O Brasil dividido pelo voto
Nesta eleição presidencial, o atual presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, operário braçal de origem, reproduziu uma situação similar à existente na pátria do Libertador da América Hispânica, Simón Bolívar. Assim como Hugo Chávez dividiu a Venezuela ao meio, tornando-se ídolo das favelas no morro e relegando a oposição à elite abonada do vale de Caracas, o ex-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos da industrializada região do ABC, na Grande São Paulo, estabeleceu um pacto direto com o lúmpen-proletariado. Isso não lhe assegurou a vitória no primeiro turno, em 1° de outubro, como chegaram a prever as pesquisas, mas ainda deve lhe garantir a vitória final no turno decisivo, no domingo 29. Caso seja reeleito, Lula abandonará o populismo, cavalo-de-batalha de seu primeiro mandato (2003-2006), para fundar a democracia de massas no Brasil no segundo (2007-2010).
Incrível é que esse quadro estava fora de cogitação em maio de 2005, quando um útil aliado da composição governista no Parlamento, o então presidente nacional do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), criado por Getúlio Vargas nos anos 40, Roberto Jefferson, denunciou a existência de um esquema de compra de votos para apoio a projetos oficiais no Congresso. Então, a oposição soit-disant social democrata e liberal ao Partido dos Trabalhadores, de linha socialista, calculou que Lula seria carta fora do baralho na própria sucessão. O escândalo de corrupção, que derrubou o homem forte do governo federal, José Dirceu, da chefia da Casa Civil da Presidência da República, atingiu o poderoso ministro da Fazenda, Antônio Palocci, e desmontou a cúpula do PT, acirrou os ânimos entre os principais pretendentes do PSDB, partido que ocupara o governo nos dois mandatos anteriores ao de Lula e que passou a ter a vitória em outubro de 2006 como líquida e certa. Travou-se, então, uma guerra violentíssima entre os dois principais líderes do partido que adotou o símbolo do tucano, uma ave da Amazônia. De um lado, o governador do maior Estado da Federação, São Paulo, Geraldo Alckmin. De outro, o prefeito da Capital do mesmo Estado, José Serra. Apesar das credenciais deste último, que havia sido ministro da Saúde com muito êxito no segundo governo do sociólogo Fernando Henrique Cardoso e perdera a eleição presidencial para o mesmo Lula, em 2002, Alckmin ganhou a disputa, deixando para Serra o posto de candidato à própria sucessão, que este venceria com 58% dos votos.
Direita contra esquerda – Aparentemente a opção do partido tucano pelo governador deu ao PT a oportunidade de levar a luta eleitoral para a arena que mais lhe convinha: a ideológica. Esse confronto não seria tão claro com Serra, economista de esquerda, ex-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), exilado à época da ditadura militar e notório adversário das tendências ditas neoliberais da equipe econômica das duas gestões de Fernando Henrique, sob a chefia do economista carioca Pedro Malan. Com Alckmin, porém, o contraste ideológico seria mais nítido. Parlamentar de pouco brilho, escolhido para ser vice-governador do maior líder do Partido da Social Democracia Brasileira, Mário Covas, de quem herdara o governo paulista pela morte do titular, ele já começou a campanha acusado de pertencer ao grupo de religiosos de direita Opus Dei, adversário figadal dos clérigos da Igreja Católica progressista, cuja participação na fundação do PT fora decisiva.
Por mais que a acusação tenha contribuído para diminuir as chances de vitória do principal candidato da oposição, contudo, ela não bastou para caracterizar a disputa entre Lula e Alckmin como um embate entre direita e esquerda. Seja porque o PSDB é uma dissidência do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), principal bastião da resistência política civil à ditadura militar (1964-1989), sendo, portanto, considerado “de centro-esquerda” (como, de resto, praticamente todos os partidos no Brasil, onde se foge da pecha de direitista como o Diabo da cruz). Seja porque Lula também não pode ser considerado um homem de esquerda, apesar de sempre ter sido a mais forte, carismática e popular liderança do PT, agremiação política que congrega em torno de seu símbolo de sindicalista autêntico ex-guerrilheiros da guerra suja contra a ditadura e grupos remanescentes da Igreja alinhada com a Teologia da Libertação.
