre as opções disponíveis nas prateleiras partidárias, as pessoas que lhe parecem mais adequadas para representá-lo no Parlamento e gerir os negócios do Estado, legitimamente, em seu nome.
Não lhe cabe, nunca lhe coube nem caberá punir ninguém. Em primeiro lugar, no calor da campanha não lhe são fornecidas informações imparciais e suficientes para que possa sentenciar algum candidato. Não consta, por exemplo, que os processos jurídicos (ou políticos) contra acusados nos episódios do mensalão e dos sanguessugas, só para citar os casos mais notórios, sejam expostos nos amplos horários gratuitos e obrigatórios de que os partidos e candidatos dispõem nos meios eletrônicos de comunicação de massa, a ponto de proverem o brasileiro, ao votar, de capacidade mínima para exercitar a justiça – ou qualquer coisa que a esta se assemelhe. Ao contrário: partidos e candidatos usam e abusam da chance de desinformar, vendendo gato por lebre e macaco por faisão. Se urna fosse tribunal e voto, sentença, seria o mesmo que dar ao juiz nas Cortes do Judiciário o arbítrio de sentenciar sem ouvir as razões da Promotoria e da defesa, nem sequer tomar conhecimento dos autos do processo.
A obrigação de investigar malfeitores que se candidatem a mandatos populares é do Estado, que, recorrendo ao aparelho policial, exerce o monopólio da força legítima por delegação popular. A tarefa de julgar se tais investigações configuraram culpa ou inocência dos governantes ou representantes, que deveriam ser julgados com isenção e isonomia, como, de resto, qualquer cidadão comum, é de um Poder que existe para isso: o Judiciário. Cabe à Justiça comum determinar que punições devem ser aplicadas a quem quer que viole a ordem jurídica vigente, devendo ser mais seletiva e vigilante quando se trata de pretendentes a postos de mando ou representação. Seu ramo eleitoral teria de garantir a igualdade de oportunidades a indivíduos e grupos que se apresentem para exercer o serviço público qualificado de legislar ou gerir. Imputar ao eleitor poder de policial ou magistrado é transferir para suas costas estreitas missões que a polícia e a Justiça não têm cumprido de forma satisfatória, presenteando malfeitores que se reelegem com o argumento falacioso, mas, infelizmente, comum, de que o povo o teria isentado de culpa. Ou seja, o cidadão passa a ser duplamente lesado: ao ter o dinheiro de seus impostos surrupiado pelo eventual corrupto e o direito de escolha garantida pelo regime furtado para investir de lisura moral quem nunca a teve.
O outro lado desta moeda falsa é o recurso à anulação do voto como instrumento de protesto contra os maus hábitos vigentes na gestão dos negócios republicanos e no debate político. Uma falácia percorre o noticiário eleitoral e a banda nacional na rede mundial de computadores: a de que anular o voto é expressar uma insatisfação legítima contra a desfaçatez dos palanques povoados por mensaleiros e sanguessugas, um acinte contra a grande maioria (quase a totalidade) de uma cidadania proba e justa. Para começo de conversa, o voto nulo não é uma iniciativa proativa contra a desmoralização da atividade política, mas a renúncia do eleitor a seu poder (e também seu dever) de escolher mandatários que exercerão o poder com sua autorização – e, mais que isso, em seu nome. A anulação do voto não impede a ascensão dos malfeitores ao poder – e, de certa forma, chega a ajudá-la e até a legitimá-la. A perspectiva de uma onda nacional de votos nulos que anulem o resultado da consulta popular é simplesmente irrealista. Mas, ainda que ela fosse viável, não poderia produzir mais que um impasse incômodo. Ou seja: levaria a outra eleição, que seria realizada dentro de normas idênticas. E não há nenhuma perspectiva lógica de que, dentro das regras vigentes, o outro pleito fosse, digamos, mais seletivo que o anulado. Resta, é claro, a alternativa da ruptura das regras e das instituições. Mas esta certamente não é uma justificativa nobre para o protesto contra a malversação dos recursos públicos, além de não ter antecedentes que autorizem algum tipo de esperança em suas conseqüências positivas. O êxito de golpes do gênero depende de canhões e metralhadoras, nunca de mapas eleitorais. E essas aventuras que põem as instituições de pernas para o ar não costumam pôr termo à roubalheira ou à incompetência, mas apenas a ocultá-las da vista de todos.