O carismático contra o anódino – Ao longo da campanha eleitoral propriamente dita, o que se viu foi a guerra entre um líder carismático e um político anódino, mal saído do anonimato. Pouco conhecido no Brasil além das fronteiras de seu Estado, o mais rico e mais populoso, o candidato da oposição teve dificuldades para enfrentar o charme do adversário, além do mais dono das prerrogativas do poder. Essas dificuldades foram agravadas pela dificuldade do cidadão mais pobre de gravar seu sobrenome de origem árabe, incomum nos grotões onde são reconhecidos apenas os substantivos próprios de origem ibérica, e pela oratória em tom de oração do candidato do PSDB, um anestesista que discursava nos palanques com a empolgação de quem estivesse participando de uma operação num centro cirúrgico.
Com a cassação dos mandatos de um punhado de deputados que protagonizaram o escândalo conhecido como do “mensalão”, entre os quais Dirceu e Jefferson, as denúncias de corrupção, se não caíram no vazio, pelo menos não exerceram no ânimo do eleitorado o efeito esperado pelos oposicionistas. Do princípio ao fim da campanha, o presidente foi apontado como favorito a superar a soma dos votos dos adversários, ganhando no primeiro turno. Isso se deveu basicamente ao fato de que o sistema da reeleição, engendrado por Fernando Henrique, do PSDB, instituir na prática um recall no meio de um mandato real de oito anos – e não dois mandatos de quatro anos. Além disso, o presidente atravessou o período da disputa, inclusive os 45 dias de propaganda eleitoral gratuita dos partidos nos meios de comunicação de massa, como se, de fato, nada tivesse a ver com os malfeitos de seus ex-subordinados e correligionários. Ter-se-ia, então, beneficiado do chamado “efeito teflon”.
Da diferença à isonomia – Lula elaborou uma estratégia muito pragmática e eficiente para ganhar a segunda eleição consecutiva, após perder três em seguida. Eleito em 2002 por uma ampla aliança, que incluía setores da classe média insatisfeitos com o que se chamava de privatização do Estado brasileiro por grupos políticos patrimonialistas, ele convenceu a maioria do eleitorado que seria diferente de tudo e de todos, comandando uma gestão competente tecnicamente e honesta. Esse discurso, contudo, perdeu o sentido com a enxurrada de denúncias de ineficiência e corrupção no governo. Ele, então, da mesma forma como já havia aplicado a política econômica do antecessor, Fernando Henrique, levando-a até a extremos, deu uma guinada de 180 graus, partindo para o convencimento do eleitorado de que seus adversários, que o condenavam retoricamente, adotavam idênticas práticas desonestas. Estes confirmaram esse argumento dele, participando de um grande pacto nacional pela manutenção dos mandatos dos próprios parlamentares acusados de corrupção.
Indo com facilidade e desfaçatez da diferença à isonomia, Lula conseguiu êxito em sua brilhante estratégia de garantir o apoio dos banqueiros, propiciando-lhes ganhos inéditos: as cinco maiores instituições financeiras tiveram em seus três anos iniciais de governo 26% de lucro a mais que nos oito de Fernando Henrique, acusado pelo PT de ser “neoliberal”. Enquanto isso, conquistou o apoio maciço do lúmpen-proletariado explorando programas sociais pouco utilizados pelos adversários nos governos anteriores, caso do Bolsa Família, que atinge 11,5 milhões de lares miseráveis.
O Brasil dividido – Os mapas eleitorais do primeiro turno não deixam dúvida alguma quanto à divisão do Brasil em dois países distintos: os 16 Estados em que o presidente esmagou seu adversário sob uma avalanche de votos e os 11 em que Geraldo Alckmin o superou. O favoritismo do presidente à própria reeleição é sustentado pelo apoio que recebe do lado do País mais dependente das benesses do Estado provedor. Enquanto o outro lado, cuja renda provém basicamente da capacidade de empreendimento privado, reagiu de modo a assegurar a disputa em segundo turno, embora talvez ainda não disponha de sufrágios suficientes para levar o pretendente do PSDB à vitória final.
Com políticas econômicas praticamente idênticas e jamais debatidas ao longo da campanha, os dois candidatos se diferem basicamente no plano das relações internacionais. Lula filia-se claramente ao grupo liderado por Hugo Chávez e que reverencia Fidel Castro. Enquanto Alckmin, com certeza, abandonará esta política terceiromundista, realinhando a posição brasileira com o Ocidente capitalista. Seja como for, vença uma hipótese ou outra, nunca se deverá deixar de levar em conta as diferenças entre um país de complexa estrutura econômica como o Brasil e a Venezuela, dependente demais da monocultura petroleira.
© VÉRTIGO (revista mexicana)outubro de 2006 .
Enfim, o Anti-Lula
Até domingo ninguém – a não ser ele mesmo e mais algum parente desavisado de Pindamonhangaba – acreditava na possibilidade de o anestesista paulista Geraldo Alckmin subir, de faixa no peito, a rampa do Palácio do Planalto. A começar pelos amigos e aliados. Quer um exemplo? Fernando Henrique deu logo dois. De saída, comentou que o ex-governador de São Paulo podia até ser melhor candidato, mas, sem dúvida, José Serra daria melhor presidente. A frase era ruim para seu ex-ministro da Saúde, mas bem pior para um candidato pouco conhecido fora dos limites do Estado que governou. Pior a ponto de poder ter sido fatal. Depois, em entrevista à Playboy, o ex-presidente reincidiu explicitamente ao considerar o então candidato (agora governador eleito) do PSDB ao Palácio dos Bandeirantes o brasileiro mais preparado para assumir a Presidência. Sendo Alckmin, apesar do sobrenome arrevesado, brasileiro nato do Vale do Paraíba, deduz-se que…
Ora, direis, ouvir estrelas! É mais fácil Fernando Henrique pagar um cafezinho a um inimigo que perder uma piada para preservar um amigo. Mas a crônica da campanha presidencial está cheia de notícias que dão conta de tentativas de “cristianização” do principal oponente à reeleição do presidente. Seus marqueteiros tentaram valorizar seu ponto mais falho – o desconhecimento – com o refrão “muito prazer”. Comentava-se, à boca pequena, nos arraiais tucanos a existência clandestina, mas numerosa, de comitês Serrula, reunindo os dois favoritos tidos como imbatíveis aos governos paulista e federal. Aécio Neves, eleitíssimo em Minas Gerais, berço de prudentes e presidentes, chegou a apregoar que ele mesmo era Alckmin (que ainda não havia assumido publicamente sua metade Geraldo), mas Minas, bem, Minas era Itamar. Itamar, diga-se, nem sequer candidato seria. E ainda apoiou as pretensões do ex-vice de Covas – o que dificilmente pode ser aceito como um bom presságio para estas.
Mesmo o candidato não parecia levar muito a sério as próprias possibilidades. Pode uma pessoa, que se lança ao cargo máximo num país das dimensões deste, com a responsabilidade de recuperar a pompa e circunstância perdidas nas batalhas entre o atual ocupante e postulante ao bis contra a lógica, a gramática e o pundonor, aceitar ser comparado com um chuchu? Pois ele chegou a se equiparar a esse legume insípido num cardápio empanzinado de carisma populista do adversário. E ainda degustou um picolé da mesma no programa do ex-Pequeno Príncipe Ronnie Von na televisão!
Vai ver, poderá até ter sido esta a senha para o sucesso do ex-Alckmin, hoje Geraldo, na arrancada final rumo ao inesperado segundo turno. O contraste entre sua condição de porta-voz da exasperação nacional e o tom sempre calmo e monótono de sua fala pode ter levado os adversários a desprezarem suas possibilidades, assim como seu estilo já tinha sido alvo preferencial do veneno destilado no serpentário tucano. O que se sabe, e disso ninguém duvida, é que parte do segredo dos surpreendentes 40 milhões de sufrágios que obteve na refrega pode ser creditada à soberba do inimigo. O tucano foi tão desprezado pelo PT e pelo presidente que se chegou a divulgar que este não havia comparecido ao debate da Globo não por temer escorregar em alguma casca de banana atirada pelo oponente mais próximo no ranking da preferência do voto, mas, sim, por recear insulto a ser disparado pela metralhadora giratória da ex-companheira pra toda obra Heloísa Helena. Mais importante que confirmar se, de fato, Lula deixou a simbólica cadeira vazia no debate por saber quão afiada é a língua da candidata do PSOL é registrar que não passou pela cabeça de ninguém que ele tenha cometido tal deslize final por receio das diatribes de um adversário que se comporta no palanque como se estivesse anestesiando um paciente no centro cirúrgico: em tom de oração.