Líquido e certo é o livre-arbítrio de o eleitor decidir punir corruptos notórios, não votando neles, e votar nulo ou em branco. Não será o democrata que assina este texto que vai negá-lo. Convém, porém, tentar jogar um pouco de luz sobre essas ilusões com que se tenta transferir as responsabilidades do Estado democrático para o cidadão ou seduzi-lo com a perspectiva de fugir ao poder de decidir o próprio destino com a pretensão de escapar da partilha da responsabilidade, de que não deveria fugir, de escolher os melhores para evitar um governo de piores.
© O Estado de S. Paulo, página A2, Quarta-feira 6 de setembro de 2006.
‘Me engana que eu gosto’ no reino da versão
O horário gratuito não existe para informar, mas para seduzir o eleitor
Dizem os políticos que criaram o horário eleitoral gratuito para uso dos partidos e seus candidatos no rádio e na televisão para impedir o abuso do poder econômico. Ou seja, permitir que se exerça o mais elementar dos direitos de uma democracia que se preze: a igualdade de oportunidades. A imprensa foi poupada da obrigatoriedade de ceder espaço publicitário gratuito para o mesmo objetivo, na certa por ser este um país de pobres iletrados, só valendo, portanto, a pena cercar os veículos de informação e entretenimento da maior parte da população.
Na verdade, contudo, os programas produzidos pelos partidos para substituir a programação normal com notícias e diversões nos veículos de comunicação que atingem os lares de todos os brasileiros são apenas versões mais extensas dos anúncios menores inseridos nos intervalos comerciais comuns dos programas. Assim sendo, não prevalece a informação, necessária para dotar o eleitor do mínimo de familiaridade com a biografia dos pretendentes a exercerem em seu nome mandatos eletivos, seja no Poder Legislativo, que se diz seu representante, seja no Executivo, em tese delegado de sua vontade soberana. Mas se exerce, sim, a persuasão pela propaganda (no sentido religioso do termo, ou seja, o da propagação da fé) com o uso (e muitas vezes o abuso) das técnicas de venda, codificadas numa prática comercial conhecida como marketing. Marketing político seria, em tese, um absurdo lógico. Pois a venda pressupõe uma técnica de convencimento que não se fundamenta na verdade sobre o bem ou serviço a ser vendido, mas, sim, numa imagem fantasiosa, que faz o freguês preferir um produto ao outro por uma série de estímulos psicológicos que pouco (ou nada) têm a ver com a qualidade real do produto a ser adquirido. A política, porém, e aqui mais uma vez em tese, pressupõe o exercício legítimo do poder pela vontade da maioria de uma sociedade de iguais, sem, por isso mesmo, confrontar o legítimo direito de discordar e se opor das diversas minorias. Não se exerce o poder na democracia sem transparência, ou seja, a verdade clara e exibida a todos. O marketing, ao contrário, se baseia na fantasia, no embuste, como definiu, com clareza, outro articulista desta página, Gaudêncio Torquato, domingo. Em termos mais duros, uma empulhação!
Na propaganda eleitoral, leva-se a extremos o princípio que sempre reinou em nossa democracia: o primado da interpretação sobre a ocorrência, da manipulação sobre a história. Atribui-se a uma raposa felpuda do PSD de Minas Gerais (José Maria Alkmin, Gustavo Capanema ou Tancredo Neves?) a frase “não importa o fato, mas a versão”. E isso torna relativa a relevância da discussão sobre a autoria do conceito tornado sentença: afinal, não é a verdade que deve ser comunicada, mas a paródia mais palatável à maioria divulgada por um candidato ou pelo grupo que o apóia, com o único objetivo de chegar ao poder ou dele se locupletar.
Sabe-se, por exemplo, que 69 deputados e 3 senadores estão sendo acusados de ter participado de um processo de licitação superfaturada (portanto, fraudulento) de compra de ambulâncias com dinheiro do orçamento federal para prefeituras. Foram denunciados pelo chefe do esquema, que passou a ser conhecido como a máfia dos sanguessugas, e reconhecidos como suspeitos pelo relator de uma CPI, o senador Amir Lando (PMDB-RO), que nunca se destacou propriamente pelo rigor no julgamento de seus pares. A maioria desses réus vai disputar um mandato popular nas próximas eleições – para Assembléias Legislativas, governos estaduais e para o Congresso Nacional. Como os partidos em que militam acatam seu direito líquido e certo à legenda e a um naco de tempo na TV, a ser administrado por eles próprios, o cidadão nunca será informado – no horário em que, em teoria, ele poderia encontrar informações para decidir quem poderá representá-lo na próxima legislatura – desse acontecimento da maior relevância. Há, é claro, a possibilidade de os opositores chamarem a atenção do eleitorado para isso, mas essa chance é mínima, pois o confronto entre os rabos-de-palha, usados por quase todos, sempre termina numa soma zero: a existência do próprio termina por evitar a exibição do alheio.
Ao argumento de que há no panorama eleitoral quem denuncie esse monopólio da empulhação, caso, só para dar um exemplo, do deputado Fernando Gabeira (PV-RJ), contrapõe-se a estridência de ser a voz da discórdia abafada pelo critério da distribuição do tempo: as máquinas partidárias mais contaminadas têm mais tempo na TV, o que lhes foi garantido pela composição proporcional da eleição anterior.
Esse critério absurdo de perpetuação do erro nega o princípio elementar da isonomia no qual se apóia a falácia do espírito democrático (quase socialista) da lei que inventou o seqüestro de parte do horário destinado à informação e ao entretenimento nas programações dos meios de comunicação eletrônicos de massa. Mas o legislador cuidou até mesmo de impedir que esse debate seja travado por iniciativa de observadores isentos no rádio e na televisão. O presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Marco Aurélio Mello, tem um pouco de razão quando diz que dá vontade de recorrer ao Código de Proteção do Consumidor, tantos são os mitos, mentiras e fantasias propagados no horário eleitoral gratuito. Ele só deixou de lado a possibilidade de a Justiça Eleitoral poder coibir grande parte dessa mentira, fazendo valer o conceito da democracia sobre o interesse dos “democratas” que a exploram. E não percebeu que é a legislação, como está, que ludibria o eleitor.
Urge, pois, trocar o dístico da Bandeira Nacional: o correto mesmo seria “me engana que eu gosto”.
© O Estado de S. Paulo, 23 (quarta-feira) de agosto de 2006.
Táubua de tiro ao Álvaro
O bate-boca entre os gestores públicos da União e do Estado de S. Paulo sobre o uso de tropas para impedir os atentados do Primeiro Comando da Capital (PCC) em território paulista é uma crua prova da insensibilidade, leviandade, irresponsabilidade e até crueldade com que as autoridades tratam a população no Brasil. Num instante em que os paulistas passaram a viver em pânico por culpa dos atentados terroristas dos membros de uma facção criminosa brutal e eficiente, preferem brincar com fogo, deixando de tratar da essência do drama para atirar farpas e tirar lasquinhas uma da outra, tentando levar vantagem nas urnas.
Pensar que se pode repetir na maior cidade do País a experiência do Rio de Janeiro com a ocupação de favelas dominadas pelas quadrilhas de traficantes é uma tolice. Pois em São Paulo não há morros a subir, mas uma imensa malha urbana esparramada sobre as várzeas de dois rios, onde os jovens recrutas desempenhariam o papel de “patinhos de parques de diversão”, na metáfora irreverente, mas exata, de um militar. Sem querer brincar com coisa séria, como esses senhores fazem, a soldadesca ficaria feito barata tonta e servindo de “táubua de tiro ao Álvaro”, como diz a letra do samba de Adoniram Barbosa cantado por Elis Regina.
O secretário da Segurança Pública do Estado de São Paulo, promotor Saulo de Castro Abreu Filho, é jovem para entender o alcance histórico de dois episódios – um da História Geral do século 20 e outro do folclore da imprensa brasileira. Mas seu adversário neste combate de Brancaleones, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, com larga folha corrida de serviços prestados a presos políticos processados pela justiça de exceção da ditadura, tem idade e experiência suficientes para entendê-los.