A insuficiência dos 50 milhões de votos para garantir a Lula a manutenção da cadeira deve ser atribuída a essa ausência, mas também, e principalmente, à divulgação das fotos do dinheiro que seria empregado para financiar o dossiê falso dos petistas contra os tucanos. Marco Aurélio Garcia, que conseguiu ser mais desastrado em alguns dias na chefia da campanha do que o fora em três anos de salamaleques a Fidel, Chávez e Evo, atribuiu aos meios de comunicação a culpa pelo desastre. Se o camarada que assumir o lugar de Fidel Castro, caso ele resolva um dia faltar a Cuba, pensar como ele, não hesitará em mandar para o paredão o esculápio que o atender no leito de morte. As pessoas que têm por hábito pensar sabem que o falso dossiê era uma rajada, e não apenas um tiro, no pé, com que todos contavam após o mensalão, o Land Rover, os dólares na cueca e todos os atentados suicidas que a “companheirada” cometeu nestes três anos de fortuna e desatino. E o povo que vota pode ser capaz de raciocinar com mais lógica do que pode sonhar o professor Garcia.
E foi assim que Geraldo, o ex-Alckmin, manteve a disputa em aberto por mais 28 dias e só Deus sabe que outros tresloucados atentados contra a moral, os bons costumes, a lógica e a própria sobrevivência política ainda estão por ser cometidos por ex-companheiros de quarto do comissário Dirceu e freqüentadores da República de Ribeirão Preto. Até lá, dificilmente Geraldo, o ex-Alckmin, elevará a voz ou algum figurão tucano usará um argumento decisivo para contrapô-lo ao carisma do operário braçal que andou de carruagem com a rainha da Inglaterra. Mas seu desempenho no primeiro turno já o credencia, até para aliados, a ser o anti-Lula por todos esperado. Pode não ser suficiente para levá-lo a subir a rampa, mas basta para que ninguém, nem mesmo ele ou seus marqueteiros, o reduza à função de chuchu no banquete.
© O Estado de S. Paulo, página A2, quarta-feira, 04 de outubro de 2006.
Um bode exangue
Não são poucos os analistas políticos que acreditam na possibilidade de o senador Aluizio Mercadante ter sido escolhido pelo PT para cumprir na eleição para o governo de São Paulo, no lugar da ex-prefeita da Capital Marta Suplicy, a tarefa de perder. E, assim, evitar transtornos para o favoritismo do presidente Lula à própria reeleição. O raciocínio tem alguma lógica e encontra respaldo na estratégia que os petistas adotaram, com apoio da Polícia Federal (PF), de tentar transferir apenas para as costas largas deste “pato manco” a culpa toda pela lambança do falso dossiê antitucano, que explodiu na campanha como uma bomba de efeitos catastróficos. O petardo armado e disparado por terroristas suicidas, contudo, terminou foi impedindo que Luiz Inácio Lula da Silva vencesse a contenda logo no primeiro turno.
Diante do adiamento do resultado final para daqui a 26 dias, deu para concluir que a estratégia de usar o cadáver da candidatura do senador como escudo para o favoritismo do presidente não funcionou a contento. Mais da metade do eleitorado deixou o (ainda) favorito fritando até o fim do mês, exposto às intempéries de uma campanha difícil, na qual foi possível observar que alguns petistas nunca conseguem resistir à própria vocação para o delito e a trapalhada. Nos velhos tempos do sindicalismo “autêntico” do ABC, a massa reunida no campo de jogo do Estádio de Vila Euclides berrava em uníssono: “O povo não é bobo.” Se o então líder sindical Lula houvesse prestado mais atenção nisso, talvez tivesse aprendido que de nada ia servir fingir imolar um bode exangue para tentar ganhar o campeonato logo na preliminar.
© Jornal da Tarde, terça-feira, 3 de outubro de 2005. .
Freud, Lombroso e Jung no torto
Conforme a moral petista, a ausência de culpa elimina a existência do crime
Quem viu neste jornal a foto do ex-assessor Freud Godoy marchando ao lado do presidente Lula se lembrou menos do psiquiatra vienense, em quem seu pai se inspirou para lhe dar o nome, que de um contemporâneo dele. Cesare Lombroso ficou famoso por ter elaborado uma das teorias mais furadas da ciência em todos os tempos: a de ser possível identificar as intenções criminosas de um ser humano pela conformação óssea de seu rosto. Numa prova de que um equívoco, mesmo fartamente negado por experiências científicas posteriores, como é o caso deste, pode tornar seu autor famoso até muito depois da morte, o substantivo próprio que define o sobrenome do autor da falsa teoria ganhou foros de adjetivo em várias línguas. Ainda hoje, passou a ser chamado de lombrosiano todo e qualquer indivíduo que, na gíria menos erudita, é tido como mal encarado ou coisa semelhante. E nosso Freud, ou melhor, o Freud do PT e do presidente Lula, é uma figura lombrosiana.
Não por ser extraordinariamente feio ou pelo fato de ser um homem alto, forte e espadaúdo, como convém a quem ganha o sustento como segurança, o que exige mais força muscular que um cérebro bem dotado para assegurar a vida do chefe – no caso, não um superior qualquer, que seja apenas dele, mas de um governo inteiro ou, como se designa institucionalmente no Estado de Direito, de toda a Nação. Se confirmada sua participação no grotesco caso da confecção de um dossiê falso para incriminar o adversário do PT favorito ao governo de São Paulo, José Serra, o Freud do Torto (assim dito por ser convidado aos churrascos com que o líder máximo homenageia amigos e aliados) será mais um lombrosiano da mente, da alma, que da configuração dos ossos da própria fácies. E, ainda que não seja o autor intelectual do delito, conforme garantiram à polícia o petista de carteirinha Valdebran Carlos da Silva Padilha e o advogado e ex-agente da Polícia Federal Gedimar Pereira Passos, pilhados com R$ 1,75 milhão em notas de real e dólar para pagar pelo tal dossiê, que lhes seria entregue por Paulo Roberto Trevisan, tio de Luiz Antônio Vedoin, o chefão da máfia das sanguessugas, sua mera condição de elo entre tais criminosos e o presidente da República já bastaria para configurar um escândalo de proporções consideráveis.
As dimensões deste escândalo não se medem pela denúncia dos petistas presos com a boca na botija, mas pelo que o Freud sem divã falou, além de onde e como o fez. Primeiro, ele contou que foi apresentado ao tal Gedimar (“funcionário da Direção Nacional do PT e responsável pela segurança do comitê de Lula”) por Jorge Lorenzetti, amigo e “churrasqueiro” do presidente na Granja do Torto. E, depois, disse que, antes de viajar para discursar nas Nações Unidas, o chefão lhe telefonou para questionar sua eventual participação no episódio. “Se o problema do senhor de governar e de campanha for isso, pode dormir tranqüilo”, teria respondido.
Ou seja, nunca antes, para usar a expressão favorita de “nosso guia máximo”, alguém tão próximo de um presidente da República reconheceu de público se haver aproximado tanto do protagonista de uma falcatrua tão sórdida e tão estúpida quanto essa confecção de um dossiê para incriminar um adversário. E, ainda assim, ele acha que o chefe não terá por que se preocupar. Trata-se do fenômeno petista da absoluta ausência de culpa. Freud, o austríaco, revolucionou a psiquiatria encontrando no desejo libidinoso do filho pela mãe (o complexo de Édipo) a origem da culpa que a tradição judaico-cristã atribui ao pecado original. Jung, o primeiro a ousar desafiá-lo, extrapolou as fronteiras do pansexualismo transferindo para qualquer desejo, não apenas o sexual, as raízes desse mecanismo psíquico. Os petistas, fundadores do lombrosianismo moral, decretam que não terá havido crime se seu autor nunca admitir a culpa. “Se não me sinto culpado pelo crime que cometi, não cometi crime algum” – eis uma tradução livre de tudo quanto disse nosso Freud do Torto.
O presidente Lula poderia ter cobrado do ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, um relatório detalhado e urgente sobre a participação de seu Gregório Fortunato particular no caso – que ele próprio condenara, seguindo as normas da boa convivência em disputas eleitorais. A Polícia Federal, por este comandada, contudo, se tem mostrado particularmente lerda quando convocada a investigar suspeitos do peito (ou de perto) do líder supremo: até hoje não produziu um relatório decente sobre o achaque de Waldomiro Diniz, ex-companheiro de quarto de José Dirceu. E, ao contrário do que faz de hábito, quando convoca a imprensa para anunciar alguma operação contra quadrilhas do colarinho branco, desta vez poupou os companheiros petistas flagrados da exposição imediata às indiscretas câmeras dos jornais e da televisão. Fiel ao hábito de sempre confiar mais na palavra de um amigo e em pesquisas de opinião que em diligências policiais, Sua Excelência voou para Nova York sem temer seja pelo mandato que ainda não cumpriu, seja pelo próximo, que vai disputar nas urnas mês que vem.