O então presidente dos EUA, Harry Truman, narrou, numa palestra em 1948, segundo registrou o New York Times, um episódio pitoresco ocorrido na Conferência de Potsdam, na qual os líderes aliados, no fim da Segunda Guerra Mundial, discutiram a partilha da Alemanha e da Europa Oriental entre os vencedores. O primeiro-ministro britânico Winston Churchill argumentou que o Papa Pio 12 usaria todo o seu prestígio internacional para tentar evitar a entrega da Polônia, nação tradicionalmente católica, ao domínio dos comunistas, materialistas por convicção e, portanto, anticlericais notórios. “Sr. Churchill, sr. Primeiro-Ministro, quantas divisões o senhor disse mesmo que o Papa tinha?”, perguntou o ditador soviético Josef Stálin.
Consta também que, na madrugada de 1º de abril de 1964, o dono do Diário de Notícias, do Rio, João Dantas, telefonou para a redação de seu jornal e perguntou ao sonolento plantonista que novidades havia. Este, pressuroso, respondeu: “Tudo sob controle, chefe”. E o patrão retrucou: “Tudo sob controle uma ova! As tropas estão nas ruas e o senhor também”.
Melhor seria se um estadista não fizesse história apenas pelas divisões que comandou nem se usassem tanques para impor a lei num Estado de Direito como o nosso.
© revista Five, de agosto de 2006
Para ratos do cerrado, ratoeiras da floresta
Waldomiro Diniz está solto e o caseiro Nildo perdeu a esperança
Ao ser informado da nova onda de atentados do Primeiro Comando da Capital (PCC) em território paulista, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, criminalista que fez fortuna pela notória competência profissional, não perdeu a chance de tirar uma casquinha na candidatura oposicionista à Presidência: afirmou que tudo seria diferente se o governo de São Paulo, nas mãos da oposição, tivesse aceitado a ajuda da União por ele oferecida. Seria absurdo, se não fosse simplesmente patético! Se estivesse o governo federal, de fato, disposto a ajudar o cidadão por intermédio das autoridades estaduais) na guerra contra o crime organizado, não teria contingenciado 58% das verbas orçamentárias para o tal Fundo Nacional de Segurança Pública e faria funcionar qualquer coisa que pudesse ser definida como um sistema minimamente eficiente para impedir o contrabando de drogas e armas por nossas indefesas fronteiras nacionais.
O mais recente (e, aparentemente, longe de ser o último) ataque, com idênticas sistemática terrorista e ousadia, do crime organizado, desafiando a autoridade constituída para reprimi-lo, expôs, num piscar de olhos, a evidência de que não se impedirão novos atentados com promessas vazias nem com mudanças tópicas, mas, sim, com medidas duras e efetivas. Não vai ser substituindo, como fez o governo do Estado, o secretário da Administração Penitenciária que a polícia de São Paulo, cujo chefe, Saulo de Castro Abreu Filho, é desafeto do ex-titular e cujo desempenho se mede pelo pífio índice de solução de apenas 2,5% dos crimes de morte de autoria desconhecida, se tornará, de súbito, competente. Nem é tirando da gaveta projetos para endurecer a legislação penal e amealhar votos na eleição que o Congresso cumprirá seu dever de representar corretamente a sociedade, nesta hora em que o cidadão é ameaçado pela sanha da bandidagem. Pois, pelo mesmo objetivo (a disputa dos votos), esses textos já voltaram às gavetas, e em velocidade ainda maior.
Urge é agir em São Paulo, e no Brasil inteiro, como a Polícia Federal fez em Rondônia: apurar, investigar e processar os maus cidadãos que se aproveitam de mandatos eletivos ou de cargos de decisão nos três Poderes da República para delinqüir, protegidos pela força que têm – e é tanta que lhes garante impunidade total. Desde que a aritmética da representação política deu aos despovoados Estados do Norte poder desproporcional à sua importância sob qualquer ângulo – demográfico, econômico ou político –, era só uma questão de tempo que o crime organizado não apenas promovesse uma autêntica ocupação dos três Poderes nesses Estados como também viesse a exercer influência decisiva na gestão dos negócios republicanos. Essa prisão de chefes de Poderes naquela unidade da Federação é o resultado lógico do processo iniciado na motosserra com que o coronel Hildebrando Paschoal retalhava os temerários que o desafiavam.
O ministro Bastos e o presidente Lula têm todo o direito de se orgulhar do êxito do trabalho da Polícia Federal (PF), sob seu comando. Pena é que esse órgão da administração direta federal não esteja sendo tão eficiente no combate que lhe cabe ao tráfico de entorpecentes e ao contrabando de armas, atividades fundamentais sem as quais o PCC não teria o poder e a força de que dispõe.