E aqui, infelizmente, resta o pior dessa moral mafiosa, na qual a garantia do assessor de fé vale mais que o inquérito impessoal de um policial: o sono de Sua Excelência não deve ter sido perturbado por essa “falha” de um companheiro de caminhadas. Por muito menos que isso, Watergate detonou Richard Nixon. Mas este país é outro e entre nós vige o costume de que a proximidade do poder não obriga ninguém a andar na linha, mas lhe garante o direito a gozar do benefício de que o afastamento da boquinha é punição bastante para remir qualquer “engano” e livrar o chefe de todo o mal.
© O Estado de S. Paulo, página A2, quarta-feira, 20 de setembro de 2006.
A esquerda e o crime
Há uma certa perplexidade de parte da opinião dita liberal no Brasil em relação aos pronunciamentos de alguns figurões da cultura a respeito da adesão incondicional de artistas de algum renome (peró no mucho) à candidatura do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à reeleição. Frases como “política é assim mesmo” (apud maestro Wagner Tiso) ou “estou mais perto do povo” (segundo o ator José de Abreu) funcionam como senhas descaradas para abrir a porta da caverna onde Ali Babá festeja com 40 mensaleiros a pizza nossa de cada companheiro de jornada. Será ingenuidade ou cinismo, burrice ou tolerância? Talvez seja tudo isso junto e muito mais.
Na verdade, a dita esquerda sempre votou à democracia liberal dita burguesa seu mais profundo desprezo. Pode-se dizer que um esquerdista de verdade vomita nela. Lulinha está longe de ser um. Ele é um conservador esperto que montou no primeiro cavalo que passou à porta do sindicato e a montaria estava ajaezada pela patota dos católicos progressistas e dos egressos da luta armada. Deu-se bem na vida por conta das circunstâncias especiais no País, pela própria capacidade de entender o povão e corresponder a seus anseios e empregou doses certas de ignorância, inteligência, falta de escrúpulos e da estupidez alheia para deixar para apear da sela apenas na undécima hora.
Assaltantes brechtianos – Essa turma da esquerda armada está acostumada a assaltar bancos e chamar isso de apropriação. A qualquer cretino de direita que questionar o óbvio a resposta está na ponta da língua com a questão posta por Brechet: “Qual a diferença entre roubar um banco é fundar um?” Se é este o slogan, por que alguém pode imaginar um socialista de verdade condenando um irmão de fé só por ter ele se fartado à tripa forra com a grana coletiva que, por ser de todos, não é de ninguém?
Quem leu O que é isso, companheiro? nas entrelinhas não se surpreendeu com o passo seguinte quando os companheiros do crime comum (pobres vítimas das injustiças da sociedade cruel, não se esqueçam disso) foram instruídos a se organizar para desmoralizar o capitalismo selvagem tupiniquim. Se alguém tiver dúvida da imensa contribuição da esquerda armada contra a ditadura na fundação de organizações como o Comando Vermelho e, depois, o Primeiro Comando da Capital é porque não leu livros capitais sobre o assunto, como o do coleguinha Carlos Amorim, nem freqüentou nenhum curso de lógica elementar. A lógica da guerra ao capitalismo é simples e transparente: desapropriar um burguês é empobrecer a burguesia e ainda desmoralizar a democracia da classe inimiga.
Lições do sindicalismo – Essa lógica se realiza plenamente no sindicalismo. Este, ao contrário do CV e do PCC, não é um fenômeno de subdesenvolvimento caboclo nem uma doença tropical, mas um sintoma universal. Quem quiser saber como é que funcionam os sindicatos na pátria do capitalismo, os Estados Unidos da América, pode ter um curso completo em duas horas vendo o filme The waterfront/ Sindicato de ladrões, de Elia Kazan, com Marlon Brando dando um banho na interpretação de Terry Malloy, o herói fura-greve. No Brasil, o buraco é mais embaixo por dois motivos: o primeiro deles é que não há controle institucional dos sindicatos e seus dirigentes fazem o que bem entendem manipulando orçamentos e assembléias e o segundo é que aqui os partidos são débeis e a burocracia sindical assaltou o poder do Estado diretamente via Getúlio, via Jango ou via PT. Ou alguém ainda imagina que a Central Única dos Trabalhadores, a CUT, é o braço sindical do Partido dos Trabalhadores, e não o exato oposto? Com a formação que o presidente recebeu no sindicalismo dito autêntico dos anos 70 do século passado quem poderia esperar que ele tivesse uma visão da ética na gestão pública semelhante à do brigadeiro Eduardo Gomes ou do general Juarez Távora, cujas personalidades foram forjadas nos rigores da caserna e na falta de cintura da União Democrática Nacional, a velha UDN fundada para derrubar o regime sindicalista de Vargas? Aliás, é bom que se diga que, se a moral de Lula fosse tão rígida quanto à dos dois candidatos citados, o primeiro derrotado duas vezes, para Eurico Dutra e Getúlio Vargas, e o segundo vencido por JK, dificilmente ele teria chegado aonde chegou: ao cobiçado trono e agora à perspectiva quase inexorável de um bis aplaudido por artistas cevados no Tesouro e pela burguesia que engorda e bufa às custas do suor da patuléia desde as priscas eras da Colônia de Portugal. Lula não é socialista, é pragmático. Mas José Dirceu é socialista, da escola oportunista de Fidel Castro, seu chefão cubano. Tudo bem! Só quem acredita na legenda heróica do líder estudantil e guerrilheiro Dirceu, de quem não se conhece a participação num único combate contra os esbirros da ditadura pode imaginar que chefe e chefiado possam ter algum ânimo no combate aos velhos esquemas patrimonialistas da escória parasita que comanda os partidos nesta corrompida República ou se esforcem para erigir algum empecilho constitucional à contaminação dos três Poderes pela corrupção deslavada do bicho, do tráfico, do jogo, do lenocínio, do contrabando de pedras, metais e armas, dos esquemas de lixo e transportes urbanos, etc e coisa e tal.
A dita esquerda e a elite sindical em nossa Pátria varonil desprezam os modos de produção e de negociação política da burguesia. Ocupam o poder na democracia porque esta tem brechas pelas quais elas penetram para sabotá-la. Não há contradição nenhuma, mas lógica plana, no fato de Antônio Palocci, o ai-jesus que garante aos burgueses chupins da vaca velha do Estado patrimonialista caboclo, ter instalado em Ribeirão Preto, de que foi prefeito, escritórios das Farc, guarda pretoriana do tráfico de cocaína na Colômbia, e ser perdoado pelos deslizes éticos que cometeu contra a honra e os direitos de um pobre brasileiro desprotegido da sorte e do regime do PT, o caseiro Francenildo Santos Costa, o Nildo. Ao contrário, faz todo sentido. Há um nexo de causa e efeito, lógico como qualquer texto elementar de Aristóteles, a ligar o crime organizado aos esquemas de corrupção na gestão pública. Assim como a bajulação dos artistas sem público encontra razão, não nas eventuais leituras que estes tenham feito de Gramsci, mas nas verbas fartamente distribuídas por Gushiken a seus projetos fadados ao fracasso de público e ao conforto do autor. Só não enxerga isso quem não quer enxergar. E pelos mesmos motivos que terminaram por produzir a assustadora simbiose entre o crime organizado e o Estado brasileiro, cujos resultados são os cadáveres crivados de balas de Celso Daniel, Antônio Costa Santos e muitas outras vítimas anônimas a povoarem os cemitérios e a falta de pudor de nossas despudoradas, ignorantes e boçais elites dirigentes.
© revista PRONTO! n. 9. Acesse!
O paradoxo da farsa trágica
Os alemães Karl Marx e Friedrich Engels escreveram, em seu Manifesto comunista, que viraria o mundo de pernas para o ar desde a data de sua publicação, que um espectro rondava a Europa naqueles idos de 1848: o fantasma do comunismo. Sem a pretensão de produzir o mesmo impacto da frase famosa, mas com a sensação de estar lidando com uma verdade inquietante, este pobre escriba provinciano, que se expressa numa língua sem a nobreza filosófica do alemão dos dois célebres barbudos, diria que um paradoxo bóia no pântano fétido da política nacional neste ano eleitoral. Ano crucial, porque, como se sabe, esta é uma democracia meramente eleitoral, na qual o cidadão só exerce seu poder na hora de escolher os representantes ou os governantes. E, ainda assim, limitado pelos parâmetros pouco transparentes e nada éticos dos chefões partidários. Perguntará o leitor inquieto e aflito: que paradoxo será, então, este tal?