A série de operações bem-sucedidas da PF, desbaratando quadrilhas de colarinho branco em Estados pequenos e distantes dos centros de produção e consumo da economia nacional, dá ao presidente, em campanha para se reeleger, excelentes argumentos para convencer o eleitor a mantê-lo no trono. “Nunca antes, em tempo algum”, a PF prendeu tanto bandidão importante e foi tão eficaz. Nada mais conveniente neste instante em que os assassínios de Celso Daniel e Toninho “do PT”, o “mensalão”, o “valerioduto” e a máfia das sanguessugas disseminam a incômoda sensação de que a corrupção campeia, impune e incólume, no território nacional. E, até certo ponto, nada mais justo: essa caçada às ratazanas que se locupletam no Estado brasileiro tem seus méritos.
Infelizmente, contudo, para o contribuinte, que paga as contas públicas com impostos escorchantes sem receber serviços decentes nas áreas vitais da saúde, da educação e da segurança, e para o eleitor, de quem foi furtada até a fé no futuro, a PF do dr. Bastos e de Lula continua a dever algumas explicações. Por que os agentes que aterrorizam os meliantes de Rondônia dão indulgências plenas ao ex-ministro da Fazenda Antônio Palocci e, com isso, frustram a esperança de Francenildo Santos Costa, o caseiro Nildo, que teve o sigilo bancário quebrado e a intimidade familiar devassada por subalternos daquele figurão petista? Sim, pois vê o ex-ministro gozar de liberdade total e disputar, com reais chances de êxito, um lugar na casa em que se fazem as leis no Estado de Direito, cujo funcionamento em tese garante a igualdade a todos.
É possível aceitar a argumentação de que o caso Nildo-Palocci é recente e doar ao ex-ministro o benefício da dúvida. Mas o que dizer de Waldomiro Diniz, o ex-lugar-tenente do governo Lula nas relações com o Congresso? É público e notório que esse senhor foi filmado e gravado “achacando” um empresário da jogatina. E até hoje a Polícia Federal, que tanto orgulho merecidamente desperta no dr. Bastos e em seu chefe, Lula, não conseguiu produzir um relatório capaz de prover o Ministério Público de informações suficientes para pedir a instauração de um processo criminal contra o réu, mais que óbvio, confesso.
Por que o ministro da Justiça, em vez de se empenhar tanto para promover desfiles de tanques nas ruas de São Paulo, não arma para as ratazanas do cerrado ratoeira idêntica à usada por seus subordinados para pegar esses camundongos da floresta?
© O Estado de S. Paulo, quarta-feira, 9 de agosto de 2006
Silêncio de rádio
O deputado Miro Teixeira (PDT-RJ) teve uma idéia engenhosa: consultar o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre a possibilidade de cassar, desde já, os registros de candidaturas de todos os parlamentares comprovadamente envolvidos no escândalo da Máfia das Sanguessugas e com pretensões a voltar ao Congresso na legislatura que vem.
A idéia é duplamente engenhosa. Pois, de um lado, exige da Justiça eleitoral uma posição sobre a própria postura na questão da punição de candidatos com culpa reconhecida em cartório, mas também passa o problema da punição dos congressistas corruptos para a frente, tirando-o das costas do Legislativo.
Como reclamou ontem a colega Dora Kramer em sua coluna diária no Estadão, os presidentes da Câmara, Aldo Rebelo (PCdoB-SP), e do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), têm feito o que se chama em nossa região natal (deles e minha) de um obsequiosíssimo “silêncio de rádio”. Ou seja, resolveram seguir o paradigma stalinista do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que, a respeito do mensalão, se tem comportado como aquele sujeito da anedota que, ao cair do décimo andar e chegar à calçada, incólume, responde ao transeunte interessado em saber os motivos da aglomeração em seu redor: “Não sei de nada. Acabei de chegar”.
Os partidos, certos de que o problema será levado à Justiça, que lavará as mãos, à falta de textos legais rigorosos que punam os salafrários, começam a tomar providências para aplacar a ira do eleitor. E, no fim, a este será apresentada a dupla cobrança: da conta a pagar e da obrigação de punir os meliantes nas urnas. Quanto cinismo, hein?
© Jornal da Tarde, quinta-feira, 3 de agosto de 2006