É preciso argumentar com cuidado, passo a passo, para não perder o fio da lógica nem deixar a cabeça escapulir do pescoço. De um lado, convém constatar que esta imensa e tumultuada República brasileira vive os primórdios de uma democracia de massa. Quando foi proclamada, e logo batizada de Velha, esta senhora de hábitos pouco higiênicos e nada morais se instituiu sobre os pilares apodrecidos de uma oligarquia de coronéis da Guarda Nacional, que mantiveram o poder em suas províncias à base do bico de pena. Só os homens votavam e era preciso provar uma certa renda abastada para o exercício de tal direito. Mesmo este era relativo, pois os oligarcas que haviam abandonado o Império e o Imperador ao deus-dará é que decidiam quem iria para a Corte, oh, desculpe, leitor, a Capital Federal, fazer as leis e compor os gabinetes.
O fim da fraude – Apeados dos tordilhos do estancieiro Getúlio Vargas, os tenentes rebeldes, antes reprimidos por Artur Bernardes, instituíram o voto universal. E, depois, ainda viria a permissão para seres humanos do sexo feminino também expressarem sua vontade nas urnas. De pouco adiantou a medida, pois logo o caudilho empalmaria o poder num golpe de Estado e arquivaria as urnas até ser derrubado pela onda democrática que varrera para o lixo da História o nazismo alemão, o fascismo italiano e o militarismo imperialista japonês, mas não expulsara do trono dos vencedores a tirania comunista soviética. A democracia de 1946, instituída sob a égide da cédula no envelope, deu os primeiros passos para acabar com o outro tipo de domínio coronelista: a fraude eleitoral. Hoje, mais de dois decênios depois da queda da ditadura militar que enterrou aquele regime liberal, o voto eletrônico nos transmite a impressão de que, enfim, a vontade popular é aferida e respeitada.
E Luiz Inácio Lula da Silva, o operário que virou presidente, é o primeiro governante do Brasil independente a representar em sua inteireza tudo o que o lambão de caçarolas da favela é. Migrante de uma tribo de famintos, viciado na liberalidade com que as cúpulas sindicais se imiscuem pelas brechas da legalidade, o chefe do governo proclama a democracia das massas, falando a linguagem deles como antes ninguém nunca havia falado e simbolizando o sucesso como antes nunca ninguém fizera.
Sabotando a democracia – O paradoxo é que, ao desembarcar na democracia de massas, o Brasil permite a deslavada sabotagem das instituições pelo grupo que chegou ao poder. Com a ajuda do sanitarista Antônio Palocci, Lulinha amansou a burguesia. Assim como aparelhou o Estado, usando dinheiro público, empregado segundo os métodos de desapropriação usados pela guerrilha de Zé Dirceu. Agora, contando com o beneplácito da escória da velha política coronelista nacional, o líder dos deserdados restaura a botija da República Velha para reintroduzir a compra do voto pelo assistencialismo deslavado. O principal cavalo-de-batalha de sua reeleição é a comprovação da máxima cunhada pelo marqueteiro paraibano Carlos Roberto de Oliveira: “no Brasil, principalmente no Brasil pobre, eleição não é exercício de democracia, mas, sim, mecanismo de distribuição de renda”. A compra do voto, então, submete a opinião do eleitor e mantém seu representante súdito do poder que executa, em todos os sentidos que este verbo possa ter.
Mais grave ainda são as tentativas de comprometer as liberdades conquistadas com a ameaça permanente à programação e ao controle dos canais de comunicação eletrônica da tal Ancinav e do recadastramento das concessões precárias. Sem falar nas cuteladas contra a liberdade de imprensa embutidas no Conselho Federal de Jornalismo e nos planos para o financiamento de veículos impressos “independentes” da mídia tradicional, embora bancados pelos cofres da viúva.
As exéquias das instituições – Nunca antes, na vigência do Estado de direito, um governo brasileiro foi com tanta sede ao pote da tentação totalitária. O paradoxo é ver como a crônica da “revitória” anunciada do ídolo das massas nesta democracia popular pode terminar servindo, também, às exéquias das instituições que embasam o velho e bom Estado de Direito, que, segundo o premiê britânico Winston Churchill, foi, é e será sempre o menos imperfeito dos regimes políticos imperfeitos.
Para concluir com o alemão barbudo com que este texto foi iniciado, convém citar sua célebre abertura de O 18 Brumário de Luís Bonaparte, em que parodiou seu mestre Georg Hegel, que dizia que a História sempre se repete para concluir que ela ocorre como tragédia, mas se repete como farsa. Neste caso, uma farsa perigosa, com o risco de virar cruel e cruenta.
© Edição de aniversário da revista paraibana A Semana